Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
O 247 teve acesso a um conjunto de documentos que apontam fatos graves e inaceitáveis sobre as escutas telefônicas realizadas na carceragem da Polícia Federal, em Curitiba. Chamado para prestar depoimento sobre o assunto na CPI da Petrobras, o Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, a quem a Polícia Federal está subordinada, ao menos formalmente, disse que é muito cedo para tomar qualquer medida contra os envolvidos. Apesar do reconhecido talento para fazer pronunciamentos, Cardozo não convenceu. A bancada do PT sorria amarelo durante suas explicações. Integrantes da base aliada bateram duro.
"Ou o ministro está sendo iludido por seus subordinados, e aí temos um caso de quebra de confiança. Ou então ele sabe o que está acontecendo e não cumpre a obrigação de pelo menos afastar os acusados até que tudo seja esclarecido," afirma o deputado Aluisio Mendes (PSDC-MA), que também é delegado da Polícia Federal, onde acumulou 25 anos de experiência. Em declarações firmadas e rubricadas pelos próprios colegas, delegados são apontados em atitudes de desrespeito à lei. Também são acusados de tentar incriminar, deliberadamente, pessoas inocentes, num esforço para acobertar os verdadeiros envolvidos.
Depois da leitura dos papéis -- emails, despachos, sindicâncias, assinados por seus responsáveis -- é difícil deixar de colocar em questão a capacidade do núcleo de delegados que comanda a Lava Jato para conduzir a operação de forma "isenta e justa, não para punir os inimigos da administração, mas sim os verdadeiros criminosos", como escreve o delegado Mario Renato Castanheira Fanton.
Num despacho de 37 itens, Fanton, que foi deslocado de Bauru, em São Paulo, para investigar uma denúncia de vazamentos sobre a Lava Jato, ainda no ano passado, revela que acabou se deparando com fatos muito mais sérios e escandalosos.
Em abril de 2014, como se sabe, Alberto Youssef denunciou que havia encontrado um aparelho de escuta ambiental na cela 5 da carceragem, que dividia com o ex-diretor de Abastecimento da Petrobras, Paulo Roberto Costa. A denúncia foi feita pelo próprio Youssef, que deixou-se fotografar, magro e barbudo, no parlatório da PF, pelo celular de seu advogado, com o aparelho de escuta não. A denúncia ocorreu num momento inicial da Operação: quando ninguém sabia se estava diante do "maior escândalo da República", como os meios de comunicação anunciariam nos meses seguintes, ou de mais uma investigação sobre lavagem de dinheiro, envolvendo um pequeno doleiro que operava num posto de gasolina de Brasília, um grande doleiro com conexões internacionais e um ex-diretor da Petrobras que ninguém sabia direito o que estava fazendo na história.
O caso gerou um pequeno escândalo nos jornais mas, quatro meses depois, um despacho interno da Polícia Federal de Curitiba, de 20 laudas, sustentava que a denúncia se baseava em provas falsas. Alegou-se que aquele grampo exibido por Youssef era pura encenação. Estava fora de uso e havia sido empregado para fazer escuta na mesma cela 5, mas em outro momento: quando ali ficou preso o traficante Fernando Beira Mar. No despacho, cuidou-se de lembrar que tudo aquilo que dizia respeito a este grampo estava em ordem e dentro da lei. Foram reproduzidos, inclusive, trechos do documento no qual juiz Odilon de Oliveira, do Mato Grosso do Sul, autorizava a escuta na cela de Beira-Mar.
O 247 teve acesso a um conjunto de documentos que apontam fatos graves e inaceitáveis sobre as escutas telefônicas realizadas na carceragem da Polícia Federal, em Curitiba. Chamado para prestar depoimento sobre o assunto na CPI da Petrobras, o Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, a quem a Polícia Federal está subordinada, ao menos formalmente, disse que é muito cedo para tomar qualquer medida contra os envolvidos. Apesar do reconhecido talento para fazer pronunciamentos, Cardozo não convenceu. A bancada do PT sorria amarelo durante suas explicações. Integrantes da base aliada bateram duro.
"Ou o ministro está sendo iludido por seus subordinados, e aí temos um caso de quebra de confiança. Ou então ele sabe o que está acontecendo e não cumpre a obrigação de pelo menos afastar os acusados até que tudo seja esclarecido," afirma o deputado Aluisio Mendes (PSDC-MA), que também é delegado da Polícia Federal, onde acumulou 25 anos de experiência. Em declarações firmadas e rubricadas pelos próprios colegas, delegados são apontados em atitudes de desrespeito à lei. Também são acusados de tentar incriminar, deliberadamente, pessoas inocentes, num esforço para acobertar os verdadeiros envolvidos.
Depois da leitura dos papéis -- emails, despachos, sindicâncias, assinados por seus responsáveis -- é difícil deixar de colocar em questão a capacidade do núcleo de delegados que comanda a Lava Jato para conduzir a operação de forma "isenta e justa, não para punir os inimigos da administração, mas sim os verdadeiros criminosos", como escreve o delegado Mario Renato Castanheira Fanton.
Num despacho de 37 itens, Fanton, que foi deslocado de Bauru, em São Paulo, para investigar uma denúncia de vazamentos sobre a Lava Jato, ainda no ano passado, revela que acabou se deparando com fatos muito mais sérios e escandalosos.
Em abril de 2014, como se sabe, Alberto Youssef denunciou que havia encontrado um aparelho de escuta ambiental na cela 5 da carceragem, que dividia com o ex-diretor de Abastecimento da Petrobras, Paulo Roberto Costa. A denúncia foi feita pelo próprio Youssef, que deixou-se fotografar, magro e barbudo, no parlatório da PF, pelo celular de seu advogado, com o aparelho de escuta não. A denúncia ocorreu num momento inicial da Operação: quando ninguém sabia se estava diante do "maior escândalo da República", como os meios de comunicação anunciariam nos meses seguintes, ou de mais uma investigação sobre lavagem de dinheiro, envolvendo um pequeno doleiro que operava num posto de gasolina de Brasília, um grande doleiro com conexões internacionais e um ex-diretor da Petrobras que ninguém sabia direito o que estava fazendo na história.
O caso gerou um pequeno escândalo nos jornais mas, quatro meses depois, um despacho interno da Polícia Federal de Curitiba, de 20 laudas, sustentava que a denúncia se baseava em provas falsas. Alegou-se que aquele grampo exibido por Youssef era pura encenação. Estava fora de uso e havia sido empregado para fazer escuta na mesma cela 5, mas em outro momento: quando ali ficou preso o traficante Fernando Beira Mar. No despacho, cuidou-se de lembrar que tudo aquilo que dizia respeito a este grampo estava em ordem e dentro da lei. Foram reproduzidos, inclusive, trechos do documento no qual juiz Odilon de Oliveira, do Mato Grosso do Sul, autorizava a escuta na cela de Beira-Mar.
Também se disse que a própria polícia - e não Youssef - havia descoberto o aparelho de escuta, ao entrar na carceragem para atender uma emergência -- um funcionário sofrera um princípio de enfarte - e também para averiguar uma denúncia de uso indevido de celular por parte dos detentos. A explicação parecia verossímil e logo esta versão recebeu crédito dos meios de comunicação. Havia um problema elementar, porém: as pessoas, os fatos e as datas não batiam. A possível credibilidade de que a escuta servira para monitorar um dos maiores traficantes brasileiros recebeu um atestado de óbito depois que o delegado Fanton fez uma pesquisa nos arquivos da PF de Curitiba - como o deputado-delegado Aluisio Mendes denunciou na CPI, ontem. Fanton descobriu, através de uma nota fiscal eletrônica, que o equipamento só dera entrada na PF do Paraná seis meses depois que Fernandinho Beira Mar já havia sido encaminhado para outro presídio. Num registro, Fanton observou que, durante o período em que Beira Mar ficou prisioneiro, a escuta "sequer existia para a Polícia Federal." No inquérito, a nota está anexada.
O ponto crucial, que tornava tudo muito mais grave, envolvia a legalidade da operação. A versão de que a escuta destinava-se a acompanhar Beira Mar tinha a utilidade de vir acompanhada pela autorização do juiz do Mato Grosso do Sul, suprindo uma lacuna fatal no caso de Youssef. Não havia uma autorização judicial para que ele ou Paulo Roberto Costa fossem escutados na carceragem, o que podia transformar uma derrapagem banal em tantas operações num crime sério, punido pela Constituição, capaz de anular a investigação, conforme jurisprudência firmada pelo próprio Supremo Tribunal Federal.
A primeira pessoa fora da Polícia Federal a saber da denúncia de Youssef foi um delegado da Polícia Civil do Paraná, a quem o advogado contou o que acontecera em sua última visita. A primeira atitude do delegado foi ligar para a PF, informando de tudo. Colocou-se em movimento, então, uma máquina que, conforme os documentos obtidos pelo 247, destinava-se a minimizar estragos, diminuir prejuízos, alterando provas e testemunhos.
Em função de outra investigação, o perito Dalmey Fernando Werlang, que havia instalado o grampo, agora se encontrava em Belo Horizonte, trabalhando em outro caso. Localizado pelo whatsapp, Dalmey recebeu uma mensagem na qual um agente, em Curitiba, mandava uma foto, perguntando se era aquele o equipamento que fora colocado na cela. Dalmey indicou que sim. Depois de retornar a Curitiba, o perito recebeu em sua sala o delegado Igor Romário de Paula, o chefe da Operação Lava Jato. O delegado queria falar sobre o equipamento de escuta.
Era um assunto natural para os dois. Conforme Dalmey deixou registrado num "Termo de Depoimento" rubricado e assinado em 4 de maio de 2015 -- onze meses depois de o caso explodir -- o próprio Igor estivera em sua sala, um ano antes, em companhia de outros dois delegados, para determinar que fizesse a instalação: um deles, Márcio Adriano Anselmo, estava envolvido diretamente na Lava Jato, o outro era Rosalvo Franco, o próprio superintendente regional da PF.
Num ponto da conversa, depois da denúncia, Dalmey perguntou a Igor se havia "alvará". Conta que recebeu a seguinte resposta: "pior é que não". Foi somente ali, sustenta o perito, que ocupa um posto subalterno na hierarquia das operações, que ele "tomou ciência" de que a escuta que lhe fora pedida "era clandestina/ilegal."
Dalmey também descreve a rotina que seguiu enquanto a escuta esteve ativa. Era um equipamento moderno, que podia ser ligado ou desligado por controle remoto. A cada 24 horas, ou no máximo 48 horas, o próprio Dalmey baixava os arquivos eletrônicos da escuta na cela, transferia as informações para um pen-drive, que entregava ao delegado Márcio Anselmo. Quando este não podia receber, o arquivo era entregue a uma delegada, Erika Marena.
Nos dias seguintes à conversa com Igor Romário, Dalmey soube que fora aberta uma sindicância interna sobre o caso. Imaginava que seria ouvido, pelo seu papel central em todo o caso, mas isso não aconteceu. Como se nada tivesse a ver com aquilo, apenas lhe pediram "um tipo de consulta técnica," na qual confirmou uma opinião que, mesmo verdadeira, ajudava a sustentar acobertamento da operação ainda que fosse rigorosamente inócua. Perguntado sobre as condições de funcionamento do aparelho, disse que este já não funcionava, o que exigia grau zero de conhecimento especializado, pois fora destruído por Youssef no momento em que foi apresentado ao advogado.
Dalmey tinha muito mais para dizer, mas nada mais lhe perguntaram. Na Polícia Federal desde 2003, lembrava-se não só da escuta na cela de Youssef. Ele também havia instalado a escuta que monitorou Fernando Beira-Mar.
Dalmey é visto como um dos melhores peritos em escutas ambientais em atividade na Polícia Federal. Fez cursos no exterior e era requisitado para missões fora do Paraná. Na viagem a Belo Horizonte, havia instalado uma escuta -- autorizada pela Justiça -- no gabinete de um juiz suspeito. No caso da Lava Jato, Dalmey era uma peça-chave.
No termo de depoimento, dá nomes de testemunhas que podem ajudar a reconstituir sua história. Fala de três agentes que, em momentos diversos, foram colocados a par da instalação na cela 5.
O delegado Fanton foi levado a Curitiba para apurar as origens de denúncias de vazamentos sobre a Lava Jato que chegavam aos meios de comunicação. Naquele momento, os questionamentos sobre a versão Beira Mar não passavam das conversas de corredor e fora do local de trabalho. Parecia, até, que a lenda em torno de Beira Mar parecia bem encaminhada.
Fanton deixa claro em seu despacho que enfrentou problemas também para investigar os vazamentos, sempre preocupantes mas muito menos graves do que um crime de escuta proibida pela Constituição. O delegado revela que logo percebeu a existência de um esquema de pistas falsas e indícios prontos com a intenção óbvia de conduzir o trabalho para a direção em que Igor e outros delegados pretendiam. Com isso, escreve, ele era afastado das suspeitas que lhe pareciam mais consistentes, localizadas no Núcleo de Inteligência da Polícia. Fanton deixou registrado que este "setor é o responsável pelo maior número de vazamentos da Superintendência regional."
Um detalhe torna tudo mais complicado. A delegada Daniele, chefe no NIP, é casada com o delegado Igor. Não há nada ilegal no matrimônio, estamos falando de profissionais concursados, mas é fácil perceber que a situação assegura ao casal de policiais um protagonismo raro, nos dois postos mais importantes da atividade policial naquela que muitos veem como a investigação mais importante da história da PF brasileira.
Referindo-se a outro inquérito sobre vazamentos, número 768/2014, Fanton descreve uma situação na qual marido e mulher executam tarefas policiais em companhia de um terceiro delegado, próximo de ambos. Igor e sua esposa "foram ouvidos como testemunhas", conta. Depois, Igor profere uns "3 ou 4 despachos, pedindo diligências ao Núcleo de Inteligência, na pessoa de sua esposa." Por fim, os autos foram entregues ao próprio Fanton, que foi orientado pelo delegado Igor "que o vazamento teria sido feito, provavelmente, por um agente que estava em missão no NIP e que era do setor de contra informação da DIP em Brasília."
Viveiro de ciúmes, disputas profissionais comuns em corporações do setor público e do setor privado, também, a Polícia Federal é habitada dos clãs, grupos e correntes de lealdade e inimigos jurados -- em Curitiba e no resto do país. A pergunta é saber como os responsáveis lidam com isso.
As idas e voltas da escuta ilegal geraram grande falatório, como era de se imaginar. Havia os aliados e os descontentes com a chefia. A doleira Nelma Kodama, ligada a Youssef e que foi presa, contou que seu advogado chegou a ouvir dois agentes que externavam "indignação e revolta com os procedimentos envolvendo a Lava Jato." Interessado em incluir as revelações de Nelma em sua investigação, Fanton revela que chegou a ser ameaçado por um delegado, que disse que neste caso "diria que tudo o que disse era mentira."
Em seu depoimento reservado aos integrantes da CPI, o perito Dalmey, lotado no Núcleo de Inteligência, da delegada Daniele, contou que foi acionado para instalar um segunda escuta ambiental, no interior de uma lâmpada. O objetivo, desta vez, não era ouvir suspeitos nem criminosos condenados. Obviamente, não se pensou em pedir autorização a um juiz. O que se pretendia era captar as conversas de delegados e agentes que costumavam fazer críticas a condução das investigações. Dalmey diz que esse grampo foi retirado quando a denúncia na cela 5 tornou-se um pequeno escândalo interno.
O fato de haver um Fla X Flu interno não pode impedir uma apuração necessária, capaz de separar a verdade da mentira - sempre indispensável num organismo essencial para a segurança dos brasileiros. Mantida com recursos públicos para apurar e punir crimes, a PF não pode ser suspeita de adotar métodos criminosos, ainda que aprovação da população à Lava Jato ajude a blindar e a própria corporação.
Quando as denúncias sobre o grampo surgiram, os delegados sequer sentiram necessidade de defender-se. O Ministério Público saiu em defesa deles:
- "A população, os mais diversos setores da mídia e o próprio Poder Judiciário saberão separar os fatos, que se espera venham a surgir límpidos e claros das investigações, de outras versões, ingênuas ou até mesmo criminosas, que interesses escusos insistem em propagar."
É sempre oportuno lembrar que, após a aceitação generalizada das delações premiadas como expressão da verdade nos tribunais, fica moralmente complicado questionar denúncias em função de "interesses", escusos, ou não, que possam ter por trás, certo? Essa é a lógica que move a Operação, certo?
A visão de que índices de popularidade podem ajudar a encobrir práticas criminosas e condenáveis faz parte da ruína de variados sonhos políticos de nosso tempo.
Os mesmos jornais que hoje celebram as autoridades da Lava Jato em tom heróico reservaram tratamento semelhante a Sérgio de Paranhos Fleury e outros responsáveis pela tortura da ditadura. Pessoas que hoje são saudadas merecidamente como "combatentes" contra a ditadura chegavam a ouvir gritos de "morte aos terroristas!" quando eram presos na rua.
A defesa antecipada dos acusados pela escuta clandestina não é um raio num céu azul.
Envolve na verdade uma visão flexível na defesa das garantias constitucionais, que podem ser vistas como um caso de conveniência, de oportunidade, e não um direito fundamental, intransponível, da República.
Há poucos meses, perdido entre um conjunto de sugestões teóricas para aprimorar o combate à corrupção, o Ministério Público incluiu uma ideia curiosa. Numa conjuntura em que as suspeitas de escuta ilegal em Curitiba eram segredo quase absoluto para a maioria da população, mas aqueciam os bastidores da Lava Jato, os procuradores defenderam a aceitação de provas obtidas de modo ilícito. A ideia causou merecido escândalo no Supremo, produzindo um afinado coro de críticas onde se destacaram Marco Aurélio Mello e Gilmar Mendes.
O projeto de autorizar provas ilícitas pode ter sido uma simples coincidência. Ou pode ser um caso pensado. Quem sabe?
Eu acho que ajuda a perceber que determinados inimigos do governo conseguem enxergar alguns passos à frente.
Como ocorre com toda denúncia grave, com credibilidade fora de questão, o importante é examinar os fatos, as provas e tirar conclusões inevitáveis, "doa a quem doer." Foi o que disse o delegado geral da Polícia Federal, Leandro Dayello, referindo-se aos trabalhos -- legais, evidentemente -- da Lava Jato.
Compreende-se a postura do ministro José Eduardo Cardozo, ontem, dizendo que é errado anunciar qualquer punição antes que a apuração tenha terminado. É assim que as coisas funcionam -- ou pelo menos devem funcionar -- num Estado Democrático de Direito: apura-se primeiro, pune-se depois, certo?
Mas, até pela importância política do caso, é preocupante ouvir que a sindicância sequer tem prazo para terminar. E é difícil imaginar que, até lá, nenhuma medida disciplinar pode ser tomada. Até porque não é verdade.
Em Curitiba, os chefes já tomaram providência. Ninguém foi condenado, obviamente.
Mas o pedido para Mario Fanton permanecer por uma nova temporada no Paraná não foi renovado, medida que deve afastá-lo dos contatos e depoimentos que ajudaram em suas investigações. Assim, burocraticamente.
Chegaram a dizer a Fanton que a permanência em Curitiba não fora autorizada pelos chefes de São Paulo. Ele decidiu checar e soube que sequer tinham pedido para que permanecesse no Paraná.
O perito Dalmey - especialista em escuta - foi afastado do Núcleo de Inteligência, e hoje atua em outra área da Superintendência. Foi colocado a disposição, eufemismo para definir o funcionário colocado na geladeira. Num email que enviou ao delegado Fanton, Dalmey revelou que seu afastamento das tarefas na área de sua especialidade se deveu a "quebra de confiança."
Deu para entender, certo?
O ponto crucial, que tornava tudo muito mais grave, envolvia a legalidade da operação. A versão de que a escuta destinava-se a acompanhar Beira Mar tinha a utilidade de vir acompanhada pela autorização do juiz do Mato Grosso do Sul, suprindo uma lacuna fatal no caso de Youssef. Não havia uma autorização judicial para que ele ou Paulo Roberto Costa fossem escutados na carceragem, o que podia transformar uma derrapagem banal em tantas operações num crime sério, punido pela Constituição, capaz de anular a investigação, conforme jurisprudência firmada pelo próprio Supremo Tribunal Federal.
A primeira pessoa fora da Polícia Federal a saber da denúncia de Youssef foi um delegado da Polícia Civil do Paraná, a quem o advogado contou o que acontecera em sua última visita. A primeira atitude do delegado foi ligar para a PF, informando de tudo. Colocou-se em movimento, então, uma máquina que, conforme os documentos obtidos pelo 247, destinava-se a minimizar estragos, diminuir prejuízos, alterando provas e testemunhos.
Em função de outra investigação, o perito Dalmey Fernando Werlang, que havia instalado o grampo, agora se encontrava em Belo Horizonte, trabalhando em outro caso. Localizado pelo whatsapp, Dalmey recebeu uma mensagem na qual um agente, em Curitiba, mandava uma foto, perguntando se era aquele o equipamento que fora colocado na cela. Dalmey indicou que sim. Depois de retornar a Curitiba, o perito recebeu em sua sala o delegado Igor Romário de Paula, o chefe da Operação Lava Jato. O delegado queria falar sobre o equipamento de escuta.
Era um assunto natural para os dois. Conforme Dalmey deixou registrado num "Termo de Depoimento" rubricado e assinado em 4 de maio de 2015 -- onze meses depois de o caso explodir -- o próprio Igor estivera em sua sala, um ano antes, em companhia de outros dois delegados, para determinar que fizesse a instalação: um deles, Márcio Adriano Anselmo, estava envolvido diretamente na Lava Jato, o outro era Rosalvo Franco, o próprio superintendente regional da PF.
Num ponto da conversa, depois da denúncia, Dalmey perguntou a Igor se havia "alvará". Conta que recebeu a seguinte resposta: "pior é que não". Foi somente ali, sustenta o perito, que ocupa um posto subalterno na hierarquia das operações, que ele "tomou ciência" de que a escuta que lhe fora pedida "era clandestina/ilegal."
Dalmey também descreve a rotina que seguiu enquanto a escuta esteve ativa. Era um equipamento moderno, que podia ser ligado ou desligado por controle remoto. A cada 24 horas, ou no máximo 48 horas, o próprio Dalmey baixava os arquivos eletrônicos da escuta na cela, transferia as informações para um pen-drive, que entregava ao delegado Márcio Anselmo. Quando este não podia receber, o arquivo era entregue a uma delegada, Erika Marena.
Nos dias seguintes à conversa com Igor Romário, Dalmey soube que fora aberta uma sindicância interna sobre o caso. Imaginava que seria ouvido, pelo seu papel central em todo o caso, mas isso não aconteceu. Como se nada tivesse a ver com aquilo, apenas lhe pediram "um tipo de consulta técnica," na qual confirmou uma opinião que, mesmo verdadeira, ajudava a sustentar acobertamento da operação ainda que fosse rigorosamente inócua. Perguntado sobre as condições de funcionamento do aparelho, disse que este já não funcionava, o que exigia grau zero de conhecimento especializado, pois fora destruído por Youssef no momento em que foi apresentado ao advogado.
Dalmey tinha muito mais para dizer, mas nada mais lhe perguntaram. Na Polícia Federal desde 2003, lembrava-se não só da escuta na cela de Youssef. Ele também havia instalado a escuta que monitorou Fernando Beira-Mar.
Dalmey é visto como um dos melhores peritos em escutas ambientais em atividade na Polícia Federal. Fez cursos no exterior e era requisitado para missões fora do Paraná. Na viagem a Belo Horizonte, havia instalado uma escuta -- autorizada pela Justiça -- no gabinete de um juiz suspeito. No caso da Lava Jato, Dalmey era uma peça-chave.
No termo de depoimento, dá nomes de testemunhas que podem ajudar a reconstituir sua história. Fala de três agentes que, em momentos diversos, foram colocados a par da instalação na cela 5.
O delegado Fanton foi levado a Curitiba para apurar as origens de denúncias de vazamentos sobre a Lava Jato que chegavam aos meios de comunicação. Naquele momento, os questionamentos sobre a versão Beira Mar não passavam das conversas de corredor e fora do local de trabalho. Parecia, até, que a lenda em torno de Beira Mar parecia bem encaminhada.
Fanton deixa claro em seu despacho que enfrentou problemas também para investigar os vazamentos, sempre preocupantes mas muito menos graves do que um crime de escuta proibida pela Constituição. O delegado revela que logo percebeu a existência de um esquema de pistas falsas e indícios prontos com a intenção óbvia de conduzir o trabalho para a direção em que Igor e outros delegados pretendiam. Com isso, escreve, ele era afastado das suspeitas que lhe pareciam mais consistentes, localizadas no Núcleo de Inteligência da Polícia. Fanton deixou registrado que este "setor é o responsável pelo maior número de vazamentos da Superintendência regional."
Um detalhe torna tudo mais complicado. A delegada Daniele, chefe no NIP, é casada com o delegado Igor. Não há nada ilegal no matrimônio, estamos falando de profissionais concursados, mas é fácil perceber que a situação assegura ao casal de policiais um protagonismo raro, nos dois postos mais importantes da atividade policial naquela que muitos veem como a investigação mais importante da história da PF brasileira.
Referindo-se a outro inquérito sobre vazamentos, número 768/2014, Fanton descreve uma situação na qual marido e mulher executam tarefas policiais em companhia de um terceiro delegado, próximo de ambos. Igor e sua esposa "foram ouvidos como testemunhas", conta. Depois, Igor profere uns "3 ou 4 despachos, pedindo diligências ao Núcleo de Inteligência, na pessoa de sua esposa." Por fim, os autos foram entregues ao próprio Fanton, que foi orientado pelo delegado Igor "que o vazamento teria sido feito, provavelmente, por um agente que estava em missão no NIP e que era do setor de contra informação da DIP em Brasília."
Viveiro de ciúmes, disputas profissionais comuns em corporações do setor público e do setor privado, também, a Polícia Federal é habitada dos clãs, grupos e correntes de lealdade e inimigos jurados -- em Curitiba e no resto do país. A pergunta é saber como os responsáveis lidam com isso.
As idas e voltas da escuta ilegal geraram grande falatório, como era de se imaginar. Havia os aliados e os descontentes com a chefia. A doleira Nelma Kodama, ligada a Youssef e que foi presa, contou que seu advogado chegou a ouvir dois agentes que externavam "indignação e revolta com os procedimentos envolvendo a Lava Jato." Interessado em incluir as revelações de Nelma em sua investigação, Fanton revela que chegou a ser ameaçado por um delegado, que disse que neste caso "diria que tudo o que disse era mentira."
Em seu depoimento reservado aos integrantes da CPI, o perito Dalmey, lotado no Núcleo de Inteligência, da delegada Daniele, contou que foi acionado para instalar um segunda escuta ambiental, no interior de uma lâmpada. O objetivo, desta vez, não era ouvir suspeitos nem criminosos condenados. Obviamente, não se pensou em pedir autorização a um juiz. O que se pretendia era captar as conversas de delegados e agentes que costumavam fazer críticas a condução das investigações. Dalmey diz que esse grampo foi retirado quando a denúncia na cela 5 tornou-se um pequeno escândalo interno.
O fato de haver um Fla X Flu interno não pode impedir uma apuração necessária, capaz de separar a verdade da mentira - sempre indispensável num organismo essencial para a segurança dos brasileiros. Mantida com recursos públicos para apurar e punir crimes, a PF não pode ser suspeita de adotar métodos criminosos, ainda que aprovação da população à Lava Jato ajude a blindar e a própria corporação.
Quando as denúncias sobre o grampo surgiram, os delegados sequer sentiram necessidade de defender-se. O Ministério Público saiu em defesa deles:
- "A população, os mais diversos setores da mídia e o próprio Poder Judiciário saberão separar os fatos, que se espera venham a surgir límpidos e claros das investigações, de outras versões, ingênuas ou até mesmo criminosas, que interesses escusos insistem em propagar."
É sempre oportuno lembrar que, após a aceitação generalizada das delações premiadas como expressão da verdade nos tribunais, fica moralmente complicado questionar denúncias em função de "interesses", escusos, ou não, que possam ter por trás, certo? Essa é a lógica que move a Operação, certo?
A visão de que índices de popularidade podem ajudar a encobrir práticas criminosas e condenáveis faz parte da ruína de variados sonhos políticos de nosso tempo.
Os mesmos jornais que hoje celebram as autoridades da Lava Jato em tom heróico reservaram tratamento semelhante a Sérgio de Paranhos Fleury e outros responsáveis pela tortura da ditadura. Pessoas que hoje são saudadas merecidamente como "combatentes" contra a ditadura chegavam a ouvir gritos de "morte aos terroristas!" quando eram presos na rua.
A defesa antecipada dos acusados pela escuta clandestina não é um raio num céu azul.
Envolve na verdade uma visão flexível na defesa das garantias constitucionais, que podem ser vistas como um caso de conveniência, de oportunidade, e não um direito fundamental, intransponível, da República.
Há poucos meses, perdido entre um conjunto de sugestões teóricas para aprimorar o combate à corrupção, o Ministério Público incluiu uma ideia curiosa. Numa conjuntura em que as suspeitas de escuta ilegal em Curitiba eram segredo quase absoluto para a maioria da população, mas aqueciam os bastidores da Lava Jato, os procuradores defenderam a aceitação de provas obtidas de modo ilícito. A ideia causou merecido escândalo no Supremo, produzindo um afinado coro de críticas onde se destacaram Marco Aurélio Mello e Gilmar Mendes.
O projeto de autorizar provas ilícitas pode ter sido uma simples coincidência. Ou pode ser um caso pensado. Quem sabe?
Eu acho que ajuda a perceber que determinados inimigos do governo conseguem enxergar alguns passos à frente.
Como ocorre com toda denúncia grave, com credibilidade fora de questão, o importante é examinar os fatos, as provas e tirar conclusões inevitáveis, "doa a quem doer." Foi o que disse o delegado geral da Polícia Federal, Leandro Dayello, referindo-se aos trabalhos -- legais, evidentemente -- da Lava Jato.
Compreende-se a postura do ministro José Eduardo Cardozo, ontem, dizendo que é errado anunciar qualquer punição antes que a apuração tenha terminado. É assim que as coisas funcionam -- ou pelo menos devem funcionar -- num Estado Democrático de Direito: apura-se primeiro, pune-se depois, certo?
Mas, até pela importância política do caso, é preocupante ouvir que a sindicância sequer tem prazo para terminar. E é difícil imaginar que, até lá, nenhuma medida disciplinar pode ser tomada. Até porque não é verdade.
Em Curitiba, os chefes já tomaram providência. Ninguém foi condenado, obviamente.
Mas o pedido para Mario Fanton permanecer por uma nova temporada no Paraná não foi renovado, medida que deve afastá-lo dos contatos e depoimentos que ajudaram em suas investigações. Assim, burocraticamente.
Chegaram a dizer a Fanton que a permanência em Curitiba não fora autorizada pelos chefes de São Paulo. Ele decidiu checar e soube que sequer tinham pedido para que permanecesse no Paraná.
O perito Dalmey - especialista em escuta - foi afastado do Núcleo de Inteligência, e hoje atua em outra área da Superintendência. Foi colocado a disposição, eufemismo para definir o funcionário colocado na geladeira. Num email que enviou ao delegado Fanton, Dalmey revelou que seu afastamento das tarefas na área de sua especialidade se deveu a "quebra de confiança."
Deu para entender, certo?
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