segunda-feira, 20 de maio de 2019

Um novo patamar na resistência popular

Por Fernando Silva, no site Correio da Cidadania:

Foram pro­testos de massas, em mais de 200 ci­dades do país, in­cluindo todas as ca­pi­tais. Es­tu­dantes uni­ver­si­tá­rios, se­cun­da­ristas, do­centes e ser­vi­dores das uni­ver­si­dades, pro­fes­sores das redes pú­blicas e ainda uma ampla par­ti­ci­pação po­pular com a adesão e so­li­da­ri­e­dade de inú­meros se­tores so­ciais, inclu­sive es­colas pri­vadas. Sem margem para exa­geros, po­demos afirmar que mais de um mi­lhão de pes­soas foram às ruas do país contra o corte de verbas da Edu­cação, em par­ti­cular em uni­ver­si­dades e ins­ti­tutos téc­nicos pú­blicos. Sem des­con­si­derar que foi também um dia de pa­ra­li­sa­ções em vá­rias redes es­ta­duais de en­sino pú­blico, como no Rio de Ja­neiro, e em vá­rios campi ou cursos universitários pelo país.

Foi a pri­meira grande ma­ni­fes­tação de massas na­ci­onal contra o go­verno Bol­so­naro, muito maior e de outra qua­li­dade de par­ti­ci­pação em re­lação ao 22 de março, dia de luta contra a re­forma da Previdência, que havia sido uma boa jor­nada de luta, mas ainda de van­guarda. As ma­ni­fes­ta­ções em de­fesa da Edu­cação Pú­blica dessa quarta ul­tra­pas­saram os muros das es­colas e uni­ver­si­dades.

O dia teve ca­rac­te­rís­ticas do #EleNão, de se­tembro pas­sado, que sempre re­mete ao que houve de pro­gres­sivo no junho de 2013: mas­si­vi­dade, am­pli­tude, ocu­pação das ruas e praças pú­blicas, uma ra­zoável ho­ri­zon­ta­li­dade.

A au­sência de qual­quer re­pressão vi­o­lenta aos pro­testos (não houve além de epi­só­dios lo­ca­li­zados) é outro in­di­cador da ca­rac­te­rís­tica desse tipo de ma­ni­fes­tação que impõe um recuo à hi­pó­tese de re­pressão aberta. O ar­ti­cu­lista da Folha de S. Paulo Igor Gelow chegou a ques­ti­onar se o con­tin­gen­ci­a­mento (blo­queio) de 30% das verbas dis­cri­ci­o­ná­rias (aquelas que podem ser cor­tadas) da Edu­cação pú­blica não será os 20 cen­tavos da vez, re­me­tendo ao es­topim dos pro­testos de 2013. É uma boa questão, que a se­gunda quin­zena de maio, já com novos pro­testos mar­cados, po­derá res­ponder.

O go­verno de pro­vo­ca­dores perde apoio

Ou­tros es­to­pins, além do blo­queio dos re­cursos, po­ten­ci­a­lizam ainda mais o mo­vi­mento, no caso, a de­sas­trada e pro­vo­ca­tiva con­dução de Bol­so­naro e seu mi­nistro da Edu­cação. Pri­meiro com a crise do recua ou não recua nos cortes. A pa­ta­coada pre­si­den­cial pro­vocou enorme des­con­forto em uma dúzia de par­la­men­tares ali­ados, que viram Bol­so­naro, na vés­pera dos pro­testos, or­denar a sus­pensão do con­tin­gen­ci­a­mento de verbas por te­le­fone, di­vul­garam a in­for­mação e logo em se­guida foram des­men­tidos. O mi­nistro disse em au­di­ência na Câ­mara que foi "um mal-en­ten­dido e que o pre­si­dente não sabia di­reito do que se tra­tava".

Fosse pouco, no dia dos pro­testos Bol­so­naro in­sultou os ma­ni­fes­tantes e toda a co­mu­ni­dade uni­ver­si­tária – em plena e ver­go­nhosa vi­agem não ofi­cial ao Texas, EUA, para buscar apoio na fa­mília Bush, já que Nova York lhe deu as costas. Assim, o pre­si­dente criou di­re­ta­mente um clima de po­la­ri­zação com os ma­ni­fes­tantes e de in­dig­nação contra seu go­verno, de uma forma que de­sa­gradou po­lí­ticos ali­ados e mi­li­tares.

Con­tri­buiu também para o au­mento da re­volta a de­sas­trosa vi­sita do mi­nistro da Edu­cação, Abraham Wein­traub, à Câ­mara dos De­pu­tados, quando in­sultou a in­te­li­gência até mesmo de re­pre­sen­tantes de par­tidos tra­di­ci­o­nais da di­reita, ao fal­sear nú­meros dos cortes apli­cados.

A turma em torno do pri­meiro man­da­tário, in­cluído o su­per­mi­nistro Paulo Guedes, pa­rece não en­tender que, ao con­trário da Re­forma da Pre­vi­dência, os cortes na Edu­cação fe­deral não uni­ficam a classe do­mi­nante. Basta ob­servar a co­ber­tura fa­vo­rável das or­ga­ni­za­ções Globo e da Folha de S. Paulo às ma­ni­fes­ta­ções. Os cortes não apenas di­videm, como em­purram se­tores pro­pri­e­tá­rios e da alta classe média para o apoio aos pro­testos pela Edu­cação.

Vá­rios donos de es­colas par­ti­cu­lares sus­pen­deram as aulas no 15M ou la­varam as mãos sobre a par­ti­ci­pação dos alunos nos pro­testos. Só na ci­dade São Paulo, pelo menos 33 im­por­tantes es­colas par­ti­cu­lares não fun­ci­o­naram. A re­volta contra os cortes na Edu­cação é am­plís­sima e co­meça a am­pliar também o des­lo­ca­mento de se­tores po­pu­lares na di­reção de en­grossar a opo­sição ao go­verno.

A hi­pó­tese de um nau­frágio bol­so­na­rista pre­coce

O em­bate do go­verno com a mo­bi­li­zação po­pular no tema da Edu­cação não é um fato iso­lado na crise de go­verno. É o mais im­por­tante até agora, mas não o único. Es­tamos fa­lando de uma es­pe­ta­cular mo­bi­li­zação de­pois de apenas quatro meses e meio de go­verno, quando nor­mal­mente as con­di­ções cos­tumam ser de maior to­le­rância e ex­pec­ta­tiva para com go­ver­nantes recém-em­pos­sados. Mas Bol­so­naro já acu­mula uma sequência sur­pre­en­dente de re­veses.

As der­rotas no Con­gresso Na­ci­onal – o es­quar­te­ja­mento de sua re­forma ad­mi­nis­tra­tiva e a con­vo­cação do mi­nistro Edu­cação são apenas dois exem­plos re­centes – são um re­cado ní­tido do cha­mado "cen­trão" (DEM, PP, Po­demos, So­li­da­ri­e­dade etc.) de que Bol­so­naro não vai go­vernar sem esta maioria par­la­mentar. Mas pode estar vindo por aí o tsu­nami que o pró­prio pre­si­dente tanto temia: as in­ves­ti­ga­ções que podem es­ta­be­lecer li­ga­ções or­gâ­nicas dos Bol­so­naros com mi­lí­cias.

Im­pres­siona a ina­bi­li­dade dessa ala da ex­trema-di­reita que des­gra­ça­da­mente tem a pre­si­dência do país. Sim­ples­mente pa­rece não obe­decer à ló­gica de ne­nhum setor econô­mico sério. Não está sob influência de nin­guém.

Afinal, do ponto de vista dos in­te­resses do ca­pital fi­nan­ceiro, da po­lí­tica tra­di­ci­onal, até mesmo dos mi­li­tares, não fazem sen­tido algum os chi­li­ques e pro­vo­ca­ções que causam ta­manha re­jeição em pouco tempo e ta­manha mo­bi­li­zação, quando todo o es­forço go­ver­na­mental de­veria estar vol­tado para apro­vação da Re­forma Pre­vi­den­ciária...

Nem mesmo sob a ótica ne­o­li­beral as pro­vo­ca­ções da ala bol­so­na­rista se jus­ti­ficam. E não pa­raram! No dia se­guinte às grandes mar­chas e con­cen­tra­ções an­ti­cortes, o MEC e Bol­so­naro re­ta­li­aram o movi­mento com um de­creto que re­tira dos rei­tores das fe­de­rais a com­pe­tência para in­dicar seus pró-rei­tores.

Pa­ra­le­la­mente, vêm a pú­blico os nú­meros de nova de­sa­ce­le­ração da eco­nomia e de au­mento do número de de­sem­pre­gados no país, o que pode der­reter a po­pu­la­ri­dade do go­verno nos pró­ximos meses. Por todas estas ra­zões, a hi­pó­tese do nau­frágio do nú­cleo duro bol­so­na­rista não está descartada para se­manas ou meses, a de­pender em pri­meiro lugar do re­sul­tado dessa mo­bi­li­zação pela Edu­cação, dos efeitos que po­derá ter na tra­mi­tação da Re­forma da Pre­vi­dência e da di­mensão que podem tomar as in­ves­ti­ga­ções da re­lação do clã Bol­so­naro com mi­lí­cias e cor­rupção.

Aberto um novo ce­nário?

In­de­pen­den­te­mente de haver ou não cor­reção de rota na con­dução do go­verno para re­ar­ti­cular uma base de sus­ten­tação, co­me­çando pelo Con­gresso Na­ci­onal, abriu-se uma brecha enorme para impor-lhe uma der­rota a partir da mo­bi­li­zação da Edu­cação. Isto porque os eventos do dia 15 de maio mu­daram o pa­tamar da re­sis­tência. De­mons­trou-se que existe uma re­sis­tência ma­ciça ao go­verno Bol­so­naro, com dis­po­sição de mo­bi­lizar-se, com pro­ta­go­nismo na ju­ven­tude, em grande parte fe­mi­nina e negra, com ca­pa­ci­dade de po­la­ri­zação e com con­di­ções de cons­truir na prá­tica uma frente única de ar­ti­cu­lação de muitas lutas.

Abriu-se também a pos­si­bi­li­dade de tal crise im­pactar para valer na tra­mi­tação da Re­forma da Pre­vi­dência. Em­bora até agora haja uni­dade na classe do­mi­nante, o pro­cesso já está con­ta­mi­nado pela crise de go­verno e a mo­bi­li­zação po­pular ini­ciada – na qual a questão da Pre­vi­dência já está par­ci­al­mente in­se­rida. A mo­bi­li­zação po­pular pela Edu­cação am­plia as pos­si­bi­li­dades de di­a­logar e con­vencer o povo deste outro brutal ataque do go­verno e do ca­pital fi­nan­ceiro.

Manter o curso da luta contra os cortes na edu­cação, em toda sua am­pli­tude e mas­si­vi­dade, com as novas datas de pro­testo que já estão sendo ar­ti­cu­ladas, como o 30 de maio con­vo­cado pela UNE, é o pri­meiro de­safio. Esta pode ser a pri­meira grande ba­talha em que o go­verno seja co­lo­cado contra as cordas, com con­sequên­cias pro­fundas para frear os ob­je­tivos mais ne­fastos da co­a­lizão ul­tra­di­rei­tista fun­da­men­ta­lista no poder.

A Greve Geral de 14 de junho contra a Re­forma da Pre­vi­dência po­derá ser um novo ponto de in­flexão po­si­tiva para os tra­ba­lha­dores e tra­ba­lha­doras nesta con­jun­tura, se for também uma soma das pautas e in­dig­na­ções que estão se avo­lu­mando em pouco tempo.

* Fer­nando Silva é jor­na­lista e membro do Di­re­tório Na­ci­onal do PSOL.

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