segunda-feira, 4 de março de 2019

Abaixo da linha da civilização

Por João Paulo Cunha, no jornal Brasil de Fato:

O presidente Jair Bolsonaro elogiou Alfredo Stroessner durante solenidade de nomeação de dirigentes da hidrelétrica de Itaipu, que Brasil e Paraguai dividem no Rio Paraná. Estava ao lado do presidente Mário Abdo Benítez. Bolsonaro chamou o ditador paraguaio (segundo ele “nosso general”) de “homem de visão” e “estadista”, num discurso que também exaltou a ditadura brasileira, portadora para ele das mesmas características positivas.

Poderia ter sido apenas um destempero típico de um homem inepto no uso das palavras e ideias. Mas a afirmação é grave demais para ficar na cota da limitação cognitiva e incontinência reacionária do capitão reformado. Stroessner foi um monstro. Decretou prisões arbitrárias na casa dos milhares, assassinou centenas de pessoas e deixou um saldo de dezenas de desaparecidos. Durante a ditadura, que comandou com mão de ferro, foram torturadas em torno de 20 mil pessoas. Não era uma prática dos porões, mas uma política de Estado. São conclusões oficiais da Comissão da Verdade do Paraguai.

Stroessner manteve-se no poder por meios ilegítimos por mais de 35 anos. Responsável por crimes contra a humanidade, deu asilo a oficiais nazistas, inclusive os responsáveis pela política de extermínio de judeus em campos de concentração. Para completar seu perfil execrável, foi responsabilizado por centenas estupros e atos de pedofilia durante décadas. Morreu com mais de 90 anos, no exílio brasileiro.

Tanto horror, em escala tão impressionante, deixou marcas vivas na memória do povo paraguaio. O próprio presidente atual, filho de um colaborador próximo de Stroessner por mais de 30 anos, precisa lidar sempre com esse fato, do qual busca se distanciar. Os processos - como os intentados pelo bolsonarismo no Brasil - de normalizar a memória da ditadura, são feridas que sangram ainda hoje no país vizinho.

Por isso o discurso do presidente brasileiro foi tão infeliz. Mas se a afirmação causa dor em várias gerações de paraguaios, traz um alerta grave para os brasileiros. Bolsonaro deixa claro o que entende como papel do estadista. Embora eleito, não preza a democracia. Dela apenas se serviu para, depois de empossado, sentir-se autorizado para atuar contra seus fundamentos. Na sua escala de valores, a ditadura, a tortura e o autoritarismo são legítimos instrumentos do homem de visão.

A fala do presidente brasileiro pode ser lida na vertente das sucessivas imbecilidades proferidas pela ala mais delirante do seu governo. Como as postulações evangélicas de Damares, as alopradas teses geopolíticas de Ernesto, as patriotadas infantis de Velez e a confessada ignorância ambiental de Salles. Em alguns casos a impropriedade gera desconforto, em outros, puro ridículo. E, no caso da política externa, pode dar em crises perigosas e prejuízo econômico.

Mas como se trata de um núcleo patético, as consequências não chegam a atingir o coração do Estado. Sem um canal reconhecido de interlocução com a sociedade, têm sido contornadas com os constantes recuos dos titulares das pastas e intervenção dos militares. A consciência disciplinar do governo tem atuado para apagar incêndios, como o que ronda a questão da Venezuela.

Quanto aos ministros delirantes, basta o cantinho do castigo e a humilhação pública. No caso do presidente, a situação é mais séria. Bolsonaro, quando elogia um ditador, coloca o Estado brasileiro em risco.

Quando o deputado Bolsonaro destacava a ação de Brilhante Ustra, era apenas um candidato que alimentava a falsa dissonância em torno do processo histórico da ditadura brasileira e do uso da tortura pelos militares e civis apoiadores do golpe. Cabia, naquele momento, ser combatido pelo saber histórico consolidado e pelas análises políticas mais sérias. Má fé, ignorância ou mesmo tendência autoritária cabiam ser trazidas para o terreno da verdade.

Quando o presidente eleito apoia torturadores e responsáveis por crimes contra a humanidade, coloca o país numa posição vergonhosa e rebaixa nossa perspectiva no concerto das nações. Ao entrar em outro país para enaltecer ditadores que fizeram o povo sofrer, Bolsonaro, além de intervir em questões que não lhe cabem, manda um recado para a comunidade internacional e para seu próprio povo.

Não precisamos imaginar o que seria um presidente de outro país atravessar as nossas fronteiras para incensar torturadores e assassinos que atuaram durante o período da ditadura militar de 1964. A ameaça mora em casa. O candidato Bolsonaro já fez isso. Agora, perigosamente, o presidente Bolsonaro confirma o gesto e sublinha sua inspiração ética posta abaixo da linha da civilização.

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