domingo, 23 de junho de 2019

O enredo da tragédia em dez pontos

Por Reginaldo Moraes

Vamos recordar o que já sabemos ou deveríamos saber. Ou o que sabemos sem saber que sabemos, porque não juntamos os pontos.

A memória é algo parecida com a fábula – você entra na floresta e vai deixando pedaços de pão para marcar o caminho. Acontece que o espírito humano é povoado de pássaros que comem alguns dos pedaços.

A trajetória se embaralha. O que me sobrou foi mais ou menos o seguinte:

1. A preparação do golpe foi longa, perde-se no tempo. Alguns já o anunciavam lá por 2004, como o famoso sociólogo que dizia que “não vamos derrubar agora, vamos fazer Lula sangrar como um porco”.

Muito chique, o príncipe. E o golpe não foi pensado nem executado apenas (nem principalmente) por aqueles que hoje dele se beneficiam diretamente. Muita droga ficou pelo caminho, inclusive aquela que vinha em helicópteros.

2. Em 2013, o golpe era armado por uma colaboração da Casa Grande com a Casa Branca. Pela Casa Grande jogavam os tucanos, em suas diversas facções concorrentes – a do Serra, a do Aécio, a do Alkmin.

FHC, como sempre, dava uma de pai-de-todos. Acostumou-se à figura do pai fajuto, putativo. Pela Casa Branca jogavam Obama e Hilary (não era Trump). Os famosos irmãos republicanos, os Koch, ainda eram coadjuvantes.

Naquela ocasião, a dupla Obama-Hilary fazia aqui no Brasil aquilo que fizera no mundo inteiro – fomentava “revoluções coloridas” e “organizações horizontais”.

Dera certo na Tunísia, no Egito, na Ucrânia, meio certo na Libia (onde foi preciso uma ajudinha pela força aérea) e menos certo na Síria, onde até inventaram uma facção islâmica, seguindo a tradição já iniciada com a experiência Al Qaeda.

3. Os gringos articulavam com os tucanos e preparavam a retaguarda, com a NSA espionando os telefones e correios da Petrobrás, de empreiteiras e até do Palácio do Planalto.

Organizavam material que seria repassado aos gloriosos tucanos da Policia Federal e ao braço curitibano da inteligência americana.

Os think tanks da nova direita treinavam os “movimentos” locais. Vem Pra Rua surge como “rótulo” já nas manifestações de junho-2013, mas o grupo é fundado no segundo semestre, o MBL, um pouco depois.

E por aí adiante foram criadas essas “empresas promotoras de eventos” travestidas de movimentos sociais.

4. A Lava-Jato é iniciada em fevereiro de 2014, com grande alarde e poderoso esquema de mídia, alimentada por vazamentos bem calibrados.

O plano era um tanto óbvio: deveriam ser um crescendo até as eleições de outubro, para induzir a vitória de Aécio Neves. Aliás, no começo de 2014, essa era a minha aposta: os tucanos ganhariam a eleição e haveria um retrocesso.

Errei no prazo e na dimensão do retrocesso. Não deu pro Aécio, mas quase, a diferença foi pequena.

Pelo menos encostaram o suficiente para se sentirem seguros no plano B, o golpe do impeachment. E quando conseguiram, o balão não caiu na mão deles. Ficou para outros.

5. Durante o processo, lembrem, John Kerry, o secretário de Estado substituindo Hilary, veio ao Brasil negociar o comportamento do novo governo, que eles achavam que seria tucano: entregar o petróleo era o prato principal.

Só esqueceram de combinar com os russos.

6. Deu ruim, o enredo desandou. Do lado de lá, Hilary não ganhou – ganhou o que Serrra e Aluisio diziam ser o partido republicano de porre, Trump, o inesperado e indesejado. Do lado de cá, o tiroteio entre os tucanos queimou a todos eles. Depois da tempestade, sobrou para alguém que prometera fuzilar... o príncipe tucano.

O candidato forte de Moro não era Bolsonaro – ele nem estava no radar. Era Aécio o preferido. Como dizem os economistas, Bolsonaro era o second best. A besta primeira era o Aécio, Bolsonaro era a segunda besta. Mas foi a besta que sobrou. Se não tem tu, vai tu mesmo. Você precisa de um homem pra chamar de seu, mesmo que seja eu.

7. Feito o jogo, apurados os resultados, empossado o novo comandante, restava vender as peças roubadas. Para os compradores que havia. Estão vendendo.

8. Santos Cruz, o general despejado pelo astrólogo, diz que o governo é um show de bobagens. Um desgoverno. Pode ser. Mas essas bobagens criaram um leito de rio, mudaram o rumo das coisas, criaram situações de fato. Mudanças legais monstruosas emplacaram. Contratos enormes foram feitos, comprometendo o acervo do país.

Se mais adiante alguém quiser revogar contratos internacionais, vai ter que afirmar claramente que são criminosos, fraudes. E, mais do que dizer, vai ter que agir conforme a palavra: julgar e condenar os criminosos.

Uma transição, agora, é ainda mais complicada, menos “doce”. Porque o adversário dobrou a aposta e radicalizou os termos do confronto.

9. Um governo não cai, é derrubado. Hoje, essa ocorrência é duvidosa. Quem tem poder para fazê-lo, não tem interesse nisso. Quem tem interesse, não tem poder.

10. Esse suspense é desastroso. O país está sob cerco e clima de sabotagem há cinco anos.

Sem esperanças, vendendo o jantar para pagar o almoço. A desagregação – econômica, social, política, psico-social - tem a quem interessar. Alguém ganha com esse desmanche total.

Os filósofos chamam esse ganhador externo de Deus ex-machina, o agente poderoso, que fica fora das engrenagens usuais. Há um candidato óbvio para esse papel. A águia de cabeça branca.

Us homi lá de cima, os demônios que descem do norte.

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