quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

A água e o complexo de vira-lata

Por Paulo Kliass, no site Vermelho:

Mal encerramos o período festivo do final de dezembro e o capitão nos brinda com mais uma de suas trapalhadas. Bem ao seu estilo de se apresentar com propostas supostamente inovadoras na forma e no estilo, ele vem a público falar de algo que não conhece ou a respeito do qual está sendo muito mal assessorado. Como aconteceu em uma série de oportunidades anteriores, mais uma vez ele poderia ter ficado bem caladinho. O País agradeceria, emocionado.

Bolsonaro provavelmente achou que iria marcar seu primeiro gol de placa. Em sua visão estreita e limitada, os ingredientes seriam perfeitos para uma fala de sucesso. Reuniria elementos diversos, tais como: i) um futuro ministro astronauta; ii) um país com o qual ele pretende aprofundar relações diplomáticas e comerciais; iii) uma região do Brasil onde ele perdeu as eleições e onde pretende se recuperar politicamente. Bingo! Só que não! Faltou combinar com os russos, como diria o saudoso Mané Garrincha para o técnico da seleção brasileira de 1958, o Feola.

No dia de Natal, o presidente eleito saiu-se com a declaração bombástica:

(...) “o futuro ministro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes, vai a Israel ainda em janeiro para fazer uma parceria na área de dessalinização d´água.” (...)

De acordo com as informações divulgadas por suas contas nas redes sociais, o capitão pretendia focar na recuperação da qualidade da água salobra, problema bastante conhecido há muito tempo e que afeta grande parte da população sofrida de nossa região do semi-árido do Nordeste brasileiro. Assim, diz ele:

(...) "Pretendemos ainda em janeiro construir instalação piloto para retirar água salobra de poço, dessalinizar, armazenar e distribuir para agricultura familiar, estendendo o projeto para mais localidades após testes e ajustes" (...)

Brasil já tem tecnologia para dessalinização

Ocorre que faltou ao futuro ocupante do Palácio do Planalto um mínimo de informações a respeito de tema tão relevante. Não, ao contrário do que imaginou, ele não descobriu a pólvora! Há décadas que as instituições públicas em nossa terra se debatem com a questão. É bem verdade que os esquemas do clientelismo e do coronelismo políticos na região sempre criaram dificuldades para evitar que a universalização do acesso à água potável conferisse mais autonomia à população que ali vive. Que nunca ouviu falar do drama secular provocado pelas secas nordestinas? A começar, inclusive, pela biografia do próprio Presidente Lula enquanto criança e sua família.

Além disso, ao que tudo indica, ninguém informou a Bolsonaro a respeito da importante condecoração atribuída a uma jovem pesquisadora brasileira por trabalhos inovadores desenvolvidas justamente nesse mesmo tema. Sim, pois Nadia Ayad recebeu em 2017 um prêmio internacional ao criar um sistema especial de dessalinização de água. E tem mais. Em geral, não gosto de ressaltar esses aspectos, mas aqui acho que eles devem ser sublinhados. Trata-se de uma jovem negra, participante do Programa Ciência Sem Fronteiras e que desenvolveu seu projeto no âmbito de sua formação no conhecido Instituto Militar de Engenharia (IME), no Rio de Janeiro. Um verdadeiro tapa na cara da maioria dos assessores durante a campanha, com se saíam com termos como “mulambada” e críticas aos programas que estimulavam estudos no exterior.

Mas nada disso parece ter relevância na cabeça do capitão. Circundado pela fina flor do liberalismo doutrinarista, ele parece até desdenhar da importante contribuição das unidades universitárias de ensino e pesquisa ligadas às Forças Armadas, como o IME e o Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), em São José dos Campos. Para esse povo encantado pelo financismo e pelo mercado, tudo o que é bom vem do centro do poder, de preferência importado dos Estados Unidos e, agora, também de Israel.

Esse complexo de vira-lata elevado à enésima potência pode ser extremamente desastroso para o futuro de nossa capacidade de produção científica e tecnológica. Mas segundo essa visão de subserviência aos poderosos da cena internacional, não teria sentido algum em desenvolvermos pesquisa em “ciência, tecnologia e inovação” (C,T &I, no jargão da área), pois nunca teríamos condições de alcançar a vanguarda da pesquisa e das descobertas em gestação nos polos mais desenvolvidos do mundo. Aliás, foi exatamente esse debate que se deu na década de 1950, quando Monteiro Lobato e outros “malucos” resolveram lançar a campanha “o petróleo é nosso”. Convenceram Getúlio da viabilidade da empreitada e estão aí os resultados. Ao longo de seis décadas saímos do nada e transformamos a Petrobras em uma das empresas mais capacitadas tecnologicamente para extração, produção e refino do petróleo no mundo.

Prêmio para pesquisadora brasileira e reconhecimento da Embrapa

Além do importante prêmio simbólico de Nadia, seria igualmente importante que a equipe de assessoria do capitão o houvesse informado a respeito dos programas desenvolvidos por instituições públicas como a Embrapa. Há muito tempo que as equipes de pesquisadores dessa importante e renomada empresa pública federal desenvolve sistemas e tecnologia para solucionar essa questão da transformação da água salobra das cisternas do semi-árido. Em 2017, por exemplo, participaram do Congresso Mundial da Dessalinização e apresentaram projetos importantes para o assunto.

E se também estivesse minimamente bem informado sobre as articulações no plano internacional, Bolsonaro saberia que a própria ONU considera a atual década 2010-2020 como estratégica para a redução dos riscos de desertificação das terras no planeta. E com isso, há um espaço enorme na agenda desse centro de propagação do “marxismo cultural” para ações de minimização do desperdício da água doce existente no mundo e a busca de novas fontes. Dentre elas, obviamente, está a pesquisa de novas técnicas e metodologias para dessalinização da água dos mares e oceanos.

Se o governo brasileiro quer realmente avançar na implementação de sistemas de transformação da água salobra de nosso continente ou desenvolver tecnologia eficiente para transformar a água de nossos oito mil quilômetros de costa marítima em água potável, seria mesmo ótimo. Mas para tanto, não é necessário estabelecer nenhuma dependência tecnológica com Israel. Contratos de experiência comum e parcerias internacionais são sempre bem vindos. Mas existem outros países que estão desenvolvendo modelos alternativos para esse mesmo fim.

Mas o que mais essa experiência destrambelhada do governo que ainda começou nos deixa como alerta é o risco potencial provocado por esses principismos pseudo-ideológicos quando transformados em política pública. A luta por uma soberania econômica e uma independência tecnológica implica em um modelo diametralmente oposto a esse espalhado por todos os cantos por Paulo Guedes e sua equipe de aprendizes liberaloides.

Fortalecer a economia brasileira e promover algum tipo de redução da pobreza e da concentração de renda exige a recuperação do protagonismo do Estado e não seu aniquilamento. Em termos concretos, isso significa abandonar todo e qualquer devaneio de uma noite de verão a respeito de privatizar as empresas estatais. Estão aí os exemplos da Embrapa e da Petrobrás como contraprova. E também tem o sentido de aumentar - sim, eu disse aumentar! - as verbas orçamentárias para ciência, tecnologia e inovação. Ou seja, bem ao contrário da sanha cortadora e redutora dos indicados para a área econômica.

Caso contrário, ficaremos eternamente deitados em berço esplêndido, admirando as conquistas tecnológicas do resto do mundo, pagando pela importação para utilizarmos esses modelos por aqui e nos considerando como estruturalmente incapazes de promover qualquer salto na História futura.

* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.

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