Reproduzo artigo de Washington Araújo, publicado no Observatório da Imprensa:
– Que é a verdade? – disse zombando Pilatos e não esperou pela resposta.
Assim começa Bacon seu Ensaio sobre a Verdade. E Pilatos tinha mesmo razão em não esperar pela resposta: as duas correntes filosóficas dominantes na época – o Epicurismo e a doutrina da Nova Academia – concluíam pela não existência de uma resposta plausível para a questão. Os séculos passaram e encontramos, resistindo ao tempo, a confissão súplice e ardente de Santo Agostinho: "Ó Verdade, Verdade! Quanto intimamente suspiram por ti as medulas de minha alma!" E faltam muitos devotos de Agostinho em nossas redações.
O jornalismo brasileiro que já não era muito assertivo terminou a semana passada vestido em forma de grande ponto de interrogação. Aquela coisa improdutiva e entediante de investigar antes de publicar a matéria foi solenemente escanteada. Estamos sob o império do "grande Se", sob o domínio do "achismo" desde as coisas mais banais até às mais importantes para o país.
Às favas com a busca da verdade, com as declarações de princípios a invocar reiteradas vezes um simulacro de isenção, imparcialidade, busca incessante pela objetividade jornalística. É como se as primeiras páginas dos jornais, seus espaços nobres e vistosos se transformassem do dia para a noite em editoriais alagadiços, transbordando de uma seção a outra, de uma editoria a outra, irrompendo em colunas de notas políticas, avançando por sobre o colunismo social e até mesmo impregnando o espaço dos leitores com a opinião amplamente expostos em cataclísmicos editoriais e repercutidos ao longo da edição. Ufa! Mas não fica por aí: essa semana teve até o vazamento do áudio do apresentador do Jornal da Globo, William Waack, em que mandava Dilma Rousseff calar a boca.
Atos sórdidos
Há poucos dias tratei neste Observatório da angústia irreprimida da grande mídia pelos tais fatos novos, algo que realmente pudesse quebrar a espinha dorsal da continuidade política que vem se desenhando no horizonte, embalada que é por resultados de pesquisas de opinião praticamente unânimes. E, na falta de fatos novos, vamos de fatos velhos mesmos – afinal, se potencializa isso e aquilo, monta-se imensa colcha de retalhos com restos de escândalos antigos, menos antigos e relativamente novos e, quem sabe?, teremos algo que responda prontamente ao se procurar por seu nome: "Fato novo! Venha aqui! É pra você, fato novo!"
E assim tem sido com o chamado caso da violação do sigilo fiscal de cinco personalidades ligadas ao PSDB, sendo uma a filha do candidato José Serra e também um primo da mulher do candidato. Descobriu-se no mesmo par de dias que foram quebrados os sigilos fiscais de outras 315 pessoas, incluindo-se na numerosa lista o empresário Samuel Klein, dono da Casa Bahia, e a da apresentadora da TV Globo, Ana Maria Braga.
O estardalhaço, como previsível, tem seu foco nas figuras do mundo político. É sobre essas cinco pessoas que tanta tinta é gasta, tanto papel é impresso, tanto espaço midiático é concedido e estendido até não mais poder. Quanto aos demais 315, que bem podem ser cinco centenas e meia de pessoas, a indignação não é suficiente para preencher o espaço de nota de rodapé. Tal é a realidade com que nos defrontamos.
Os inquéritos estão todos engatinhando, mas as sentenças finais já foram proferidas há bastante tempo pelos tribunais encastelados em nossas principais redações de jornais, emissoras de rádio e de tevê. A sentença que vem sendo propalada apresenta muitas variações para a não mais que duas conclusões:
1. Os sigilos fiscais das cinco personalidades ligadas ao PSDB foram deliberadamente quebrados com o intuito de favorecer a campanha presidencial de Dilma Rousseff, fazê-la avançar nas pesquisas de opinião pública e, concomitantemente, prejudicar a postulação presidencial de José Serra;
2. Estes atos sórdidos e cafajestes foram adredemente pensados, planejados e executados com conhecimento e aquiescência do comitê que coordena a campanha governista.
Uma coisa ou outra
O que falta é a prática daquilo que atendia pelo nome de bom jornalismo. O caso atual seguirá aos anais da crônica política brasileira como aquele em que a grande imprensa privilegiou a cobertura por ela mesma proferida para o caso, e seu poder imenso para relatar o necessário e indispensável processo de investigação que caso de tal monta continua a ensejar. E são muitos, numerosos, os fios desencapados nas repartições da Receita Federal em Mauá e em Santo André, municípios da grande São Paulo. Um roteiro minimamente razoável poderia ser seguido por jornalistas não-togados para desvendar o cipoal de contradições que o caso apresenta. Se perguntado por algum estudante de jornalismo não hesitaria em prescrever os seguintes passos:
* Refletir sobre o caso em si. É grave? Sim, gravíssimo. E a potencializarão pela grande imprensa não seria menos grave. Não é papel da imprensa partidarizar o objeto de sua cobertura. E no presente caso é exatamente isso o que ocorre: as manchetes da manhã seguem direto para a propaganda política do principal beneficiário do affair.
* Há que se retroceder na agenda política do Brasil a setembro de 2009. Estabelecer com o distanciamento crítico possível qual era o quadro político nacional de então: Aécio Neves estaria descartado da indicação tucana para concorrer à presidência da República? Se não, por que algum familiar do então governador mineiro não teve seu sigilo fiscal violado?
* Conceder o benefício da dúvida antes de convocar o pelotão de fuzilamento. Há que se responder objetivamente a algumas questões elementares: e se Dilma Rousseff for completamente inocente? E se o seu partido não tiver qualquer participação com a violação dos sigilos? E se o assunto estiver mesmo restrito à esfera penal e não à esfera político-eleitoral?
* Há que se refletir sobre a ação do PSDB junto ao TSE visando cassar o registro da candidatura governista. Tal ação demonstrou o elevado grau de belicosidade que se busca injetar em uma campanha com tudo para ser modorrenta. Do início ao fim. E recebeu até nome: "Ação Bala de Prata". Não fosse a firmeza combinada com a serenidade do ministro do TSE Aldir Passarinho e teríamos o país de pernas pro ar. Não se publicou qualquer análise minimamente aprofundada sobre as implicações de tal investida oposicionista.
* Há que se levantar também o outro lado dessa história. A começar por esta singela questão: e se a gestação do atual escândalo foi premeditada, planejado com bastante antecedência para surgir como fato novo com poder de fogo capaz de levar a eleição do primeiro para o segundo turno?
* Há que se buscar a motivação da candidata governista ao desejar – ainda em setembro de 2009 – recolher de forma ilegal, e flagrantemente criminosa, informações contidas na declaração de renda de Verônica Serra, a filha do então governador paulista José Serra.
* Há que se descobrir a motivação para bisbilhotar o sigilo fiscal de Eduardo Jorge Caldas Pereira, vice-presidente do PSDB e de outros quadros do partido. O mesmo quando apresentadora Ana Maria Braga e o empresário Samuel Klein.
* Há que se notar que, no caso específico da quebra do sigilo de Verônica Serra, surgiu uma procuração falsificada da primeira à última letra e que tem como personagem central o hoje notório contador Antonio Carlos Atella. Notícias dão conta que o personagem carrega consigo perfil inequívoco do clássico estelionatário. Afinal trata-se de cidadão que chegou a possuir não apenas um CPF, mas cinco CPFs e que, sem papas na língua, pretende vender por bom dinheiro informações sobre seu modus operandi e, em suas palavras, "com essa estória vou me arrumar". Seria importante levantar a vida pregressa do atilado contador, vasculhar seus computadores, devassar sua vida profissional sempre com o devido respaldo legal.
* Projetar o presente caso no futuro buscando um padrão. Por exemplo, analisar sobre que ações poderiam proteger a sociedade brasileira da ação de delinqüentes interessados em turvar o processo eleitoral.
Uma coisa é certa: ou a imprensa se contenta em ser imprensa ou então desiste disso e funda uma agremiação política. Diretrizes partidárias não faltariam, a começar pela visceral defesa da liberdade de prensa, de imprensa, de empresa. O desafio seria saber delimitar uma de outra.
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