quarta-feira, 5 de maio de 2021

PEC 32: como evitar mais uma contrarreforma

Por Paulo Kliass, no site Outras Palavras:


As primeiras reuniões organizadas pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados (CD) com o propósito de debater a proposta de Reforma Administrativa confirmaram aquilo que os analistas já antecipavam há um bom tempo. Caso não haja uma manifestação organizada da maioria da sociedade e dos especialistas na matéria, a tramitação da PEC 32 deverá obedecer exclusivamente aos interesses do governo e aos compromissos assumidos pelo atual presidente da Casa junto a Bolsonaro.

Todos se recordam do grande empenho realizado pelo Palácio do Planalto para assegurar a vitória de Arthur Lira (PP/AL) em fevereiro, logo no início dos trabalhos legislativos de 2021. O governo se mobilizou com cargos e verbas para impedir que Rodrigo Maia conseguisse emplacar seu candidato à sucessão, o deputado Baleia Rossi (MDB/SP). Frente a tal aliança, viu-se reforçada a dependência mútua entre o Chefe do Executivo e o ocupante do terceiro cargo na linha sucessória da República. Vale a pena recordar que o Presidente da Câmara é o responsável por engavetar ou iniciar o processo de impeachment do Presidente da República.

Desde então, o deputado alagoano parece ter incorporado de forma rigorosa o figurino de governista. Sua postura de defesa dos interesses do capitão foi ainda mais fortalecida a partir do momento em que o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou ao Presidente do Senado Federal (SF) que instalasse a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar as (ir)responsabilidades do governo na condução da pandemia. O núcleo duro de Bolsonaro menosprezou a articulação e viu-se em minoria na composição do colegiado temporário, apesar de contar com maioria entre os senadores. Afinal, sua contribuição foi determinante também para a eleição de Rodrigo Pacheco (DEM/MG) à presidência daquela Casa.

Bolsonaro e Arthur Lira: aliança sólida

Como o aprofundamento da crise política, sanitária e econômica tem contribuído para acelerar a queda de popularidade de Bolsonaro, é bastante provável que o protagonismo da dinâmica da CPI do Senado Federal acabe roubando bastante a cena dos assuntos no interior do legislativo. A intenção de Lira parece ser a de manter algum grau de postura propositiva da pauta de interesse do governo no âmbito da Câmara dos Deputados e assim buscar um espaço nos meios de comunicação que o favoreça. Talvez por isso o seu interesse explícito e declarado em promover a aceleração da tramitação das reformas constitucionais, em especial a tributária e a administrativa. De um lado, reforça o seu compromisso com a pauta conservadora nacional e, de outro lado, posa de bom menino no atendimento das demandas apresentadas por seu padrinho político.

O rito processual previsto no regimento da Câmara dos Deputados determina que as proposições de emenda constitucional devam ter o início de tramitação por meio de uma avaliação de sua legalidade e constitucionalidade no âmbito da CCJ. A partir daí, caso aprovada naquele colegiado, a matéria deve seguir para sua apreciação no interior de uma Comissão Especial, especialmente constituída para esse fim. Ora, a indicação de uma parlamentar bastante identificada com os interesses de Bolsonaro para presidir a CCJ parece ser mais uma movimentação no sentido de acelerar a agenda conservadora. Assim, uma deputada em primeiro mandato, Bia Kicis (PSL/DF), assumiu o comando da comissão permanente considerada como a mais importante e estratégica na dinâmica da Câmara.

De acordo com a avaliação de convidados para participação nas primeiras audiências para avaliar a PEC 32, percebe-se que a proposta está carregada de ilegalidades e inconstitucionalidades. Apesar da postura governista irredutível e de alguns depoentes comprometidos com uma abordagem ideologicamente contrária ao setor público, o saldo da contribuição daqueles que participaram das reuniões aponta claramente para a impossibilidade de atestar a essência da PEC 32 como estando em conformidade aos determinantes constitucionais.

A lista das inconstitucionalidades presentes no texto justificaria a sua não aceitação pelo colegiado da Câmara, que tem exatamente essa função preliminar de avaliação. A criação de 5 novos regimes jurídicos para enquadramento de servidores sem prever qualquer destinação aos atuais funcionários amparados pelo Regime Jurídico Único (RJU) é entendido como uma afronta aos direitos constitucionais. A eliminação do instituto da estabilidade para os servidores públicos também compromete aspectos de constitucionalidade, uma vez que o princípio da isonomia estaria sendo ferido. A abertura da possibilidade de contratação de novos quadros integrantes da administração pública sem a exigência de concurso público se apresenta como possível afronta a princípios constitucionais.

PEC 32 é inconstitucional

Por outro lado, a PEC 32 apresenta um conjunto de dispositivos relativos à criação e à extinção de elementos da estrutura da administração pública. Assim, de acordo com as novidades a serem introduzidas na Constituição, o Presidente da República estaria autorizado a extinguir autarquias, fundações e outros órgãos da administração indireta sem a necessidade de recorrer ao estabelecido atualmente, qual, seja, a prévia autorização do poder legislativo.

Ora, esse poder quase imperial que se pretende conferir ao Chefe do Executivo, combinado à possibilidade de contratar pessoal sem concurso e de demitir servidores sem estabilidade, caracterizaria uma clara afronta ao princípio da impessoalidade, da imparcialidade, à divisão entre poderes e do espírito republicano que caracteriza nossa Carta Magna.

Assim, como se pode perceber, a PEC 32 não resiste nem mesmo a um exame preliminar de sua constitucionalidade. Caso a CCJ pretenda se manter fiel às suas responsabilidades e atribuições, o órgão não deveria permitir que a matéria avançasse para apreciação de seu mérito na Comissão Especial.

Os membros da CCJ acertaram um cronograma de audiências públicas e pactuaram que a matéria não seria votada antes que ali fosse recebido o Ministro da Economia. À parte todos os problemas associados aos aspectos da formalidade jurídica acima mencionados, persiste um conjunto de outros equívocos de natureza econômica e administrativa. Em uma abordagem sincera e honesta, a PEC 32 não pode ser qualificada de “Reforma Administrativa”. Não se trata de um instrumento reformista, pois a intenção fundamental não é aperfeiçoar ou melhorar o setor público, senão destruí-lo. Não se trata de uma peça cujo objetivo seja enfocar a administração de forma ampla e integral, mas tão somente pela ótica reducionista de busca do Estado mínimo. Portanto, o comparecimento do superministro Paulo Guedes à CCJ pode converter-se em mais uma oportunidade também de esclarecer aspectos de mérito da matéria, uma vez que a inconstitucionalidade já foi devidamente atestada.

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