Por Marcia Tiburi, na Revista Cult:
Sabemos que o maior de todos os poderes em nossa época é o do que chamamos de mídia. Legislativo, executivo e judiciário são poderes menores perto do poder dos meios de comunicação. O conteúdo produzido pela televisão, por exemplo, funciona como uma prótese de pensamento para o cidadão alienado, mas também para magistrados, procuradores e outros atores políticos, que se demitem do dever de refletir para julgar.
No Brasil, chamamos de “mídia” o que os portugueses chamam de média, palavra que vem do latim, media (meios), plural de medium (meio). Pronunciamos “mídia” como efeito da influência americana no senso comum brasileiro. E, como todos sabemos, basta olhar, por exemplo, para a destruição das empresas brasileiras a partir da Lava-Jato para se perceber que a influência dos EUA em nossa nação não se limita ao vernáculo.
Sabemos que a influência da mídia é imensa em nosso país, mas a própria questão dessa influência já ultrapassou todos os limites dos jogos de poder que conhecemos até aqui. Hoje, podemos dizer que a mídia não apenas influencia, mas “decide” pelos outros poderes. A própria espetacularização das versões produzidas pela mídia são repetidas em atos espetacularizados pelos agentes dos poderes menores que também querem aparecer e ser elogiados na televisão e nos jornais.
Vimos o que aconteceu nesta semana. Um general usou a rede social do Twitter para mandar recados à população. Certamente ele não estava apenas trocando ideias com amigos em público. O tom do que ele disse era ambíguo, podia ser interpretado de vários modos. Aliás, no Brasil, atualmente, há uma espécie de “interpretacionismo” a céu aberto que de um lado parece apenas fruto da incompetência de quem fala, mas de outro revela que a ambiguidade no discurso é um jogo de poder que se beneficia com o efeito do caos produzido pelo emissor. Naquela mesma noite, no Jornal Nacional, o apresentador, um dos personagens mais mecânicos da cena brasileira, falava como um robô a partir do tuíte do general. Quem tem algum sentimento cívico ou visão democrática sentiu uma profunda vergonha alheia.
Há uma continuidade visível entre essa pequena cena midiática de terça-feira, 3 de abril, e a cena de ontem, dia 4 de abril, no STF, em que os ministros que votavam contra a constituição faziam um discurso populista e, muitas vezes, incompreensível. Ninguém conseguia entender o que dizia um Fachin, que chegou a citar doutrinadores que imediatamente vieram a público declarar que o ministro não havia entendido o que eles escreveram, ou uma Rosa Weber, que dizia ceder a uma maioria, que só era maioria por causa do voto dela. Discursavam mal escondendo, atrás de palavras confusas e argumentos sem pé nem cabeça, a finalidade político-midiática dos seus votos.
Um detalhe: o melhor jeito de acabar com o poder dos poderosos é não lhes dar poder. Assim, se não acabamos com o poder da televisão no dia em que nos negarmos a ser sua audiência, pelo menos somos capazes de relativizá-lo e colocá-lo assim no seu devido lugar, um lugar que deveria ser menor do que dos demais poderes. É claro que o Estado já deveria ter se ocupado de regulamentar os meios de comunicação – como fizeram a França, a Inglaterra e até os Estados Unidos -, mas os detentores do poder econômico que tomaram o Estado brasileiro sempre se beneficiaram destes meios. Uma atitude institucional precisa ser tomada (e nunca será com o governo do golpe que depende da televisão), mas a atitude pessoal também é pragmaticamente necessária. Essa atitude implica a dignidade que falta a muitos agentes em todos os cenários. Não uso o termo “dignidade” em sentido moralista: uso-o em sentido ético-pragmático.
Lembremos de Eichmann em Jerusalém e que não se negue que o pessoal é político, que o lugar que cada um ocupa como cidadão ou funcionário produz efeitos. A construção de uma outra sociedade, querendo ou não, passa pelo lugar de cada pessoa, de cada singularidade que ocupa seu lugar político no mundo, sobretudo como cidadão. Dignidade tem a ver com coragem. Falar de dignidade em uma hora como essa pode parecer ingenuidade. Quem vai esperar respeito à dignidade por parte de agentes que estão presos ao poder midiático? Mas há resistência, como ontem demonstraram alguns poucos ministros.
Sabemos desde o Golpe de 2016, que depôs Dilma Rousseff, para o qual ingenuamente não estávamos preparados, que há um jogo armado, programado. Toda a “programação” do Golpe foi bem montada. Programaticamente montada como um espetáculo. Como em uma série de televisão, o roteiro está dado. Cada ator tem o seu papel. Direitos e garantias fundamentais devem ser afastados para não impedir o final desejado pelos diretores e patrocinadores do show. Há muitos capítulos que já vimos e todos esperam pelo capítulo final em que Lula será preso.
Um final adequado para uma audiência sádica, que sente prazer com o sofrimento e com a humilhação. Uma perversão que uma manifestante antes do julgamento deixou explícita ao declarar que seria “sexy” pedir a prisão do ex-presidente Lula da Silva.
Lula preso será um espetáculo de prazer visual para aqueles que o odeiam, e será um momento de desprazer para aqueles que o respeitam. Sem esse espetáculo, o papel exercido pelo juiz Sérgio Moro perderia o sentido e ele seria relegado à insignificância a que estava antes de ser escalado como um dos protagonistas da trama.
Com o espetáculo, esses atores canastrões conseguem uma sobrevida pelo menos com aquela parte da população alimentada com a ração envenenada do ódio produzido há tempos pela mídia.
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