Por Andréia Moassab e Marcos de Jesus, no site Outras Palavras:
O fato do discurso do deputado federal Sérgio Souza (PMDB/PR) sobre a extinção da UNILA (Universidade Federal da Integração Latino-americana) ser carregado de racismo, xenofobia e de ódio deveria, no mínimo, servir para que setores de esquerda entendam que a luta contra o capital é indissociável da luta contra o racismo, contra o patriarcado e contra tantas outras formas de dominação e de opressão. É preciso parar com debates teóricos hierarquizantes sobre qual luta é a mais fundamental. Não é casual que as duas universidades sob ameaça de extinção por canetadas de Brasília são propostas resultantes de lutas e reivindicações históricas do povo negro e do povo ameríndio, que os inserem em espaços tradicionalmente reservados às elites brancas brasileiras.
O REUNI – Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais, no qual estão incluídos os projetos da UNILA e da UNILAB (Universidade da Intergração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira), abriu mais de 18 novas universidades e viabilizou outros 173 novos campi, majoritariamente no interior do país. Foi o maior crescimento das universidades públicas do Brasil, desde a época de Juscelino Kubitschek. No entanto, as únicas universidades em risco iminente de fechar as portas são estes dois projetos de integração. Não são os projetos claramente populares, como é a Universidade Federal da Fronteira Sul, ameaçados de extinção. São os projetos que pretendem inserir corpos dissidentes, agora visibilizados, em terra brasilis, acostumada a ocultar o racismo.
Ao limitar o entendimento deste ataque apenas ao avanço do capital, limitam-se também as formas de luta e resistência. Descortinar o quanto a própria consolidação do capitalismo como sistema econômico dominante é tributário do domínio colonial, alicerçado pelo racismo e pelo patriarcado, é fundamental para vislumbramos outras relações de poder entranhadas nos modos de produção e dominação contemporâneos. A esse respeito, as reflexões de Lélia Gonzalez, intelectual negra brasileira, são bastante oportunas, sobretudo, quando afirma haver uma “evidente separação quanto ao espaço físico ocupado por dominadores e dominados”. Nesta divisão racial do espaço, a universidade é mais um dos ambientes da “casa grande”, cujo incômodo evidente ao ser ocupado pela população negra eclode no debate sobre as cotas raciais na última década.
Transformar a universidade do “Brasil para brasileiros”, como advoga o deputado sem quaisquer pudores, é uma afirmação profundamente racista. Inequivocamente o ultranacionalismo foi a base ideológica nazista, a qual pregava uma “Alemanha aos alemães”. A “lei do funcionalismo”, uma dos muitos decretos discriminatórios na época, exigia atestado de antecedentes arianos para os funcionários públicos no início dos anos 1930. No mesmo período, leis também restringiram as escolas e universidades unicamente a pessoas arianas. Vale lembrar que, de igual modo, naquela ocasião o capital convenientemente financiou o nazismo.
O discurso do “Brasil para brasileiros” é estrategicamente seletivo, na medida em que não é acionado contra imigrantes brancos vindos do Norte global. O sul do país, o Paraná e Foz do Iguaçu, se vangloriam das muitas nações formadoras de sua gente, dos poloneses, italianos e alemães, negando veementemente a existência do povo negro e indígena. No Paraná são aproximadamente 3 milhões de pessoas negras no Estado, quase o equivalente a toda população do Uruguai. Em Foz do Iguaçu, mais de 35% da população é negra. A despeito disso, a região sul pouco se reconhece como negra ou valoriza a herança africana na cultura local. O mesmo acontece para a sua população indígena.
A profunda racialização da América Latina no cenário internacional tem suas nuances próprias a partir da perspectiva brasileira, para quem o/a latino-americano/a é o Outro. O tratamento concedido a chilenos/as, argentinos/as e uruguaios/as, considerados/as brancos/as pelos/as brasileiros/as, é muito distinto daquele recebido por paraguaios/as, bolivianos/as ou equatorianos/as, por exemplo. A América Latina dos/as brancos/as (sic) é o lugar do civilizado, do urbano, do progresso, do elegante, do intelectual. A outra América Latina é atrasada, rural, pobre, subalterna, onde está a mão-de-obra para trabalhos mal pagos e não intelectual. É somente ao Brasil da elite branca que se refere o deputado Sérgio Souza ao clamar uma universidade “brasileira para brasileiros”. A mesma elite branca que exclui da universidade outros/as brasileiros/as, os/as negros/as e indígenas, que é contra as cotas étnico-raciais, que diminui a assistência estudantil, que rasga a CLT e que propõe uma vergonhosa reforma da previdência – todas medidas com impactos dramáticos para as populações negras e indígenas. O genocídio da população negra tem mais de 500 anos no país, pelas mãos do Estado ou com a sua cumplicidade, e se insinua, na atualidade, pelos altos índices de assassinatos de jovens negros da periferia em grandes centros urbanos. Os atuais retrocessos legislativos terão efeitos muito mais severos sobre a população negra, em especial, sobre as mulheres negras. Rafael Braga não permanece encarcerado por ser pobre. É por ser pobre e negro.
Ao analisarmos o racismo estrutural basilar da modernidade e formador da sociedade brasileira, é possível compreender a emenda aditiva que propõe a eliminação da UNILA como algo mais do que um conluio do agronegócio – é uma profunda marca do racismo brasileiro. O agronegócio e o grande capital no Paraná estão desmontando as universidades estaduais, os institutos federais, o ensino médio. Afinal, todas vêm sofrendo ataques nos últimos anos, mesmo sendo instituições de ensino “do Paraná para paranaenses”. Mas, apenas a UNILA evoca um enunciado tão forte como a retomada de uma “universidade brasileira para brasileiros”. Uma universidade multiétnica, diversa e plural, que se propõe a um giro epistemológico, a estabelecer outras redes de conhecimento, menos dependentes do eurocentrismo tão caro à formação elegante das elites nacionais, não poderia permanecer impune. Toda rebeldia tem seu preço, como nos alerta GOG.
Ao desconfigurar o caráter internacionalista da UNILA, o deputado Sérgio Souza e seus apoiadores esquecem deliberadamente o preceito constitucional a favor da integração entre os países latino-americanos, inscrito no parágrafo único do Artigo 4 da Carta de 1988: “A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.” A criação de uma universidade da integração latino-americana, portanto, no plano cultural e científico, é a concretização da carta magna, nos lembra a Carta Aberta dos/as Docentes da UNILA.
Aliás, a presença de estrangeiros e estrangeiras nas universidades públicas brasileiras não é exclusividade da UNILA. Centenas de estudantes de diversos países vêm anualmente estudar nas universidades públicas brasileiras, com vagas asseguradas, desde os anos 1960, para a graduação e, desde os anos 1980, para cursar a pós-graduação no Brasil, por meio de convênios e programas de cooperação internacional, como o PEC-G e o PEC-PG. As escolas municipais e estaduais em Foz do Iguaçu sempre tiveram alto número de alunos/as estrangeiros/as dada a condição fronteiriça do município – o que certamente se repete em outras tantas cidades de fronteira no Brasil. No entanto, são a UNILA e a UNILAB a corporificarem a presença indesejada destes corpos negros e ameríndios nas cidades onde se instalam. Estes corpos indesejados, fora do lugar que lhes foi historicamente imposto pelo modelo civilizatório da modernidade capitalista ocidental, incomodam. Fora do lugar subalterno, do território marginal, esquecido. Fora do lugar do trabalho mal remunerado, servil e não intelectual. Nestas universidades, estes corpos se propõem como sujeitos de conhecimento, formulam outras questões, apontam o dedo na cara do racismo social e, evidentemente, do racismo epistêmico.
Nesse cenário em que a escalada de violência recai cada vez mais sobre grupos historicamente marginalizados e/ou excluídos, é preciso uma autocrítica por parte das esquerdas brasileiras, que não estão sendo capazes de compreender que a luta antirracista e feminista é também contra o capital. A UNILA é, na verdade, um grande estorvo para a branquitude e reconhecer isso significa abrir novos caminhos à luta pela sua defesa e pela integridade de seu projeto.
* Andréia Moassab e Marcos de Jesus são docentes na UNILA.
O fato do discurso do deputado federal Sérgio Souza (PMDB/PR) sobre a extinção da UNILA (Universidade Federal da Integração Latino-americana) ser carregado de racismo, xenofobia e de ódio deveria, no mínimo, servir para que setores de esquerda entendam que a luta contra o capital é indissociável da luta contra o racismo, contra o patriarcado e contra tantas outras formas de dominação e de opressão. É preciso parar com debates teóricos hierarquizantes sobre qual luta é a mais fundamental. Não é casual que as duas universidades sob ameaça de extinção por canetadas de Brasília são propostas resultantes de lutas e reivindicações históricas do povo negro e do povo ameríndio, que os inserem em espaços tradicionalmente reservados às elites brancas brasileiras.
O REUNI – Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais, no qual estão incluídos os projetos da UNILA e da UNILAB (Universidade da Intergração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira), abriu mais de 18 novas universidades e viabilizou outros 173 novos campi, majoritariamente no interior do país. Foi o maior crescimento das universidades públicas do Brasil, desde a época de Juscelino Kubitschek. No entanto, as únicas universidades em risco iminente de fechar as portas são estes dois projetos de integração. Não são os projetos claramente populares, como é a Universidade Federal da Fronteira Sul, ameaçados de extinção. São os projetos que pretendem inserir corpos dissidentes, agora visibilizados, em terra brasilis, acostumada a ocultar o racismo.
Ao limitar o entendimento deste ataque apenas ao avanço do capital, limitam-se também as formas de luta e resistência. Descortinar o quanto a própria consolidação do capitalismo como sistema econômico dominante é tributário do domínio colonial, alicerçado pelo racismo e pelo patriarcado, é fundamental para vislumbramos outras relações de poder entranhadas nos modos de produção e dominação contemporâneos. A esse respeito, as reflexões de Lélia Gonzalez, intelectual negra brasileira, são bastante oportunas, sobretudo, quando afirma haver uma “evidente separação quanto ao espaço físico ocupado por dominadores e dominados”. Nesta divisão racial do espaço, a universidade é mais um dos ambientes da “casa grande”, cujo incômodo evidente ao ser ocupado pela população negra eclode no debate sobre as cotas raciais na última década.
Transformar a universidade do “Brasil para brasileiros”, como advoga o deputado sem quaisquer pudores, é uma afirmação profundamente racista. Inequivocamente o ultranacionalismo foi a base ideológica nazista, a qual pregava uma “Alemanha aos alemães”. A “lei do funcionalismo”, uma dos muitos decretos discriminatórios na época, exigia atestado de antecedentes arianos para os funcionários públicos no início dos anos 1930. No mesmo período, leis também restringiram as escolas e universidades unicamente a pessoas arianas. Vale lembrar que, de igual modo, naquela ocasião o capital convenientemente financiou o nazismo.
O discurso do “Brasil para brasileiros” é estrategicamente seletivo, na medida em que não é acionado contra imigrantes brancos vindos do Norte global. O sul do país, o Paraná e Foz do Iguaçu, se vangloriam das muitas nações formadoras de sua gente, dos poloneses, italianos e alemães, negando veementemente a existência do povo negro e indígena. No Paraná são aproximadamente 3 milhões de pessoas negras no Estado, quase o equivalente a toda população do Uruguai. Em Foz do Iguaçu, mais de 35% da população é negra. A despeito disso, a região sul pouco se reconhece como negra ou valoriza a herança africana na cultura local. O mesmo acontece para a sua população indígena.
A profunda racialização da América Latina no cenário internacional tem suas nuances próprias a partir da perspectiva brasileira, para quem o/a latino-americano/a é o Outro. O tratamento concedido a chilenos/as, argentinos/as e uruguaios/as, considerados/as brancos/as pelos/as brasileiros/as, é muito distinto daquele recebido por paraguaios/as, bolivianos/as ou equatorianos/as, por exemplo. A América Latina dos/as brancos/as (sic) é o lugar do civilizado, do urbano, do progresso, do elegante, do intelectual. A outra América Latina é atrasada, rural, pobre, subalterna, onde está a mão-de-obra para trabalhos mal pagos e não intelectual. É somente ao Brasil da elite branca que se refere o deputado Sérgio Souza ao clamar uma universidade “brasileira para brasileiros”. A mesma elite branca que exclui da universidade outros/as brasileiros/as, os/as negros/as e indígenas, que é contra as cotas étnico-raciais, que diminui a assistência estudantil, que rasga a CLT e que propõe uma vergonhosa reforma da previdência – todas medidas com impactos dramáticos para as populações negras e indígenas. O genocídio da população negra tem mais de 500 anos no país, pelas mãos do Estado ou com a sua cumplicidade, e se insinua, na atualidade, pelos altos índices de assassinatos de jovens negros da periferia em grandes centros urbanos. Os atuais retrocessos legislativos terão efeitos muito mais severos sobre a população negra, em especial, sobre as mulheres negras. Rafael Braga não permanece encarcerado por ser pobre. É por ser pobre e negro.
Ao analisarmos o racismo estrutural basilar da modernidade e formador da sociedade brasileira, é possível compreender a emenda aditiva que propõe a eliminação da UNILA como algo mais do que um conluio do agronegócio – é uma profunda marca do racismo brasileiro. O agronegócio e o grande capital no Paraná estão desmontando as universidades estaduais, os institutos federais, o ensino médio. Afinal, todas vêm sofrendo ataques nos últimos anos, mesmo sendo instituições de ensino “do Paraná para paranaenses”. Mas, apenas a UNILA evoca um enunciado tão forte como a retomada de uma “universidade brasileira para brasileiros”. Uma universidade multiétnica, diversa e plural, que se propõe a um giro epistemológico, a estabelecer outras redes de conhecimento, menos dependentes do eurocentrismo tão caro à formação elegante das elites nacionais, não poderia permanecer impune. Toda rebeldia tem seu preço, como nos alerta GOG.
Ao desconfigurar o caráter internacionalista da UNILA, o deputado Sérgio Souza e seus apoiadores esquecem deliberadamente o preceito constitucional a favor da integração entre os países latino-americanos, inscrito no parágrafo único do Artigo 4 da Carta de 1988: “A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.” A criação de uma universidade da integração latino-americana, portanto, no plano cultural e científico, é a concretização da carta magna, nos lembra a Carta Aberta dos/as Docentes da UNILA.
Aliás, a presença de estrangeiros e estrangeiras nas universidades públicas brasileiras não é exclusividade da UNILA. Centenas de estudantes de diversos países vêm anualmente estudar nas universidades públicas brasileiras, com vagas asseguradas, desde os anos 1960, para a graduação e, desde os anos 1980, para cursar a pós-graduação no Brasil, por meio de convênios e programas de cooperação internacional, como o PEC-G e o PEC-PG. As escolas municipais e estaduais em Foz do Iguaçu sempre tiveram alto número de alunos/as estrangeiros/as dada a condição fronteiriça do município – o que certamente se repete em outras tantas cidades de fronteira no Brasil. No entanto, são a UNILA e a UNILAB a corporificarem a presença indesejada destes corpos negros e ameríndios nas cidades onde se instalam. Estes corpos indesejados, fora do lugar que lhes foi historicamente imposto pelo modelo civilizatório da modernidade capitalista ocidental, incomodam. Fora do lugar subalterno, do território marginal, esquecido. Fora do lugar do trabalho mal remunerado, servil e não intelectual. Nestas universidades, estes corpos se propõem como sujeitos de conhecimento, formulam outras questões, apontam o dedo na cara do racismo social e, evidentemente, do racismo epistêmico.
Nesse cenário em que a escalada de violência recai cada vez mais sobre grupos historicamente marginalizados e/ou excluídos, é preciso uma autocrítica por parte das esquerdas brasileiras, que não estão sendo capazes de compreender que a luta antirracista e feminista é também contra o capital. A UNILA é, na verdade, um grande estorvo para a branquitude e reconhecer isso significa abrir novos caminhos à luta pela sua defesa e pela integridade de seu projeto.
* Andréia Moassab e Marcos de Jesus são docentes na UNILA.
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