terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Ajuste fiscal acima de tudo

Por Antônio Augusto de Queiroz, na revista Teoria e Debate:

O slogan de campanha do presidente da República refletiria melhor a prática governamental se tivesse substituído o “Brasil” pelo “ajuste fiscal” e “Deus” pelo “mercado”, considerando as medidas que propôs ao Congresso recentemente, que incluem: 1) o plano “Mais Brasil”, com três Propostas de Emendas à Constituição (PEC); 2) a nova reforma trabalhista, apelidada de plano “verde e amarelo”; e 3) o projeto de lei que desobriga as empresas de contratar pessoas com deficiência.

Esse conjunto de medidas, se aprovadas, terá o condão de aprofundar outras reformas em bases neoliberais já realizadas, como a trabalhista e a previdenciária, e de reduzir a presença dos pobres no orçamento público, a participação dos trabalhadores na renda nacional e ampliar a desigualdade e a pobreza no Brasil, além de levar ao desmonte do Estado, à desorganização administrativa, à fragilização do serviço público e à priorização da dívida pública e despesas financeiras em detrimento de políticas sociais.

A primeira PEC, 186/2019, subscrita pelo líder do governo no Senado, senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), também conhecida como PEC emergencial, traz três mudanças estruturais nas finanças públicas: 1) torna permanente o ajuste fiscal previsto no Teto de Gasto Público, de que trata da Emenda Constitucional 95; 2) estende sua aplicação ao estados, Distrito Federal e municípios; e 3) vincula a aplicação do Teto de Gastos à chamada regra de ouro.

Tendo como relator o senador Oriovisto Guimarães (PODE-PR) na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, a PEC 186 engessa o gasto governamental, determina a suspensão de direitos e obrigações do Estado, em três hipóteses: se houver descumprimento do Teto de gastos, se for extrapolado o limite da regra de ouro e se forem ultrapassados os limites de gasto com pessoal, previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal.

Assim, se for descumprida qualquer das três regras, especialmente a chamada regra de ouro, que se configura quando “as operações de créditos superarem os investimentos governamentais”, a União e os demais entes federativos ficarão impedidos de reajustar salários, reestruturar carreiras, promover concurso público, pagar qualquer despesa com pessoal em caráter retroativo, além de ser obrigado a reduzir jornada com redução de salário e suspender as promoções e progressões de servidores.

O ajuste previsto na PEC é tão radical que até os direitos sociais inscritos no artigo 6º da Constituição Federal (a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados) só serão assegurados pelo Estado se observar “o direito ao equilíbrio fiscal intergeracional”, ou seja, a norma impede que os custos de benefícios em gozo por uma geração sejam transferidos para futuras gerações, rompendo o pacto entre gerações.

A segunda PEC, 187, igualmente subscrita pelo líder do governo no Senado, que trata dos fundos infraconstitucionais, prevê a extinção de 248 fundos, disponibilizando R$ 219 bilhões para amortização da dívida pública, além de:

a) determinar a transferência dos recursos que hoje formam este fundo ao respectivo poder na esfera federativa que o tenha criado;

b) anular qualquer dispositivo infraconstitucional vinculado aos fundos;

c) autorizar que as receitas desvinculadas poderão ser destinadas a programas voltados à erradicação da pobreza, investimentos em infraestrutura que visem a reconstrução nacional;

d) destinar as receitas públicas dos fundos, até que eles sejam extintos, à amortização da dívida pública.

Essa PEC tem como relator na Comissão de Constituição, Justiça e de Cidadania (CCJ) do Senado, o senador Otto Alencar (PSD/BA).

A terceira PEC, 188, a última do pacote, igualmente subscrito pelo líder do governo no Senado, é a mais abrangente delas, e está classificada em seis eixos:

a) Fiscal – Cria o Conselho Fiscal da República;

b) Transferência de recitas aos entes federativos – compartilhamento de royalties e participações especiais com entes subnacionais e proíbe que a União possa socorrer entes em dificuldades fiscais a partir de 2026;

c) Desobrigação, Desindexação e Desvinculação (DDD) – desindexa despesas obrigatórias (deixa de reajustar) em caso de emergencial fiscal;

d) Pacto Federativo – prevê a extinção de municípios que tenham menos de 5 mil habitantes e possuam arrecadação própria inferior a 10% da receita total;

e) Plano Emergencial – reprodução da PEC 186.

Além de extinção de municípios, essa PEC também impede o Poder Judiciário de reconhecer direitos se não houver orçamento para pagar a despesa, determinando textualmente: “Decisões judiciais que impliquem despesa em decorrência de obrigação de fazer, não fazer ou entregar coisa, somente serão cumpridas quando houver a respectiva e suficiente dotação orçamentária”.

A PEC 188/2019 tem como relator na CCJ do Senado, o senador Márcio Bittar (MDB/AC).

A MP 905, do plano Verde e Amarelo, editada em 13 de novembro de 2019, supostamente para facilitar a contratação de pessoas com idade entre 18 e 29 anos, na verdade aprofunda a precarização das relações de trabalho, dando incentivos ao empregador que contratar trabalhadores para o primeiro emprego, e promove centenas de modificações na CLT para retirar direitos e ampliar obrigações dos trabalhadores já empregados.

O primeiro emprego será financiado pelos desempregados, com parcela do seguro-desemprego, e o patrão que contratar nessa modalidade ficará livre de alguns encargos trabalhistas, previdenciários e de fiscalização, além da liberdade de negociar direta e individualmente com o empregado as condições de trabalho e remuneração, desde que não supere um salário mínimo e meio, nem ultrapassar 20% de seu quadro funcional.

Entre as vantagens para o patrão, além da ausência ou flexibilização dos mecanismos de registro e de fiscalização do trabalho e da possibilidade de acordo extrajudicial anual para quitação de obrigações, estão:

1) a desoneração da folha;

2) a redução da negociação coletiva e da ação sindical;

3) a redução do valor da remuneração, que fica limitada a um salário mínimo e meio; caso venha a aumentar o salário do empregado, o benefício fiscal continuará sendo calculado com base naquele valor;

4) a redução do depósito do FGTS, que cai de 8% para 2%;

5) a redução do adicional de periculosidade, que é reduzido de 30% para 5%, desde que o patrão contrate seguro de acidente pessoal para o empregado;

6) a redução da multa rescisória, que cai drasticamente (de 40% para 20%);

7) a eliminação, de modo permanente, da contribuição adicional de 10% sobre o salário para o FGTS;

8) a permissão, por negociação individual, que o empregador inclua na remuneração mensal do empregado, como forma de evitar passivos futuros, assim como já faz com o empregado doméstico, as parcelas relativas: de férias; do FGTS; do 13º; e da multa rescisória.

Na parte permanente da CLT reduz os custos de demissão, aumenta jornada dos bancários, libera o trabalho aos domingos e feriados, não considera mais como acidente de trabalho o sofrido no percurso entre a residência e a empresa, dispensa a inspeção prévia para instalação de caldeira e forno, retira os sindicatos da negociação da participação nos lucros e resultados, além de outras agressões aos direitos dos trabalhadores.

Por fim, o projeto de lei 6.195/2019, de autoria do Poder Executivo, que, na prática, reduz drasticamente o alcance da lei que garante cota de contratação de pessoas com deficiência nas empresas, ao substituir a não contratação por uma multa de dois salários mínimos, além de permitir a contagem em dobro na hipótese de contratação de pessoa com deficiência grave. Atualmente, a empresa com cem empregados ou mais é obrigada a preencher de 2% a 5% das vagas disponíveis com trabalhadores reabilitados ou pessoa com deficiência.

A julgar pelas propostas governamentais em curso, incluindo o próprio Plano Plurianual, o objetivo é eliminar os mecanismos de redução das desigualdades e da pobreza, mediante a eliminação dos direitos e garantias constitucionais em favor de pessoas e territórios vulneráveis. Se aprovada essa agenda, a consequência será menos direitos para os cidadãos, menos serviços públicos e menos recursos para projeto de desenvolvimento. É preciso que a sociedade e o Parlamento reaja a esse verdadeiro desmonte do Estado de Proteção Social, sob pena de ameaça à paz social no país.

* Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, consultor e analista político, diretor licenciado do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) e sócio-diretor das empresas “Queiroz Assessoria em Relações Institucionais e Governamentais” e “Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas”

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