quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

"Nós que não comemos carne de cachorro"

Sebastião Melo e Jair Bolsonaro. Foto: Alan Santos/PR
Por Tarso Genro, no site Sul-21:
 

Para escrever este artigo inspirei-me no título do filme de Ettore Scola “Nós que nos amávamos tanto”, que me soou como uma réplica ao artigo de Marcelo Rech, com seus ousados conselhos ao Prefeito Melo. Lembrei-me que nós, que não somos imbecis a ponto de acreditar que comeríamos “carne de cachorro”, se Manuela e Rossetto vencessem, deveríamos dizer alguma coisa. E veio o artigo: lembrei-me que na Itália, mesmo no fascismo, os prefeitos eram chamados de “síndacos”, não de zeladores.

Na noite de 27 de outubro de 1922, dia anterior à “Marcha sobre Roma”, Mussolini está em Milão assistindo o segundo ato de “O Cisne” de Ferenc Molnár, quando se aproxima do seu camarote Luigi Freddi, redator-chefe de “Il Popolo d’Italia”, para passar ao seu chefe notícias urgentes. Num artigo publicado no “Il Fascio” ele escrevera-numa retórica fascista sempre retomada com armas e punhais- “o soco é a síntese da teoria”.

Na noite anterior dois “capos” fascistas – Aldo Finzi e Cesare Rossi – tinham cumprido a ordem de circular pelas redações dos jornais com o assecla Amerigo Dùmini, cuja tarefa era mostrar aos jornalistas qual a situação que enfrentariam em breve prevenindo-os de forma nada gentil, qual a margem de liberdade que teriam na ordem fascista em gestação: “Prazer”, dizia ele: “Amerigo Dúmini, nove homicídios”. Dá para fazer uma analogia, mas apenas uma analogia, destes fatos históricos com o nosso presente lembrando a “rebelião dos anunciantes” da RBS, ocorrida recentemente: as ameaças são diferentes mas os métodos são os mesmos.

Hoje me deparo com um tuíte no Blog do Noblat, jornalista respeitado da imprensa tradicional, opositor ferrenho do PT e de Lula – simpatizante da deposição da Presidenta Dilma – que publicou a seguinte fórmula, retirada de um artigo divulgado no UOL, de autoria de Mariliz Pereira Jorge: “Ninguém mais deve ter dúvida de que Bolsonaro é um maldito Genocida”. É possível que o comportamento dos personagens mencionados no parágrafo anterior – relatados por Scuratti no seu já clássico “O Filho do Século” – não tenham sido exatamente como foram descritos, mas de alguma forma – com maior ou menor dramaticidade -eles ocorreram exatamente com aquele sentido. É possível que o
Bolsonaro Genocida não vá ser reconhecido como tal, pelas instâncias políticas e jurídicas do Estado brasileiro, mas que ele já empestou de fascismo, homofobia, racismo e ultra liberalismo suicida, toda a nação brasileira, não resta mais nenhuma dúvida.

Todos os fatos políticos, comportamento de instituições da sociedade civil, posições de partidos, posturas de personalidades, posições de jornalistas -da grande imprensa e das redes- devem ser apreciados, racionalmente, neste novo contexto que atravessa a sociedade brasileira, a partir disto que vemos e vivemos. Devemos fazê-lo, para que possamos falar sobre medos, canalhices, bravuras e limites de cada um de nós, quando o Presidente, passando de todos os limites de decência, responsabilidade, comiseração humana, ironiza e goza com os doentes, os mortos, as famílias sacudidas pela dor. Agora, no vídeo em que discursou com seu olhar doentio, prosseguiu seu feito lembrando um Prefeito que, para combater o coronavírus, sugeriu a aplicação de ozônio no reto das pessoas infectadas.

É com este espírito crítico, a partir da postura que sempre assumi de diálogo direto com adversários políticos racionais – na imprensa e fora dela – que quero fazer uma “carta” ao novo Prefeito, paralela àquela escrita pelo jornalista Marcelo Rech em ZH 05\6\12, dirigida ao Prefeito Melo, contestando-a nos seus principais termos.

Faço-o porque é impossível desligar a trajetória deste competente jornalista (a seu modo e com seus valores) de tudo que foi produzido na política do Estado e que nos levou a atual situação de impasse: divisão de opostos radicais dentro da democracia e legitimação formal – consciente ou inconscientemente – de um Chefe de Estado, já tratado pela própria imprensa tradicional como “maldito genocida”.

No seu artigo, primeiro Marcelo Rech cumprimenta o candidato vitorioso pela sua “legítima vitória”, o que revela -desde logo- a sua cumplicidade subjetiva e o seu “respeito” às formas pelas quais ela foi obtida. Foi uma vitória materialmente ilegítima, com fake news e simples mentiras sobre Manuela, rodando aos milhões pelas redes; caminhões transitando – impunemente nas ruas – anunciando que o comunismo seria instaurado e que os cidadãos da capital seriam obrigados a comer carne de cachorro;
calúnias e difamações aos milhares sobre a vida pessoal e familiar da candidata, distribuídas aos milhões.

Sugiro ao Prefeito sobre esta parte da carta: a sua eleição tem legitimidade apenas formal. Dentro de um processo eleitoral deformado, mas não tem legitimidade material – a verdadeira – e o senhor vai ter que obtê-la depois da posse, pois sua eleição foi montada por uma genética fascista, que veio de um Golpe, onde o futuro Presidente celebrou a tortura e a morte e debochou da Constituição e da República. Comece por colocar nos eixos as políticas sanitárias para combater a Pandemia, pois se o Sr. não fizer isso será permanentemente um governante ilegítimo, um negacionista criminoso, como já é visto o Presidente que o Sr. de forma oportunista, passou a apoiar.

Logo após Marcelo Rech faz duas referências exemplares a Prefeitos de outras época e outras cidades – Loureiro da Silva e Jaime Lerner que, se podem ser sustentadas como “exemplares” nos seus respectivos períodos – ao gosto mais ou menos “progressista” de quem examina assuas gestões – gestões que nada tem a ver com as mudanças que o país e as cidades sofreram nos últimos anos: concentração brutal de renda, concentração de recursos nas mãos da União, intensidade do crescimento populacional na formação das regiões metropolitanas, mudanças profundas na relação cidade-campo e – depois do golpe midiático parlamentar – concentração do poder numa estrutura política marginal de extrema direita, apoiada por políticos conservadores e pelos seus partidos tradicionais.

Rech faz estas duas referências, Prefeito, para não ter que falar dos Governos locais de Porto Alegre que colocaram a cidade no mundo: com o Orçamento Participativo numa Prefeitura já saneada, com o projeto Mercocidades, com a maior Reunião Mundial de Prefeitos jamais realizada no Brasil, com o Foro Social Mundial, com o Porto Alegre em Cena, com a captação de volumosos recursos de agências nacionais internacionais para fazer – por exemplo – a Terceira Perimetral e promover maciços investimentos em Saneamento, Pavimentação, Reforma e Construção de Escolas Públicas, construção do Projeto “Usina do Gasômetro” e do Mercado Público, bem como com a qualificação do Transporte Coletivo (a Carris sendo premiada como a melhor empresa de Transporte Coletivo do país), com Programas de Apoio e Resgate das famílias sem renda e da população de rua da cidade. Após este período, as políticas sociais foram relegadas – processualmente – para depois o povo morador das ruas triplicar e as crianças voltarem para as esquinas da esmola.

O método adotado por Rech, para lhe dar os conselhos, é conhecido na história: falar no passado remoto para não precisar falar do presente próximo, quando este contraria as suas convicções ideológicas. No caso concreto Rech, para ter honestidade informativa, teria que reconhecer que as forças políticas que não lhe agradam, tanto no Estado – inclusive com Collares – como na sua capital, incluído também este, governaram com honestidade, participação e sucesso local e mundial, respeitaram os adversários e deram provas de responsabilidade pública e ética política.

Prefeito: sugiro que o Sr. tome como referência – selecionando aqueles programas e projetos que lhe agradem – os Prefeitos que governaram Porto Alegre nos últimos tempos, pois todos tem -na sua medida- algo de bom para lhe oferecer, neste momento de morte e negacionismo, patrocinado por um Presidente que lhe agrada, mas que jamais vai lhe ajudar.

Um exemplo crucial, Prefeito – de viralatismo metodológico – é a sugestão crucial (!), que lhe dá o jornalista Marcelo Rech, orientando que o Sr. imagine Porto Alegre como a “Boston brasileira”. A sugestão foi apoiada nos profundos conhecimentos de gestão pública de outro “expert” em cidades bem-sucedidas, o jornalista David Coimbra, bolsonarista extremado, que talvez hoje esteja em fase de recuperação.

Veja Prefeito: Porto Alegre tem um PIB que chegou, aproximadamente, a 73,9 bilhões de reais, cujo PIB “per capita” é de 46 mil reais. Boston tem um PIB aproximado de 2 trilhões de reais (+ ou- 363 bilhões de dólares), o que enseja um PIB per “capita” de 450 mil reais! Diga para o Marcelo Rech, Prefeito, que não é que o sr. não queira, mas na verdade o Sr. não pode inspirar-se em Boston! Seria insano inspirar-se numa cidade que não tem nenhuma relação histórica, econômica, financeira, com a situação da nossa açoriana Porto Alegre, num país em que o Presidente que vocês mesmos ajudaram a eleger, daria -como indicativo de inspiração na gestão pública- o brilhante administrador Bispo Crivella.

Mas agora vem o ensinamento máximo de Rech, para a gestão pública, que um estudioso da antropologia urbana, da economia política global-local e da sociologia do desenvolvimento, poderia dar a um Prefeito despido de qualquer vocação pública: “o esforço de conferir tal marca à cidade é sobretudo da iniciativa privada, e assim deve ser, mas é preciso que o poder público não atrapalhe, que retire os obstáculos do caminho e que lidere – pelo entusiasmo e inspiração – a articulação para posicionar Porto Alegre como uma referência mundial em cidade inteligente e qualidade de vida. Ser um bom zelador da Capital é sua obrigação primeira”. Talvez fosse possível se fosse viável uma cidade inteligente com um Prefeito burro.

Pasmem: o Prefeito é promovido à condição de “Zelador” de uma cidade em que ele deveria ser o Síndico e que, na ausência deste, vê esta condição ser transferida à “iniciativa privada”, esta abstração identificada por meia dúzia de grandes empresários que podem até corrigir a RBS, através de uma insurreição de anunciantes.

Sinceramente, qualquer Prefeito não-medíocre ficaria ofendido com estes Conselhos dignos da escola infanto-juvenil do Movimento Brasil Livre.

Lembremos, finalmente, que a última e modesta sugestão de Marcelo Rech, ao Sr. -prezado Prefeito- é “Pense Grande”, o slogan do PMDB de Cezar Schirmer, nas eleições em que lealmente disputamos a Prefeitura de Porto Alegre. O conselho é totalmente coerente com os festejos que a empresa de Marcelo Rech fez, quando anunciou que o acordo Brito-Malan tinha, finalmente, saneado o Estado: memória curta, arrogância máxima!

* Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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