domingo, 24 de março de 2024

O Brasil não cabe no jardim da Europa

Foto: Divulgação
Por Paulo Nogueira Batista Jr.

(Para Helena, neta primogênita, que deu origem ao título deste artigo)

O leitor ou leitora que me acompanhe um pouco não estranhará o título deste artigo, uma variante do título do meu livro mais recente, “O Brasil não cabe no quintal de ninguém”. Se não cabe no quintal de ninguém, como caberia no jardim da Europa? Quando a primeira edição do livro foi lançada, em 2019, Helena, a minha neta mais velha, na época com oito anos, disse que o livro se chamava “O Brasil não cabe no jardim de ninguém”. Helena atirou no que viu e acertou no que não viu. Hoje, o importante é lembrar que o Brasil não cabe, especificamente, no jardim da Europa.

Por que “jardim da Europa”? E por que dizer que o Brasil não cabe aí? Vamos por partes, como faria Jack, o Estripador.

O sr. Josep Borrell, que vem a ser nada mais nada menos que “o alto representante da União Europeia para os negócios estrangeiros”, declarou que a Europa é um “jardim” e o resto do mundo “majoritariamente uma selva”. O sentido desse tipo de afirmação é, como se sabe, argumentar que os europeus precisam proteger o seu “jardim”, isto é, a sua sociedade ultra confortável e privilegiada, do assédio dos estrangeiros de várias origens, destacadamente os imigrantes oriundos da África e do Oriente Médio, de um lado, e o imperialismo da Rússia expansionista, de outro. É duvidoso que os imigrantes sejam prejudiciais à Europa e que a Rússia seja, de fato, expansionista. Mas é assim que pensa atualmente a maioria dos europeus, ainda que nem todos sejam francos como Borrell.

Pois bem. Vejam vocês a contradição. Os europeus, tão ciosos do seu espaço e da sua soberania, dão-se o direito de continuarem imperialistas no trato com países em desenvolvimento pouco conscientes dos seus interesses nacionais. A Comissão Europeia continua lutando por um acordo de tipo neoliberal e neocolonial com o Mercosul. Como boa parte das camadas dirigentes brasileiras cabe, sim, no quintal (ou jardim) de qualquer um, não tivemos até agora, mesmo no governo atual, a clareza e a coragem de abandonar essa negociação problemática, para dizer o mínimo

Aqui há um aparente paradoxo. Se o acordo Mercosul/União Europeia é realmente tão favorável à parte europeia, como explicar que uma parte expressiva dos europeus se oponha ferrenhamente a esse acordo? Tento explicar sinteticamente.

Um dos traços centrais do acordo com a União Europeia, e daí o seu caráter neocolonial, é ajudar a perpetuar uma divisão internacional clássica do trabalho, que reserva às nações desenvolvidas, como as europeias, a produção e exportação de bens industriais e às nações em desenvolvimento, como as sul-americanas, o papel de exportadoras de produtos agrícolas e minerais. O acordo abre os mercados de bens industriais do Mercosul à livre entrada de produtos da União Europeia – uma concorrência desigual dada a superioridade das corporações alemãs e outras. As concessões que nos são feitas, ainda que limitadas, beneficiam sobretudo as exportações agrícolas do Mercosul. No entanto, por causa, das resistências de países como a França, Polônia, Bélgica e Irlanda, cujos agricultores temem a competição livre com os sul-americanos, o acordo mantém um regime protecionista na agricultura, baseado em quotas por produtos. Dentro desse regime, o acordo proporciona pouco acesso adicional para o Mercosul.

Não é surpreendente, assim, que a Alemanha seja muito favorável ao acordo, que aumenta o mercado externo para suas corporações industriais. Nem que a França e os outros países se mostrem muito resistentes. As parcas concessões feitas ao Mercosul em matéria de acesso adicional para suas exportações agrícolas têm impacto concentrado nos países cujos agricultura não consegue enfrentar de peito aberto a concorrência do Brasil e da Argentina nessa área. Mesmo limitadas, as concessões que obtivemos são vistas como perigosas por esses países.

Vive la France, portanto. Graças fundamentalmente a ela, pode ser que esse acordo desigual não seja concluído. O presidente francês, Emmanuel Macron, estará em breve em visita oficial ao Brasil, dos dias 26 a 28 de março. Vamos recebê-lo efusivamente, por favor! Já que os negociadores do Mercosul não conseguem defender os interesses nacionais adequadamente, contemos pelo menos com os franceses para barrar algo que não nos convém.

Podemos contar com o presidente Lula? Espero que esteja errado, mas parece que não. Por ocasião da vinda ao Brasil do presidente da Espanha, Pedro Sánchez, outro defensor do acordo, Lula decepcionou. Vejam o que ele disse: “"Nós ainda vamos assinar esse acordo para o bem do Mercosul e para o bem da União Europeia. A União Europeia precisa desse acordo. O Brasil precisa desse acordo. Não é mais uma questão de querer ou não querer, de gostar ou não gostar. Precisamos politicamente, economicamente e geograficamente fazer esse acordo, precisamos dar um sinal para o mundo de que queremos andar para frente. Por isso estou otimista."

Francamente! Não foi para isso que fizemos o “L”. Pelos motivos acima mencionados, mas também por vários outros que já expliquei em artigos anteriores, o acordo não nos serve e, pior, nos prejudica gravemente. Destaco os seguintes problemas adicionais.

1) As condições ambientais introduzidas pelos europeus, uma forma de “protecionismo verde”, restringem ainda mais o acesso ao mercado europeu. Chega-se ao ponto de pretender que as limitadas concessões feitas a nossos produtos agrícolas possam ser suspensas ou retiradas, se as cláusulas ambientais forem desrespeitadas por nós.

2) O acordo não proporciona efetivo acesso adicional aos mercados europeus para nossos produtos industriais. As tarifas sobre importações industriais já são muito baixas na União Europeu; zerá-las não faria grande diferença. E, de qualquer modo, nossas indústrias muito raramente se mostram competitivas com as europeias.

3) A abertura tarifária do Mercosul atinge não só a indústria, mas também a agricultura familiar, que terá dificuldade de competir sem barreiras com produtos europeus.

4) O acordo proíbe impostos de exportação, com algumas poucas exceções que os negociadores brasileiros estariam tentando assegurar. Esse é um instrumento de política econômica que hoje podemos usar livremente e que ficaria restringido, caso o acordo seja concluído.

5) O acordo força a abertura das compras governamentais a produtores europeus, em muitos casos mais competitivos que os nossos. O governo atual teria conseguido abrandar esse aspecto problemático do acordo, mas não se sabe se resolveu a questão inteiramente.

Faço uma ressalva. As negociações foram conduzidas desde 2023 sem transparência. Não sabemos exatamente o que o Mercosul conseguiu alterar no péssimo acordo negociado por Bolsonaro e Macri em 2019. Note-se, entretanto, que o governo Lula se limitou a controlar estragos, propondo ajustes pontuais no acordo herdado do governo anterior.

A pergunta que não quer calar, repito, é a seguinte: O que ganhamos com esse acordo? As nossas exportações aumentarão com o acordo? Já sabemos que não, pois as concessões europeias foram limitadas na área agrícola em que somos competitivos. Aumentarão os investimentos estrangeiros aqui? O acordo fará pouca ou nenhuma diferença nesse terreno. Um possível efeito positivo sobre investimentos de uma “melhora da confiança” é, como sempre, mera conjectura. O acordo pode, inclusive, reduzir investimentos europeus no Mercosul. Para que produzir aqui, se eles podem abastecer o nosso mercado livremente a partir do seu território?

Fica difícil, assim, entender a insistência do governo em concluir essa negociação. Uma explicação possível é que se considere politicamente importante a aproximação com a Europa. Se é isso mesmo, há um equívoco fundamental. Aproximação, sim. Subordinação, não. Não era para ser soberana a integração internacional da economia brasileira?

Além disso, é preciso ter claro que abandonar esse acordo não significa de modo algum romper com a União Europeia ou distanciar-se dela. A Europa continuará a ser um dos principais parceiros econômicos e políticos do Brasil e do Mercosul. As relações com eles continuarão fortes e poderão até ser aprofundadas, independentemente de acordos desiguais desse tipo.

* Uma versão resumida deste texto foi publicada na revista Carta Capital.

* Paulo Nogueira Batista Jr. é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. O seu livro mais recente em português é O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata, editora LeYa, segunda edição, atualizada e ampliada, 2021.

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