Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Numa nação que em 2018 convive com o os movimentos de um personagem tenebroso como Jair Bolsonaro, o documento da CIA sobre execução de adversários do regime militar servem para confirmar que as ditaduras e os ditadores só cabem no lixo da História, cobertos por uma vergonha sem limites e uma indignação permanente.
A principal lição do documento - cujo teor integral permanece reservado, 44 anos depois - é mostrar a tragédia de um país governado por autoridades que se imaginam capazes de promover ataques criminosos e seletivos contra os inimigos políticos, sem perder autoridade nem comando sobre a situação de conjunto.
Recém-empossado pelo regime de baionetas e balas na nuca que governava o país, a conversa entre Ernesto Geisel e um grupo de subordinados é de uma clareza chocante e definidora. Também obriga a uma primeira constatação espantosa.
Por meio século, o registro de um diálogo tão comprometedor e repulsivo foi acessível à alta cúpula do governo dos Estados Unidos -- que teve nove presidentes no período, inclusive Richard Nixon, que deixaria o cargo poucos meses depois -- mas permaneceu escondido por mais de quatro décadas dos brasileiros e brasileiras. Revela-se assim uma situação particularmente desmoralizadora para um regime tão cioso daquilo que chamava de Segurança Nacional, conceito manipulado à vontade para justificar atrocidades contra cidadãos e cidadãs de brasileiras. (Embora tenham importado técnicas de tortura empregadas pelo Exército colonial francês em guerras na África, as Forças Armadas brasileiras empregavam a violência contra seus compatriotas, coisa que os franceses não costumavam fazer).
Quarenta e quatro anos depois de um macabro encontro entre o recém-empossado presidente Ernesto Geisel e altos oficiais das Forças Armadas, os fatos são de uma simplicidade chocante.
Um presidente da República, com décadas de atividade contra a democracia -- na década de 50 contra Getúlio, na crise contra Jango em 1962, no golpe de 64 -- coloca-se na posição de quem "autoriza" a execução de inimigos políticos. Sem julgamento, sem o devido processo legal, sem direito de defesa. Nada daquilo que hoje chamamos -- algumas vozes falam em tom de desprezo -- de garantias e direitos humanos.
O que importa ao regime é a vontade do ditador, sua opinião. Ninguém está incomodado com as vidas humanas, com existências que seriam destroçadas -- mas com a hierarquia, o poder de Estado, usurpado sucessivamente desde 1960, quando havia ocorrido a última eleição direta para presidente. Era isso, o poder usurpado, que nem remotamente poderia ser colocado em risco. Quer a palavra final, obtida pela decisão sobre a vida e a morte, a ser partilhada exclusivamente com seu homem de confiança, João Figueiredo, que, num sintoma de todas as coisas, da antecipação geral do desastre, em 1985 seria forçado a deixar o Palácio do Planalto pela porta dos fundos.
Entre assassinatos encomendados e aqueles não autorizados, ninguém se salvou. A institucionalização do assassinato como método de ação política tornou o país muito pior, artificialmente pior -- como se já não tivéssemos tantas mazelas herdadas pela desigualdade estrutural, pela história e pela geografia.
O crime produzido no coração do poder de Estado, na sua instância suprema, formalmente secreta até quinta-feira passada, preparou um país desfalcado, emburrecido pela violência, castrado pela falta de diversidade, com uma excrescência autoritária sempre à espreita, confiante da própria impunidade.
Estamos falando de um sistema acima de tudo corrupto. Claro que havia a corrupção de sempre, herdada, reproduzida e escondida pela censura. Mas não é disse que se trata. Porque não pode haver corrupção maior do que acobertar responsabilidades pela eliminação de vidas humanas. Assim: escondendo a verdade em arquivos incinerados -- ou que se diz que foram incinerados.
Depois da fraude sobre o assassinato de Vladimir Herzog e Rubens Paiva, os dez dirigentes do PCB e da Chacina da Lapa, a morte de Olavo Hansen, esses segredos, essas mentiras, esse cinismo, alimentam o sorriso do fascismo que assombra o país nos dias de hoje. Aqui está o que importa. Aqui se encontra a ameaça -- mais uma vez.
No país que vivia sob o Ame-o ou Deixe-o, foi preciso da CIA para saber o que acontecia com no governo -- com meio século de atraso.
Numa nação que em 2018 convive com o os movimentos de um personagem tenebroso como Jair Bolsonaro, o documento da CIA sobre execução de adversários do regime militar servem para confirmar que as ditaduras e os ditadores só cabem no lixo da História, cobertos por uma vergonha sem limites e uma indignação permanente.
A principal lição do documento - cujo teor integral permanece reservado, 44 anos depois - é mostrar a tragédia de um país governado por autoridades que se imaginam capazes de promover ataques criminosos e seletivos contra os inimigos políticos, sem perder autoridade nem comando sobre a situação de conjunto.
Recém-empossado pelo regime de baionetas e balas na nuca que governava o país, a conversa entre Ernesto Geisel e um grupo de subordinados é de uma clareza chocante e definidora. Também obriga a uma primeira constatação espantosa.
Por meio século, o registro de um diálogo tão comprometedor e repulsivo foi acessível à alta cúpula do governo dos Estados Unidos -- que teve nove presidentes no período, inclusive Richard Nixon, que deixaria o cargo poucos meses depois -- mas permaneceu escondido por mais de quatro décadas dos brasileiros e brasileiras. Revela-se assim uma situação particularmente desmoralizadora para um regime tão cioso daquilo que chamava de Segurança Nacional, conceito manipulado à vontade para justificar atrocidades contra cidadãos e cidadãs de brasileiras. (Embora tenham importado técnicas de tortura empregadas pelo Exército colonial francês em guerras na África, as Forças Armadas brasileiras empregavam a violência contra seus compatriotas, coisa que os franceses não costumavam fazer).
Quarenta e quatro anos depois de um macabro encontro entre o recém-empossado presidente Ernesto Geisel e altos oficiais das Forças Armadas, os fatos são de uma simplicidade chocante.
Um presidente da República, com décadas de atividade contra a democracia -- na década de 50 contra Getúlio, na crise contra Jango em 1962, no golpe de 64 -- coloca-se na posição de quem "autoriza" a execução de inimigos políticos. Sem julgamento, sem o devido processo legal, sem direito de defesa. Nada daquilo que hoje chamamos -- algumas vozes falam em tom de desprezo -- de garantias e direitos humanos.
O que importa ao regime é a vontade do ditador, sua opinião. Ninguém está incomodado com as vidas humanas, com existências que seriam destroçadas -- mas com a hierarquia, o poder de Estado, usurpado sucessivamente desde 1960, quando havia ocorrido a última eleição direta para presidente. Era isso, o poder usurpado, que nem remotamente poderia ser colocado em risco. Quer a palavra final, obtida pela decisão sobre a vida e a morte, a ser partilhada exclusivamente com seu homem de confiança, João Figueiredo, que, num sintoma de todas as coisas, da antecipação geral do desastre, em 1985 seria forçado a deixar o Palácio do Planalto pela porta dos fundos.
Entre assassinatos encomendados e aqueles não autorizados, ninguém se salvou. A institucionalização do assassinato como método de ação política tornou o país muito pior, artificialmente pior -- como se já não tivéssemos tantas mazelas herdadas pela desigualdade estrutural, pela história e pela geografia.
O crime produzido no coração do poder de Estado, na sua instância suprema, formalmente secreta até quinta-feira passada, preparou um país desfalcado, emburrecido pela violência, castrado pela falta de diversidade, com uma excrescência autoritária sempre à espreita, confiante da própria impunidade.
Estamos falando de um sistema acima de tudo corrupto. Claro que havia a corrupção de sempre, herdada, reproduzida e escondida pela censura. Mas não é disse que se trata. Porque não pode haver corrupção maior do que acobertar responsabilidades pela eliminação de vidas humanas. Assim: escondendo a verdade em arquivos incinerados -- ou que se diz que foram incinerados.
Depois da fraude sobre o assassinato de Vladimir Herzog e Rubens Paiva, os dez dirigentes do PCB e da Chacina da Lapa, a morte de Olavo Hansen, esses segredos, essas mentiras, esse cinismo, alimentam o sorriso do fascismo que assombra o país nos dias de hoje. Aqui está o que importa. Aqui se encontra a ameaça -- mais uma vez.
No país que vivia sob o Ame-o ou Deixe-o, foi preciso da CIA para saber o que acontecia com no governo -- com meio século de atraso.
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