quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Discordando a gente se entende

Por João Paulo Cunha, no jornal Brasil de Fato:

O melhor desejo para o ano que começa é que, a cada dia, discordemos mais uns dos outros. O que o ódio separa, o debate aproxima. Quando os dois lados não conversam, o ambiente é toxicamente infértil. Cada parcela da sociedade se relaciona apenas com seu umbigo ideológico, distribui acusações aos adversários e fecha os ouvidos a quem pensa diferente. A democracia agoniza, a política se empobrece, a raiva toma conta da mente.

É o terreno em que nos metemos.

No entanto, mesmo em meio a uma crise sem precedentes, alguns sinais parecem apontar que o debate começa a voltar à cena. Se em termos ideológicos e de valores o diálogo tem se dado, compreensivelmente, entre surdos – com mais julgamentos que argumentos – alguns territórios da vida política começam a esboçar outra dinâmica. As pessoas percebem que podem discordar e disputar suas razões. Voltar a fazer política.

Se não vamos nos entender em muitos aspectos – quando a divisão é de fato absoluta, como em relação a retrocessos de civilização como a violência e preconceito – em outros talvez o debate esteja voltando a se mostrar. É o que se vê, por exemplo, em relação ao apoio dos partidos de centro-esquerda ao candidato à presidência da Câmara vindo de outro campo. Independentemente de nomes, teses políticas foram postas em confronto: frentes, apoio tático, alianças circunstanciais, afirmação de princípios etc.

Em meio à pandemia e à patente inação do comando do governo federal, o mesmo empenho se viu com a possibilidade de compra de vacinas por parte de clínicas privadas, abrindo possibilidade de imunizar parte da população em razão de seu poder econômico.

Valores morais foram emparelhados com razões de ordem sanitária, debateu-se o papel exclusivo do poder público no controle da pandemia, a complementaridade do setor privado, e o incremento à desigualdade estrutural da sociedade brasileira caso essa medida seja viabilizada.

Outro exemplo que tem convocado um clima de discussão na sociedade diz respeito à relação do poder público com a legalidade. Mais uma vez, sem entrar no mérito dos casos específicos, a Justiça brasileira, em suas diferentes esferas, passou a fazer parte do repertório de análise do cidadão, que tem sido chamado a opinar sobre o uso privado das polícias, do julgamento de autoridades e parentes do presidente, da condução do Ministério Público e dos tribunais, e até da nomeação de ministros do STF e de dirigentes de outros estratos jurídico-policiais.

No âmbito das políticas públicas, o que era até pouco tempo um jogo de perde-ganha passou a ocupar um universo mais complexo de discussões. O que, em termos de conhecimento técnico e político, estava na dependência total da ideologia no poder, hoje passa necessariamente por uma ampliação de vozes discordantes, sob o risco de não se efetivar na prática. Ações no campo do meio ambiente, da cultura, das relações internacionais, da educação e da saúde, entre outras, precisam trafegar pelo tribunal da discordância e do debate público.

Em termos gerais, pelo menos nos campos da ética, da competência técnica e da legalidade, o debate está voltando, depois de um período de obscurantismo impenetrável. O que obriga a todos um esforço para aprimorar seus argumentos, melhorar sua capacidade pedagógica de ação política e conquistar corações e mentes em todos os campos de batalha.

É claro que o mais fácil é anular o outro, desprezar o adversário, lacrar. Construir consensos viáveis e provisórios, sobretudo num momento de conflagração e com uma direita tão obtusa, é muito mais difícil.

O debate ético exige clareza de valores, definição transparente da dimensão moral do interesse público e defesa intransigente das conquistas da civilização – entre elas a igualdade e a liberdade.

Por vezes a discussão entre o certo e o errado parece fácil. O verdadeiro dilema ético se dá entre duas possibilidades, igualmente boas ou defeituosas, de dar conta das ambições de humanidade que definem nossa trajetória no mundo. Precisamos da ética não porque somos anjos, mas exatamente pelo fato de sermos humanos cheio de falhas.

Já discussão técnica das políticas públicas, sociais e econômicas, precisa se alimentar de conhecimento em vários setores, transitar além dos interesses de grupos e dos ganhos imediatos das minorias detentoras do poder (de condôminas a patrocinadoras).

Mesmo entre aquelas que aceitam o mau gosto, os maus modos e a ignorância do ambiente miliciano como uma consequência infortuita de seus interesses. O constrangimento é uma forma de argumento que fere na alma. A sensação de incompetência é outro fator que tem desequilibrado a balança do alinhamento automático.

Já a afirmação da justiça exige um respeito à legalidade por vezes enviesado no cenário da nossa luta de classes naturalizada ao longo do tempo. A defesa de que a lei é para todos não afeta apenas o cidadão (geralmente o menos igual), mas obriga a um aprimoramento institucional que reforma a concepção de justiça e controle. Um presidente que governa para impedir que o filho seja julgado por seus crimes é um signo melancólico da paternidade irresponsável e do poder corrompido.

Pode parecer otimismo de ano novo apostar no valor da razão, na luta pelo respeito à diferença e na renascença da política. Mas os sinais estão dados e, pelo menos por enquanto, não temos saída melhor.

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