Por Helena Martins, no site do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC):
O que a sociedade brasileira assistiu nos últimos dias certamente precisará de tempo, debate e maturação para ser compreendido em toda a sua complexidade. É difícil, por meio de análises rápidas, muitas vezes absolutamente polarizadas e impregnadas pelo calor dos acontecimentos, analisar a indignação e o direcionamento que tem sido dado a ela. Esquerdas e direitas se defrontam agora com o desafio de disputar os rumos do que está posto, testando sua capacidade convocatória e a adesão aos diferentes programas e alternativas societárias.
No entanto, uma questão que sem dúvida salta aos olhos é a centralidade que os meios de comunicação ocupam neste momento. Centralidade que está na internet e nas possibilidades que se abrem de constituição de diferentes formas de fazer política; nos meios tradicionais de comunicação, em especial a televisão, que mais uma vez mostraram capacidade de influência na leitura dos processos em curso, ao produzirem e divulgarem um discurso hegemônico; ou mesmo nas novas ferramentas como o whatsapp, que tornaram massivas mensagens muitas vezes anônimas e conteúdos que dispensam o contraditório. São as formas de se organizar, conhecer, debater e pensar que estão mudando. E a configuração atual das mídias está estreitamente vinculada a isso, com impactos ainda difíceis de precisar.
Diriam os funcionalistas que um dos papeis que a mídia cumpre na sociedade é exatamente buscar apresentar respostas comuns aos problemas sociais. Por mais que essa seja uma perspectiva incapaz de apreender toda a complexidade do processo comunicacional, certamente ainda é orientadora das ações de empresas de comunicação que buscam, devido aos seus próprios interesses, influenciar as respostas que a sociedade deverá dar para os problemas sociais. É o que tentam fazer agora diante da profunda crise política que o país vivencia.
Durante a cobertura dos protestos do 15 de março, a repetição do argumento, por exemplo, buscou eliminar as diversas possibilidades de leitura dos fatos. Passamos todo o domingo ouvindo um mantra que tinha como início a afirmação de que as manifestações foram espontâneas e não contaram com a presença de partidos, embora algumas das agremiações mais conservadoras da sociedade tenham ido inclusive à mídia convocar os protestos. Passava pela garantia de que os atos eram pacíficos, afinal a cobertura das jornadas de junho e de seus desdobramentos mostrou como o destaque à violência serve para esvaziar as mobilizações. E terminava com a afirmação de que se tratou de um conjunto de atos em defesa da democracia.
Se todo o exposto carece de outras abordagens, este último ponto, de cara, carece é de indignação. Não, não é possível reduzir o que aconteceu a um ato em defesa da democracia. Não é possível ignorar as manifestações explicitamente contrárias ao regime atual e que pediam o impeachment, uma intervenção militar, o fim do Supremo Tribunal Federal (STF) e outras saídas absolutamente conservadoras e certamente danosas para a sociedade. Não é possível silenciar diante das defesas do fim da diversidade de pensamento, das quais não escaparam Karl Marx ou Paulo Freire, muito menos ignorar as agressões às mulheres e aos homossexuais, atingidos por palavras de ordem que, se não quebram vidraças, certamente violentam profundamente esses grupos e todos e todas nós que nos solidarizamos e juntamos a eles.
No dia em que registramos os 30 anos da volta ao regime democrático em nosso país, a história foi esquecida. As torturas, a ausência até da possibilidade de protestar, o distanciamento da população da vida política do país e toda a luta para a conquista da democracia foram ignorados. O presente foi apresentado como totalidade diante de um passado que se nega e um futuro que não se questiona. Seria preciso ao menos recordar, palavra que, como certa vez lembrou Eduardo Galeano, significa voltar a passar pelo coração. Por quê? Porque não deixa de assustar que os sombrios anos ditatoriais sejam agora exaltados por uma parcela da população, muitos jovens inclusive, que deveria querer viver, se expressar livremente e nutrir amor pelo outro, pela humanidade.
Ao contrário, na cobertura de domingo não houve espaço para fazer do passado um elemento central para a problematização da situação presente, da crise mundial ao desgaste da política institucional. Perdeu-se a oportunidade de negar as saídas golpistas que estão sendo apresentadas, contextualizar a origem dos problemas, apresentar outras saídas e também de gerar a pergunta que deveria ser feita tanto por quem saiu às ruas no dia 13 quanto no dia 15: o que devemos fazer com a indignação que nos atravessa, seja pelos cortes nos direitos, a corrupção ou pela falência do sistema político atual?
À mídia hegemônica nada disso interessa. Irresponsável, tomada pelo desejo de sangrar o governo e com isso ampliar sua centralidade política e a barganha, fez de sua programação dominical um efetivo instrumento de convocação às ruas. E começou logo cedo, ao vivo, com helicópteros, plantões ao longo da programação e o que mais fosse necessário para garantir ares grandiosos aos protestos, mesmo quando a quantidade de pessoas ainda não justificava tamanha cobertura. Esta, aliás, foi por todo o dia animada por comentaristas e pelos tais especialistas que compartilhavam essencialmente das mesmas posições políticas.
Se os exemplos do passado, como o golpe de 1964 e as Diretas Já, não deixavam esquecer a centralidade da mídia na política, o que vimos nos últimos dias e o que veremos nos próximos devem ser lidos à luz de uma questão: qual o papel atual da mídia na democracia brasileira? Isso está em jogo e pode ser determinante. Seja para garantir a vitória de uma reação mais conservadora ou para alargar os horizontes da nossa pobre democracia, carente de participação direta, de controle popular sobre os mandatos, de transparência e de espaços para que as diversas opiniões sejam conhecidas e problematizadas de fato.
Vivemos em uma sociedade mediada pelos meios de comunicação. Meios – ou melhor, instituições – que são detentores de interesses políticos e econômicos. Essa mediação tanto interfere na agenda política quanto no próprio fazer político, hoje indissociável da comunicação. Por isso, quando defendemos e lutamos pela democratização das comunicações, temos em vista exatamente a necessidade de que múltiplas vozes circulem nos espaços de socialização e construção de sentidos. Temos em vista a necessidade desses meios, sobretudo dos que usam uma concessão pública para chegar aos nossos lares, serem debatidos, acompanhados e regulados pelo Estado, tomado aqui em seu sentido ampliado. Tudo isso para que, por exemplo, não sejam usados para atentar contra direitos, como vemos cotidianamente, e a própria democracia.
Se a sociedade em geral e as esquerdas, em particular, não entenderam a importância dessa pauta, o dia de ontem não deixa dúvidas. Os setores mais conservadores se valeram da mídia e certamente aprovaram os resultados de termos, ainda hoje, um sistema de comunicação marcado pelo oligopólio midiático e pelo atrelamento aos históricos donos do poder.
* Helena Martins é doutoranda em Comunicação Social pela UnB, integrante do Intervozes e representante do coletivo no Conselho Nacional de Direitos Humanos.
No entanto, uma questão que sem dúvida salta aos olhos é a centralidade que os meios de comunicação ocupam neste momento. Centralidade que está na internet e nas possibilidades que se abrem de constituição de diferentes formas de fazer política; nos meios tradicionais de comunicação, em especial a televisão, que mais uma vez mostraram capacidade de influência na leitura dos processos em curso, ao produzirem e divulgarem um discurso hegemônico; ou mesmo nas novas ferramentas como o whatsapp, que tornaram massivas mensagens muitas vezes anônimas e conteúdos que dispensam o contraditório. São as formas de se organizar, conhecer, debater e pensar que estão mudando. E a configuração atual das mídias está estreitamente vinculada a isso, com impactos ainda difíceis de precisar.
Diriam os funcionalistas que um dos papeis que a mídia cumpre na sociedade é exatamente buscar apresentar respostas comuns aos problemas sociais. Por mais que essa seja uma perspectiva incapaz de apreender toda a complexidade do processo comunicacional, certamente ainda é orientadora das ações de empresas de comunicação que buscam, devido aos seus próprios interesses, influenciar as respostas que a sociedade deverá dar para os problemas sociais. É o que tentam fazer agora diante da profunda crise política que o país vivencia.
Durante a cobertura dos protestos do 15 de março, a repetição do argumento, por exemplo, buscou eliminar as diversas possibilidades de leitura dos fatos. Passamos todo o domingo ouvindo um mantra que tinha como início a afirmação de que as manifestações foram espontâneas e não contaram com a presença de partidos, embora algumas das agremiações mais conservadoras da sociedade tenham ido inclusive à mídia convocar os protestos. Passava pela garantia de que os atos eram pacíficos, afinal a cobertura das jornadas de junho e de seus desdobramentos mostrou como o destaque à violência serve para esvaziar as mobilizações. E terminava com a afirmação de que se tratou de um conjunto de atos em defesa da democracia.
Se todo o exposto carece de outras abordagens, este último ponto, de cara, carece é de indignação. Não, não é possível reduzir o que aconteceu a um ato em defesa da democracia. Não é possível ignorar as manifestações explicitamente contrárias ao regime atual e que pediam o impeachment, uma intervenção militar, o fim do Supremo Tribunal Federal (STF) e outras saídas absolutamente conservadoras e certamente danosas para a sociedade. Não é possível silenciar diante das defesas do fim da diversidade de pensamento, das quais não escaparam Karl Marx ou Paulo Freire, muito menos ignorar as agressões às mulheres e aos homossexuais, atingidos por palavras de ordem que, se não quebram vidraças, certamente violentam profundamente esses grupos e todos e todas nós que nos solidarizamos e juntamos a eles.
No dia em que registramos os 30 anos da volta ao regime democrático em nosso país, a história foi esquecida. As torturas, a ausência até da possibilidade de protestar, o distanciamento da população da vida política do país e toda a luta para a conquista da democracia foram ignorados. O presente foi apresentado como totalidade diante de um passado que se nega e um futuro que não se questiona. Seria preciso ao menos recordar, palavra que, como certa vez lembrou Eduardo Galeano, significa voltar a passar pelo coração. Por quê? Porque não deixa de assustar que os sombrios anos ditatoriais sejam agora exaltados por uma parcela da população, muitos jovens inclusive, que deveria querer viver, se expressar livremente e nutrir amor pelo outro, pela humanidade.
Ao contrário, na cobertura de domingo não houve espaço para fazer do passado um elemento central para a problematização da situação presente, da crise mundial ao desgaste da política institucional. Perdeu-se a oportunidade de negar as saídas golpistas que estão sendo apresentadas, contextualizar a origem dos problemas, apresentar outras saídas e também de gerar a pergunta que deveria ser feita tanto por quem saiu às ruas no dia 13 quanto no dia 15: o que devemos fazer com a indignação que nos atravessa, seja pelos cortes nos direitos, a corrupção ou pela falência do sistema político atual?
À mídia hegemônica nada disso interessa. Irresponsável, tomada pelo desejo de sangrar o governo e com isso ampliar sua centralidade política e a barganha, fez de sua programação dominical um efetivo instrumento de convocação às ruas. E começou logo cedo, ao vivo, com helicópteros, plantões ao longo da programação e o que mais fosse necessário para garantir ares grandiosos aos protestos, mesmo quando a quantidade de pessoas ainda não justificava tamanha cobertura. Esta, aliás, foi por todo o dia animada por comentaristas e pelos tais especialistas que compartilhavam essencialmente das mesmas posições políticas.
Se os exemplos do passado, como o golpe de 1964 e as Diretas Já, não deixavam esquecer a centralidade da mídia na política, o que vimos nos últimos dias e o que veremos nos próximos devem ser lidos à luz de uma questão: qual o papel atual da mídia na democracia brasileira? Isso está em jogo e pode ser determinante. Seja para garantir a vitória de uma reação mais conservadora ou para alargar os horizontes da nossa pobre democracia, carente de participação direta, de controle popular sobre os mandatos, de transparência e de espaços para que as diversas opiniões sejam conhecidas e problematizadas de fato.
Vivemos em uma sociedade mediada pelos meios de comunicação. Meios – ou melhor, instituições – que são detentores de interesses políticos e econômicos. Essa mediação tanto interfere na agenda política quanto no próprio fazer político, hoje indissociável da comunicação. Por isso, quando defendemos e lutamos pela democratização das comunicações, temos em vista exatamente a necessidade de que múltiplas vozes circulem nos espaços de socialização e construção de sentidos. Temos em vista a necessidade desses meios, sobretudo dos que usam uma concessão pública para chegar aos nossos lares, serem debatidos, acompanhados e regulados pelo Estado, tomado aqui em seu sentido ampliado. Tudo isso para que, por exemplo, não sejam usados para atentar contra direitos, como vemos cotidianamente, e a própria democracia.
Se a sociedade em geral e as esquerdas, em particular, não entenderam a importância dessa pauta, o dia de ontem não deixa dúvidas. Os setores mais conservadores se valeram da mídia e certamente aprovaram os resultados de termos, ainda hoje, um sistema de comunicação marcado pelo oligopólio midiático e pelo atrelamento aos históricos donos do poder.
* Helena Martins é doutoranda em Comunicação Social pela UnB, integrante do Intervozes e representante do coletivo no Conselho Nacional de Direitos Humanos.
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