sábado, 11 de novembro de 2017

"A TV Globo maquia o racismo"

Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:

Uma das mais respeitadas lideranças do movimento negro, Douglas Belchior, também conhecido pelo blog Negro Belchior, se encontrava em Nova York quando o vídeo exibindo comentários racistas de William Waack explodiu na internet brasileira, provocando sua queda poucas horas depois. "Este episódio demonstra a potência do debate racial no país," diz Belchior em entrevista ao 247, iniciada por telefone e completada por email. Formado em História pela PUC-SP, professor da rede pública, Belchior acredita que o país atingiu um ponto no qual, "no plano das relações individuais, o racismo se tornou intolerável." Seu depoimento:


Como avaliar a reação da Globo diante do vídeo com comentários racistas?

A Rede Globo talvez seja a instituição que melhor sabe conversar com o povo, perceber seus sentimentos e angustias. Ela ajuda a construir o sentimento coletivo e se apropria dele. Sabe utilizar esse sentimento politicamente. Vivemos um momento no Brasil em que o debate racial ainda está na superfície. Há a construção da ideia de que o racismo se limita a este espaço das relações individuais, entre as pessoas, no trato cotidiano. É chamar alguém de macaco, dizer que preto é fedido, falar explicitamente que é feio, ou fazer comentários e piadas desrespeitosas como essas que o William Waack faz no vídeo. Sem dúvida, a reação rápida (no afastamento de William Waack) tem a ver com o fortalecimento dessa ideia limitante, restrita, do que é o racismo. Nem surpreende.

O que surpreende?

A rapidez e a contundência da resposta da Globo. Ao mesmo tempo, essa postura de individualizar o racismo esvazia de sentido aquilo é fundamental no Brasil: a desigualdade, a violência e os conflitos estruturados pelo racismo. Essa dimensão fica escondida atrás do espetáculo que a Globo ajuda a construir. Ela, que sempre estigmatizou o negro, que sempre o colocou em lugar subalterno, subserviente, no lugar do criminoso, do perigoso. Ela, que faz a cobertura jornalística reafirmando o negro como o perigoso, aquele que põe em risco a sociedade, escamoteia o lugar do racismo na estrutura de nossa vida social. A gente não deve se enganar. A Globo não agiu com rapidez por benevolência. Faz isso por uma percepção da sociedade. Pelo menos no nível das relações explícitas a sociedade não tolera mais esse tipo de comentário. Mas eu acredito que nós teremos chegado a um momento melhor para o Brasil quando o drama pessoas morando nas ruas, em sua maioria negras, seja tão intolerável como os comentários de William Waack. Não podemos tolerar uma coisa nem outra.

O repudio expresso nas redes sociais levou a Globo a afastar um de seus apresentadores mais importantes. O que se pode dizer sobre isso?

Este episódio demonstra a potência do debate racial no Brasil. A questão racial sempre foi a mais explosiva entre nós, aquela que pode acordar a classe trabalhadora a partir da percepção de que nós somos um povo que foi escravizado e que resistiu à escravidão durante quatro séculos. Mostra o poder de sobrevivência que nós temos. Diante do massacre, do genocídio negro, do genocídio indígena, este é um elemento explosivo para o país, que pode gerar mudanças e cisões radicais. Atingimos um ponto de nossa história, nessa estrutura de dominação continuada por parte de uma elite racista, em que, no plano das relações individuais, o racismo se tornou intolerável.

Você costuma dizer que a Globo procura transformar o racismo numa questão de pessoa para pessoas, e não uma questão estrutural. Por que?
O elemento racial é o que estrutura a desigualdade no Brasil, o que caracteriza o Brasil. Antes de tudo o Brasil é uma nação constituída a partir da violência racista, de uma escravidão que estrutura três quartos de sua história, numa República que nunca garantiu cidadania a população negra. Essa situação estrutura a formação material e também a formação subjetiva da sociedade brasileira. É tão grave, tão presente, que precisa ser maquiada o tempo todo. As instituições brasileiras sempre se prestaram a esse serviço, à negação do racismo como algo que estrutura as relações e a desigualdade. Como essa situação pode ser maquiada da maneira mais efetiva e competente? Expondo uma dimensão em que o racismo possa ser contemplado. Chegamos num momento em que o racismo no trato, na relação individual, é mostrado de maneira intolerável. Há uma espetacularização para dar a impressão de que o assunto está sendo levado a sério. A Globo como maior formadora da opinião pública, maior comunicadora, faz isso muito bem.

Por que é correto dizer que a Globo é a maior potência racista do planeta?

O maior país negro fora da África está no Brasil. Tem uma história de democracia que nunca deu dignidade ao povo negro. Aqui fica a polícia que mais mata negros no mundo. Tem a terceira ou quarta população carcerária do planeta. A maior parte é formada por negros. Como se tivesse caído uma bomba atômica no país, no ano passado mais de 61 000 pessoas foram mortas. Metade dessas mortes, tanto provocadas pela violência quanto as mortes provocadas pela ação policial, atingem jovens até 29 anos. Desses, 77% são jovens negros, os mais afetados pela pobreza. As mulheres negras são ainda mais afetadas, por conta do machismo e do patriarcado que também estrutura as relações do país. Como maior construtora de mentalidades do Brasil, a Globo mantém o público desinformado, uma opinião alienada, cumpre o papel desse cimento, de manter a paz num país em guerra racial. A formação de uma consciência que aceite isso é fundamental e a Globo cumpre essa tarefa.

O país tem hoje políticas de cotas que mudaram as condições de ingresso dos afro-descentes nas universidades. Como você avalia os efeitos dessas políticas?
Tivemos uma disputa política e ideológica. No começo, mesmo os grupos mais progressistas, no campo de esquerda, tinham muitas dúvidas. Alguns até se colocavam contrários a essa política e o movimento negro teve de convencer os aliados durante esse processo. Em determinado momento isso se tornou uma política incontestada no movimento de esquerda e foi implementada por um governo de esquerda, tornando-se alvo da elite, da direita, daqueles que sempre quiseram manter privilégios. O resultado dessas políticas foi muito importante. Incluiu uma pequena parcela da comunidade negra em locais aos quais nunca tivera acesso. Ajudou a aumentar a percepção de que o racismo é intolerável em todas as suas dimensões, embora só se perceba a mais superficial delas. Não há dúvida de que essas políticas cumpriram um papel importante. Precisamos continuar a defesa delas, porque ainda estamos muito longe de uma equidade do ponto de vista racial no Brasil.

Qual tem sido o papel da esquerda no debate sobre o racismo?

A sociedade brasileira é racista, o Brasil é racista e a esquerda não consegue fugir disso, embora seja historicamente um campo de reflexão mais flexível, mais sensível, no debate sobre direitos humanos. O debate racial é tão profundo, tão melindroso e difícil de ser feito, porque mexe com questionamentos sobre privilégios históricos brancos. A esquerda é hegemonicamente dirigida por brancos e é contaminada por esse sentimento, em que pese ser um espaço de maior flexibilidade para isso. Tenho certeza de que a questão racial pesa muito na percepção das esquerdas e tenho certeza de que, infelizmente, ainda vamos levar alguns anos para mudar isso.

Você fala muito sobre o papel da mulher negra na conjuntura política atual. Poderia desenvolver isso?
As mulheres negras são as que mais sofrem com a desigualdade estrutural do Brasil. Por serem negras e serem mulheres, acumulando na sua vivência dois dos elementos que estruturam as desigualdades da miséria brasileira, que são o racismo histórico e o patriarcado também histórico. A potência de reação dessas mulheres é capaz de balançar este país. Basta ver as mobilizações que tem sido defendidas por elas, as pautas que tem sido apresentadas por elas.

Como você interpreta uma portaria recente do governo Temer que flexibiliza as regras que permitem punir o trabalho escravo?
Não há dúvida de que este é um governo de reafirmação da lógica da servidão e dos valores escravocratas. Considerando que é um governo que desmonta direitos, e que a população negra é a que mais precisa dos serviços do Estado, e que faz isso de maneira deliberada, planejada, num país tão desigual como o nosso é um governo de trato escravocrata. É um governo de profundas características de permanência escravocrata.

Você acredita que as eleições de 2018 podem ajudar a mudar a situação dos negros brasileiros?

A pólvora da luta de classes no Brasil é o debate sobre racismo, a percepção de que ele estrutura as desigualdades, alimenta e justifica a violência. Somos um país onde a classe tem cor, tem origem, território, tem sexo também. Essa potência política é percebida pelas elites, pela direita. Sempre se anteciparam no sentido de conter esse potencial de fúria, de organização, de reação, que é próprio da história dos negros no Brasil. Lamentavelmente, essa percepção não é a mesma do nosso lado. Fosse assim, essa maioria de negros que conformam o povo, a base e a classe que luta por direitos no Brasil ela também se conformaria na sua liderança. Essa é a síntese. O que tem de mais explosivo, de mais efetivo, de maior potência política é o debate racial e a capacidade da reação negra. Do ponto de vista das esquerdas, ou isso não é percebido, ou, pior ainda, isso é percebido mas não pode ser incorporado nem assimilado. Isso porque isso significaria a destituição da atual direção das esquerdas, que são historicamente brancas. Ou é ruim. Ou é pior ainda.

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