Por André Barrocal, na revista CartaCapital:
Faltou apenas uma nova versão da Carta ao Povo Brasileiro, o famoso comunicado elaborado por Antonio Palocci e assinado por Lula, em 2002, para, embora eufemisticamente direcionado a toda a população, acalmar os chamados mercados. A pouco mais de um mês de iniciar seu segundo mandato, Dilma Rousseff começa a dar forma ao seu novo ministério e em tudo se inspira no modelo adotado por seu antecessor 12 anos atrás. A presidenta testará a mesma fórmula, um equilíbrio entre ortodoxos e heterodoxos na economia, uma líder ruralista na Agricultura (quem fará o contraponto no Desenvolvimento Agrário?) e um industrial sem indústria no Desenvolvimento.
Até a sombra de Palocci desponta nesse arranjo, a ser testado pelas novas circunstâncias, totalmente distintas daquelas do início do primeiro mandato de Lula, e da habilidade de Dilma de mimetizar o estilo de seu padrinho político. Forjado no sindicalismo do ABC em plena ditadura, Lula tem o talento natural de mediar divergências aparentemente irreconciliáveis. Dilma emergiu na luta armada contra o regime e sua escola foi a resistência à tortura. Conciliar, portanto, não está entre seus pontos fortes. Ela será capaz de operar uma mudança tão profunda em sua personalidade?, perguntam-se aliados e opositores.
Na futura equipe, o ministro da Fazenda será Joaquim Levy, há quatro anos no Bradesco Asset Management, ex-colaborador do FMI e integrante da gestão Fernando Henrique e do primeiro governo Lula, no qual chefiou o Tesouro Nacional. O Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior terá Armando Monteiro Neto, senador pelo PTB de Pernambuco e ex-presidente da Confederação Nacional da Indústria. A Agricultura ficará sob o comando de Kátia Abreu, senadora pelo PMDB do Tocantins e presidente da confederação do setor desde 2008. Dos três, apenas Levy e Monteiro foram anunciados oficialmente. A senadora vai esperar mais uns dias. Com a economia fragilizada e o Planalto em busca de um fato positivo para contornar o escândalo da Petrobras, Dilma resolveu priorizar a escolha da equipe que controlará o caixa no próximo quadriênio.
Levy não era o favorito para o cargo e teria sido uma sugestão do presidente do Bradesco, Luiz Carlos Trabuco, em uma reunião em Brasília, na terça-feira 18, da qual também participou o chefe do Conselho de Administração do banco, Lázaro Brandão. Há, porém, razões para enxergar outro padrinho. Palocci?
O encontro da presidenta com a cúpula do Bradesco foi organizado por Lula, aparentemente simpático à nomeação de Trabuco para a Fazenda não só pelo respeito ao executivo, mas por causa da possibilidade de ele representar um armistício com o sistema financeiro. Quando a conversa ocorreu, Dilma havia dado pistas, via mídia, de não aceitar a indicação de um banqueiro, embora Trabuco não seja exatamente um. O presidente do Bradesco igualmente emitira sinais de rejeição ao convite. Pesou a relação quase filial com Brandão, que o considera seu maior pupilo e o prepara para sucedê-lo no comando do conselho da instituição financeira. Paira, no entanto, uma dúvida: a presidenta convidou formalmente o executivo e este realmente recusou a missão?
A versão de que o convite existiu parece conveniente a todos. Dilma emitiu um sinal de estar aberta ao diálogo com o setor financeiro. Trabuco e o Bradesco puderam exibir prestígio e ainda ficaram com o mérito de ter indicado o titular da Fazenda. E Palocci? Fato é que o ex-ministro continua ativo nos bastidores, frequenta o Instituto Lula e é encarregado pelo ex-presidente de ouvir o empresariado. Além disso, Levy foi seu subordinado no governo.
Um dia depois da reunião com a cúpula do Bradesco, Dilma recebeu o próprio Levy. A partir desse encontro, os dois engataram reuniões sucessivas até a presidenta anunciá-lo na quinta-feira 27. O novo ministro não foi anunciado sozinho. Participou de uma coletiva de imprensa ao lado do novo chefe do Planejamento, Nelson Barbosa, e do presidente do Banco Central, Alexandre Tombini, que permanecerá no cargo. É como se ali se formasse uma santíssima trindade, todos com poderes e responsabilidades mais ou menos iguais e compartilhados. É este “comitê” que a presidenta terá de mediar.
Levy e Barbosa possuem perfis bem diferentes. O primeiro, além de ter transitado pelo FMI quando a instituição propagava o neoliberalismo e o Consenso de Washington na década de 1990, doutorou-se em economia na Universidade de Chicago, meca do pensamento liberal. O segundo é um desenvolvimentista clássico, formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, apesar de suas análises e ideias mais recentes indicarem certa moderação. Em tese, Levy vai soprar ideias no ouvido direito de Dilma. Barbosa, no esquerdo.
Na primeira aparição pública, os dois fizeram questão de ressaltar suas afinidades. Na entrevista no Planalto logo após o anúncio oficial de suas escolhas, mandaram um recado aguardado pelo mercado financeiro. O governo vai segurar os gastos públicos. A promessa é fazer em 2015 uma economia de 1,2% do Produto Interno Bruto. Não parece tanto quando comparada às metas anteriores e não cumpridas de 3%. Mas, diante da estagnação, representará um esforço brutal. Em 2016 e 2017, a promessa é aumentar o superávit para, no mínimo, 2%, suficiente, segundo eles, para conter a trajetória de alta da dívida pública.
O Planalto preparava o arrocho antes da nomeação dos novos ministros. O pacote elaborado pela Fazenda combina cortes de despesas e aumento da receita. O governo quer pagar menos abono salarial e seguro-desemprego, atrelando-os ao tempo efetivamente trabalhado, proposta negociada há meses com sindicalistas. Pretende recriar a Cide, imposto sobre a gasolina eliminado em 2012, e em janeiro retomará a cobrança do IPI na venda de automóveis.
Com Levy na Fazenda, o gasto público corre o risco de ser satanizado daqui em diante. Quando chefiava o Tesouro no primeiro governo Lula, o futuro ministro ficou conhecido como “mãos de tesoura” e parecia não se importar com a meta oficial de superávit primário, mas perseguir uma própria, maior. Um artigo de sua autoria publicado no fim de setembro dá a dimensão de sua ortodoxia. No texto “Robustez fiscal e qualidade do gasto como ferramentas para o crescimento”, Levy critica o uso indefinido da política fiscal anticíclica adotada a partir de 2009 contra a crise financeira global. Diz que o Estado arrecada demais e gasta muito e mal.
O artigo tem duas propostas centrais. Defende a adoção de metas de redução dos gastos estatais e da dívida pública bruta. A dívida está na casa dos 60% do PIB, e ele propõe “estabelecer a redução para menos de 50% nos próximos anos”. Já a despesa pública, que de 2002 a 2013 subiu de 15,7% do PIB para 18,8%, tem uma trajetória que, anota, “não pode ser tratada com complacência”. Os culpados pela gastança seriam a Previdência (leia-se salário mínimo) e os programas sociais tipo Bolsa Família. “A própria Educação teve aumento significativo de gasto com a transformação do Fundef em Fundeb, com subsídio à creche, além da criação de várias universidades e planos para novas escolas técnicas.”
A criação das duas metas está em exame no Planalto. O mercado financeiro, diz um técnico envolvido no debate, parece não dar mais tanta importância ao superávit primário, indicador usado desde os anos 90 como termômetro do controle das contas. Seria hora de substituí-lo. Quando comandava o Tesouro, Levy era entusiasta de uma proposta de espírito parecido, o déficit nominal zero. A ideia foi abatida no nascedouro pela então chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, que a classificou de “rudimentar”.
A defesa de metas de contenção dos gastos e da dívida será um desafio para a relação entre Levy e o futuro ministro do Planejamento. Barbosa é contra fixar tais metas e expressou claramente sua opinião em uma entrevista em fevereiro: “A gente precisa evitar a profusão de metas para não dar confusão e manter as que já existem, de inflação e de superávit primário”. O tema promete ser um bom teste do poder efetivo de Barbosa e sua disposição para funcionar como voz desenvolvimentista contra a ortodoxia do colega.
Barbosa chegará ao cargo fortalecido graças a um acordo com Dilma. A gestão de todos os investimentos públicos estará sob sua coordenação, entre eles o Programa de Aceleração do Crescimento e o Minha Casa Minha Vida. Idem as concessões de infraestrutura. No Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada surgiu um movimento de grupos desenvolvimentistas disposto a devolver o órgão à batuta do Planejamento, como no passado.
Para arrepio das vozes progressistas que torceram por sua indicação à Fazenda, Barbosa tem suas convergências com Levy. Embora defenda mais despesas em saúde, educação e transporte, considera o orçamento dos programas sociais inchado. Seu último projeto de pesquisa antes de voltar ao governo tratou do salário mínimo. Após a recuperação do poder de compra em dez anos, o piso não precisa mais subir no mesmo ritmo, argumenta. Poderia seguir a variação do salário médio e aliviar o caixa estatal no pagamento de aposentadorias, abono salarial e seguro-desemprego. Ideia oposta àquela apresentada por Dilma na campanha. A candidatada prometeu manter a política de reajuste real do salário mínimo, cuja lei que estabelece as regras vence no próximo ano.
A guinada ortodoxa do governo provocou reações antes da oficialização de Levy. Na segunda-feira 24, intelectuais e partidários da reeleição lançaram um manifesto contra as indicações de Levy e Kátia Abreu. Entre os signatários, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, João Pedro Stedile, dirigente do MST, e o advogado Pedro Serrano. Segundo o grupo, Levy e Abreu “sinalizam uma regressão da agenda vitoriosa” na eleição. “A presidenta Dilma Rousseff ganhou mais uma chance nas urnas não por cortejar as forças do rentismo e do atraso, e sim pelo fato de movimentos sociais, sindicatos e milhares de militantes voluntários terem sido capazes de mostrar, corretamente, a ameaça de regressão com a vitória da oposição de direita.”
O senador tucano Aécio Neves, derrotado no segundo turno, foi irônico ao comentar a escolha: “É como chamar um quadro da CIA para dirigir a KGB”. Levy é amigo de Arminio Fraga, aquele que seria ministro de Aécio. Aliado de primeira hora do governo, o presidente da Central Única dos Trabalhadores, Vagner Freitas, foi outro a recorrer à ironia. Reunido com o secretário-geral da Presidência, Gilberto Carvalho, para discutir a mobilização de militantes para a posse de Dilma em janeiro, Freitas comentou que para a CUT o governo estava “ótimo”. Só havia sindicalistas no ministério (o Bradesco de Levy comanda a confederação dos bancos), o que inspirava ânimo de que uma hora chegaria a vez da central e dos movimentos sociais emplacarem alguns quadros.
No PT, alas mais à esquerda mostraram desconforto, mas preferiram não externar as críticas. O mal-estar levou o vice-presidente do Senado, Jorge Viana, a sair em defesa de Levy. “Ele fez parte do governo Lula e ajudou a fazer a correção de rumos do governo do PSDB. Ele é mais completo. Não é banqueiro, é do mundo da economia e tem contato com a vida real.” Dilma teria a chance de encarar os petistas e defender suas escolhas ao participar de uma reunião do Diretório Nacional do PT no Ceará na sexta-feira 28.
De acordo com o núcleo econômico do manifesto anti-Levy, o problema é o risco de o arrocho produzir recessão e desemprego, o que fragilizaria os trabalhadores na busca por empregos e ganhos salariais. Em tal cenário, não seria improvável a votação pelo Congresso altamente conservador a ser empossado em 2015 da lei da terceirização, sonho empresarial a ameaçar conquistas trabalhistas.
Austeridade fiscal, cortes de salários e direitos trabalhistas compunham a cartilha ortodoxa seguida por muitos países europeus em dificuldade depois da crise global de 2008. É um caminho agora condenado por uma entidade do establishment internacional, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), a reunir as nações mais ricas do planeta. Às vésperas da confirmação de Levy por Dilma, a OCDE pregou o afrouxamento fiscal, o aumento do gasto público e um programa de emissão de moeda na União Europeia para a região tentar evitar uma estagnação sem fim. Na página 58, a reportagem do editor Carlos Drummond mostra um aumento das críticas à austeridade em órgãos tradicionais, incluído o Fundo Monetário Internacional.
Uma forte razão para a guinada à direita do próximo mandato é o receio de o Brasil ser rebaixado pelas agências de classificação de risco. O País está ameaçado de perder o chamado “grau de investimento” em 2015, hipótese que, se confirmada, comprometeria os próximos quatro anos. A Standard & Poor’s cortou a nota brasileira em março e, se repetir o feito, o País estará rebaixado a “grau especulativo”, ou seja, se tornaria um local desaconselhado aos investidores.
Tal decisão, diz um integrante da equipe econômica, desencadearia um indesejável efeito dominó. A baixa confiança dos empresários sofreria outro abalo. O juro cobrado na venda de títulos brasileiros no exterior e em empréstimos estrangeiros a empresas nacionais subiria. Aplicadores fugiriam do País. O dólar ficaria mais caro e, por consequência, os preços. A pressão inflacionária exigiria elevar o juro básico em um ambiente de estagnação. E, mais, tudo no momento em que os EUA retomariam a elevação de suas taxas de juro, o que precipitaria uma migração maciça de capital para a maior economia do planeta.
O Brasil assistirá a uma situação esdrúxula por alguns dias, quem sabe semanas. Serão dois ministros da Fazenda e dois do Planejamento. Levy e Barbosa começaram a despachar em salas no Planalto perto do gabinete presidencial e tentam montar suas futuras equipes. Aguarda-se o anúncio do substituto ou substituta de Arno Augustin na Secretaria do Tesouro. Guido Mantega e Miriam Belchior, respectivos ministros atuais, continuam a postos e vão ficar ainda por um tempo, a pedido da presidenta. É como se houvesse uma transição entre diferentes governos. Nos corredores do poder, há quem brinque e enxergue de fato uma transição na Fazenda: do petista Mantega para o tucano Levy.
Ironias à parte, a coexistência é resultado de uma condição imposta pelos futuros ministros. Levy e Barbosa mostraram resistência à ideia de assumir em meio à batalha do governo para aprovar uma lei a autorizar o descumprimento da meta de superávit primário neste ano. Parecem querer distância de um enrosco que, acreditam, tem de ser resolvido pela atual equipe. Sem mudar a Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2014, Dilma corre o risco de ser processada por crime de responsabilidade. A aprovação era esperada para a quarta-feira 26, como estava combinado com o presidente do Congresso, senador Renan Calheiros, mas o acerto falhou, por causa, entre outras, da pressão da oposição, ainda à espreita de uma possibilidade de promover oimpeachment da presidenta. Mantega e Miriam estarão de plantão até a lei ser votada. Ou para o caso de não ser votada e exigir uma solução milagrosa.
Faltou apenas uma nova versão da Carta ao Povo Brasileiro, o famoso comunicado elaborado por Antonio Palocci e assinado por Lula, em 2002, para, embora eufemisticamente direcionado a toda a população, acalmar os chamados mercados. A pouco mais de um mês de iniciar seu segundo mandato, Dilma Rousseff começa a dar forma ao seu novo ministério e em tudo se inspira no modelo adotado por seu antecessor 12 anos atrás. A presidenta testará a mesma fórmula, um equilíbrio entre ortodoxos e heterodoxos na economia, uma líder ruralista na Agricultura (quem fará o contraponto no Desenvolvimento Agrário?) e um industrial sem indústria no Desenvolvimento.
Até a sombra de Palocci desponta nesse arranjo, a ser testado pelas novas circunstâncias, totalmente distintas daquelas do início do primeiro mandato de Lula, e da habilidade de Dilma de mimetizar o estilo de seu padrinho político. Forjado no sindicalismo do ABC em plena ditadura, Lula tem o talento natural de mediar divergências aparentemente irreconciliáveis. Dilma emergiu na luta armada contra o regime e sua escola foi a resistência à tortura. Conciliar, portanto, não está entre seus pontos fortes. Ela será capaz de operar uma mudança tão profunda em sua personalidade?, perguntam-se aliados e opositores.
Na futura equipe, o ministro da Fazenda será Joaquim Levy, há quatro anos no Bradesco Asset Management, ex-colaborador do FMI e integrante da gestão Fernando Henrique e do primeiro governo Lula, no qual chefiou o Tesouro Nacional. O Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior terá Armando Monteiro Neto, senador pelo PTB de Pernambuco e ex-presidente da Confederação Nacional da Indústria. A Agricultura ficará sob o comando de Kátia Abreu, senadora pelo PMDB do Tocantins e presidente da confederação do setor desde 2008. Dos três, apenas Levy e Monteiro foram anunciados oficialmente. A senadora vai esperar mais uns dias. Com a economia fragilizada e o Planalto em busca de um fato positivo para contornar o escândalo da Petrobras, Dilma resolveu priorizar a escolha da equipe que controlará o caixa no próximo quadriênio.
Levy não era o favorito para o cargo e teria sido uma sugestão do presidente do Bradesco, Luiz Carlos Trabuco, em uma reunião em Brasília, na terça-feira 18, da qual também participou o chefe do Conselho de Administração do banco, Lázaro Brandão. Há, porém, razões para enxergar outro padrinho. Palocci?
O encontro da presidenta com a cúpula do Bradesco foi organizado por Lula, aparentemente simpático à nomeação de Trabuco para a Fazenda não só pelo respeito ao executivo, mas por causa da possibilidade de ele representar um armistício com o sistema financeiro. Quando a conversa ocorreu, Dilma havia dado pistas, via mídia, de não aceitar a indicação de um banqueiro, embora Trabuco não seja exatamente um. O presidente do Bradesco igualmente emitira sinais de rejeição ao convite. Pesou a relação quase filial com Brandão, que o considera seu maior pupilo e o prepara para sucedê-lo no comando do conselho da instituição financeira. Paira, no entanto, uma dúvida: a presidenta convidou formalmente o executivo e este realmente recusou a missão?
A versão de que o convite existiu parece conveniente a todos. Dilma emitiu um sinal de estar aberta ao diálogo com o setor financeiro. Trabuco e o Bradesco puderam exibir prestígio e ainda ficaram com o mérito de ter indicado o titular da Fazenda. E Palocci? Fato é que o ex-ministro continua ativo nos bastidores, frequenta o Instituto Lula e é encarregado pelo ex-presidente de ouvir o empresariado. Além disso, Levy foi seu subordinado no governo.
Um dia depois da reunião com a cúpula do Bradesco, Dilma recebeu o próprio Levy. A partir desse encontro, os dois engataram reuniões sucessivas até a presidenta anunciá-lo na quinta-feira 27. O novo ministro não foi anunciado sozinho. Participou de uma coletiva de imprensa ao lado do novo chefe do Planejamento, Nelson Barbosa, e do presidente do Banco Central, Alexandre Tombini, que permanecerá no cargo. É como se ali se formasse uma santíssima trindade, todos com poderes e responsabilidades mais ou menos iguais e compartilhados. É este “comitê” que a presidenta terá de mediar.
Levy e Barbosa possuem perfis bem diferentes. O primeiro, além de ter transitado pelo FMI quando a instituição propagava o neoliberalismo e o Consenso de Washington na década de 1990, doutorou-se em economia na Universidade de Chicago, meca do pensamento liberal. O segundo é um desenvolvimentista clássico, formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, apesar de suas análises e ideias mais recentes indicarem certa moderação. Em tese, Levy vai soprar ideias no ouvido direito de Dilma. Barbosa, no esquerdo.
Na primeira aparição pública, os dois fizeram questão de ressaltar suas afinidades. Na entrevista no Planalto logo após o anúncio oficial de suas escolhas, mandaram um recado aguardado pelo mercado financeiro. O governo vai segurar os gastos públicos. A promessa é fazer em 2015 uma economia de 1,2% do Produto Interno Bruto. Não parece tanto quando comparada às metas anteriores e não cumpridas de 3%. Mas, diante da estagnação, representará um esforço brutal. Em 2016 e 2017, a promessa é aumentar o superávit para, no mínimo, 2%, suficiente, segundo eles, para conter a trajetória de alta da dívida pública.
O Planalto preparava o arrocho antes da nomeação dos novos ministros. O pacote elaborado pela Fazenda combina cortes de despesas e aumento da receita. O governo quer pagar menos abono salarial e seguro-desemprego, atrelando-os ao tempo efetivamente trabalhado, proposta negociada há meses com sindicalistas. Pretende recriar a Cide, imposto sobre a gasolina eliminado em 2012, e em janeiro retomará a cobrança do IPI na venda de automóveis.
Com Levy na Fazenda, o gasto público corre o risco de ser satanizado daqui em diante. Quando chefiava o Tesouro no primeiro governo Lula, o futuro ministro ficou conhecido como “mãos de tesoura” e parecia não se importar com a meta oficial de superávit primário, mas perseguir uma própria, maior. Um artigo de sua autoria publicado no fim de setembro dá a dimensão de sua ortodoxia. No texto “Robustez fiscal e qualidade do gasto como ferramentas para o crescimento”, Levy critica o uso indefinido da política fiscal anticíclica adotada a partir de 2009 contra a crise financeira global. Diz que o Estado arrecada demais e gasta muito e mal.
O artigo tem duas propostas centrais. Defende a adoção de metas de redução dos gastos estatais e da dívida pública bruta. A dívida está na casa dos 60% do PIB, e ele propõe “estabelecer a redução para menos de 50% nos próximos anos”. Já a despesa pública, que de 2002 a 2013 subiu de 15,7% do PIB para 18,8%, tem uma trajetória que, anota, “não pode ser tratada com complacência”. Os culpados pela gastança seriam a Previdência (leia-se salário mínimo) e os programas sociais tipo Bolsa Família. “A própria Educação teve aumento significativo de gasto com a transformação do Fundef em Fundeb, com subsídio à creche, além da criação de várias universidades e planos para novas escolas técnicas.”
A criação das duas metas está em exame no Planalto. O mercado financeiro, diz um técnico envolvido no debate, parece não dar mais tanta importância ao superávit primário, indicador usado desde os anos 90 como termômetro do controle das contas. Seria hora de substituí-lo. Quando comandava o Tesouro, Levy era entusiasta de uma proposta de espírito parecido, o déficit nominal zero. A ideia foi abatida no nascedouro pela então chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, que a classificou de “rudimentar”.
A defesa de metas de contenção dos gastos e da dívida será um desafio para a relação entre Levy e o futuro ministro do Planejamento. Barbosa é contra fixar tais metas e expressou claramente sua opinião em uma entrevista em fevereiro: “A gente precisa evitar a profusão de metas para não dar confusão e manter as que já existem, de inflação e de superávit primário”. O tema promete ser um bom teste do poder efetivo de Barbosa e sua disposição para funcionar como voz desenvolvimentista contra a ortodoxia do colega.
Barbosa chegará ao cargo fortalecido graças a um acordo com Dilma. A gestão de todos os investimentos públicos estará sob sua coordenação, entre eles o Programa de Aceleração do Crescimento e o Minha Casa Minha Vida. Idem as concessões de infraestrutura. No Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada surgiu um movimento de grupos desenvolvimentistas disposto a devolver o órgão à batuta do Planejamento, como no passado.
Para arrepio das vozes progressistas que torceram por sua indicação à Fazenda, Barbosa tem suas convergências com Levy. Embora defenda mais despesas em saúde, educação e transporte, considera o orçamento dos programas sociais inchado. Seu último projeto de pesquisa antes de voltar ao governo tratou do salário mínimo. Após a recuperação do poder de compra em dez anos, o piso não precisa mais subir no mesmo ritmo, argumenta. Poderia seguir a variação do salário médio e aliviar o caixa estatal no pagamento de aposentadorias, abono salarial e seguro-desemprego. Ideia oposta àquela apresentada por Dilma na campanha. A candidatada prometeu manter a política de reajuste real do salário mínimo, cuja lei que estabelece as regras vence no próximo ano.
A guinada ortodoxa do governo provocou reações antes da oficialização de Levy. Na segunda-feira 24, intelectuais e partidários da reeleição lançaram um manifesto contra as indicações de Levy e Kátia Abreu. Entre os signatários, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, João Pedro Stedile, dirigente do MST, e o advogado Pedro Serrano. Segundo o grupo, Levy e Abreu “sinalizam uma regressão da agenda vitoriosa” na eleição. “A presidenta Dilma Rousseff ganhou mais uma chance nas urnas não por cortejar as forças do rentismo e do atraso, e sim pelo fato de movimentos sociais, sindicatos e milhares de militantes voluntários terem sido capazes de mostrar, corretamente, a ameaça de regressão com a vitória da oposição de direita.”
O senador tucano Aécio Neves, derrotado no segundo turno, foi irônico ao comentar a escolha: “É como chamar um quadro da CIA para dirigir a KGB”. Levy é amigo de Arminio Fraga, aquele que seria ministro de Aécio. Aliado de primeira hora do governo, o presidente da Central Única dos Trabalhadores, Vagner Freitas, foi outro a recorrer à ironia. Reunido com o secretário-geral da Presidência, Gilberto Carvalho, para discutir a mobilização de militantes para a posse de Dilma em janeiro, Freitas comentou que para a CUT o governo estava “ótimo”. Só havia sindicalistas no ministério (o Bradesco de Levy comanda a confederação dos bancos), o que inspirava ânimo de que uma hora chegaria a vez da central e dos movimentos sociais emplacarem alguns quadros.
No PT, alas mais à esquerda mostraram desconforto, mas preferiram não externar as críticas. O mal-estar levou o vice-presidente do Senado, Jorge Viana, a sair em defesa de Levy. “Ele fez parte do governo Lula e ajudou a fazer a correção de rumos do governo do PSDB. Ele é mais completo. Não é banqueiro, é do mundo da economia e tem contato com a vida real.” Dilma teria a chance de encarar os petistas e defender suas escolhas ao participar de uma reunião do Diretório Nacional do PT no Ceará na sexta-feira 28.
De acordo com o núcleo econômico do manifesto anti-Levy, o problema é o risco de o arrocho produzir recessão e desemprego, o que fragilizaria os trabalhadores na busca por empregos e ganhos salariais. Em tal cenário, não seria improvável a votação pelo Congresso altamente conservador a ser empossado em 2015 da lei da terceirização, sonho empresarial a ameaçar conquistas trabalhistas.
Austeridade fiscal, cortes de salários e direitos trabalhistas compunham a cartilha ortodoxa seguida por muitos países europeus em dificuldade depois da crise global de 2008. É um caminho agora condenado por uma entidade do establishment internacional, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), a reunir as nações mais ricas do planeta. Às vésperas da confirmação de Levy por Dilma, a OCDE pregou o afrouxamento fiscal, o aumento do gasto público e um programa de emissão de moeda na União Europeia para a região tentar evitar uma estagnação sem fim. Na página 58, a reportagem do editor Carlos Drummond mostra um aumento das críticas à austeridade em órgãos tradicionais, incluído o Fundo Monetário Internacional.
Uma forte razão para a guinada à direita do próximo mandato é o receio de o Brasil ser rebaixado pelas agências de classificação de risco. O País está ameaçado de perder o chamado “grau de investimento” em 2015, hipótese que, se confirmada, comprometeria os próximos quatro anos. A Standard & Poor’s cortou a nota brasileira em março e, se repetir o feito, o País estará rebaixado a “grau especulativo”, ou seja, se tornaria um local desaconselhado aos investidores.
Tal decisão, diz um integrante da equipe econômica, desencadearia um indesejável efeito dominó. A baixa confiança dos empresários sofreria outro abalo. O juro cobrado na venda de títulos brasileiros no exterior e em empréstimos estrangeiros a empresas nacionais subiria. Aplicadores fugiriam do País. O dólar ficaria mais caro e, por consequência, os preços. A pressão inflacionária exigiria elevar o juro básico em um ambiente de estagnação. E, mais, tudo no momento em que os EUA retomariam a elevação de suas taxas de juro, o que precipitaria uma migração maciça de capital para a maior economia do planeta.
O Brasil assistirá a uma situação esdrúxula por alguns dias, quem sabe semanas. Serão dois ministros da Fazenda e dois do Planejamento. Levy e Barbosa começaram a despachar em salas no Planalto perto do gabinete presidencial e tentam montar suas futuras equipes. Aguarda-se o anúncio do substituto ou substituta de Arno Augustin na Secretaria do Tesouro. Guido Mantega e Miriam Belchior, respectivos ministros atuais, continuam a postos e vão ficar ainda por um tempo, a pedido da presidenta. É como se houvesse uma transição entre diferentes governos. Nos corredores do poder, há quem brinque e enxergue de fato uma transição na Fazenda: do petista Mantega para o tucano Levy.
Ironias à parte, a coexistência é resultado de uma condição imposta pelos futuros ministros. Levy e Barbosa mostraram resistência à ideia de assumir em meio à batalha do governo para aprovar uma lei a autorizar o descumprimento da meta de superávit primário neste ano. Parecem querer distância de um enrosco que, acreditam, tem de ser resolvido pela atual equipe. Sem mudar a Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2014, Dilma corre o risco de ser processada por crime de responsabilidade. A aprovação era esperada para a quarta-feira 26, como estava combinado com o presidente do Congresso, senador Renan Calheiros, mas o acerto falhou, por causa, entre outras, da pressão da oposição, ainda à espreita de uma possibilidade de promover oimpeachment da presidenta. Mantega e Miriam estarão de plantão até a lei ser votada. Ou para o caso de não ser votada e exigir uma solução milagrosa.
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