A democracia brasileira foi golpeada à morte; é um cadáver que exala cheiro de morte. A retórica hipócrita das “instituições funcionando normalmente” não passa de simulacro para simular que ainda existe vida democrática e ordem constitucional.
O simulacro serve apenas para distrair a atenção acerca da escalada metódica e incremental do poder militar: estamos no trânsito vertiginoso da mudança de regime, de civil para militar.
Diferente dos atentados perpetrados pelos militares no século 20 contra o poder civil e a democracia, neste golpe os métodos estratégicos e as armas sub-reptícias substituíram canhões, coturnadas, tiros de fuzil e assassinatos em massa.
Em nome da falsa aparência, não fecharam o Congresso, a Procuradoria, o STF. Eles sabiam que bastaria exercer o poder de tutela e emparedar as instituições acovardadas e acanalhadas que a maioria lavajatista dos ministros cumpririam obedientemente as ordens ditadas por twitter pelo general-conspirador Villas Bôas.
Sem comprometer o orçamento extravagante do Exército com mordomias, bacalhau, picanha, cervejada e uísque 12 anos, o regime compra parlamentares às pencas com dinheiro público. É mais eficaz e estratégico que fechar a Casa.
Nossa democracia não morreu de morte natural; ela foi golpeada processualmente e exaurida até à morte como numa eutanásia planejada. A “suavidade” deste atentado homicida dos militares à nossa democracia não diminui, entretanto, a extrema gravidade do crime cometido.
Estamos diante de um crime grave e sabemos a autoria do crime, confessada pelo então Comandante daqueles que o perpetraram.
O general-conspirador Villas Bôas, cuja traição à presidente Dilma equipara seu abjeto papel histórico ao do também general-conspirador e traidor Augusto Pinochet na derrubada do presidente Allende [Chile, 1973], assumiu a responsabilidade pelo atentado à democracia e ao Estado de Direito.
Independentemente do motivo para ele se confessar neste momento, quando ainda se sente o odor de morte do cadáver assassinado, o fato é que estamos diante da confissão de um crime.
Villas Bôas não só se autoincriminou, como incriminou o Alto-comando do Exército Brasileiro, que tomou a decisão institucional de emparedar o STF. Como se percebe, transformaram o Exército numa estrutura político-partidária, o “Partido Militar”, para operar o projeto castrense de poder.
A cadeia de acontecimentos está agora bastante documentada. Agora se conhece o suficiente a respeito da participação das Forças Armadas na derrubada da Dilma, na prisão farsesca do Lula e na eleição do Bolsonaro. Não chegamos aqui por acaso; isso é resultado da intervenção planejada dos militares na política e na tutela das instituições.
E o general-conspirador Villas Bôas, “um dos responsáveis por eu [Bolsonaro] estar aqui”, teve atuação decisiva em todos momentos cruciais da dinâmica conspirativa ocorridos antes do twitter ameaçador de 3 de abril de 2018.
Ainda em 2015, e com Dilma como a presidente constitucional que recém o havia nomeado para o Comando do Exército, ele e outro general-conspirador [Sérgio Etchegoyen] reuniam-se secretamente com Temer para tramar a derrubada dela.
Quando Temer ficou ameaçado de cair no escândalo do empresário da JBS e da mala de dinheiro do assessor especial [2017], Villas Bôas investiu contra o Congresso [também por twitter] para impedir a abertura do processo de impeachment.
O atentado à ordem constitucional [crime de sedição] está tipificado na Constituição, no Código Penal, nas Leis de Segurança Nacional e de crimes contra o Estado e a ordem política e social.
Tivesse sido praticado nos EUA, país muito reverenciado nas academias de formação militar do Brasil, os autores confessos deste crime seriam demitidos, presos e, provavelmente, sujeitos à prisão perpétua ou pena de morte.
É aterradora a reação tíbia e tardia das instituições que “funcionam normalmente”, dos estamentos políticos e das organizações democráticas e populares a esta realidade. Só depois de vários dias um ministro do STF finalmente se manifestou hoje a este respeito. E, de certo modo, foi até bizarro, como se verá adiante. O loquaz presidente do Supremo, contudo, continua em profundo silêncio.
O ministro-sofista Edson Fachin disse que “a declaração de tal intuito, se confirmado, é gravíssima e atenta contra a ordem constitucional. E ao Supremo Tribunal Federal compete a guarda da Constituição”. Ora, qual confirmação é preciso para o STF cumprir a missão de “guarda da Constituição”, se há um autor confesso, que assumiu em nome próprio e do Alto-comando a prática de crime contra a ordem constitucional?
No Congresso, é ainda pior: não se discute abertura de CPI, não existe manifestação institucional, não se escutam discursos, não há convocação dos comandantes; enfim, vida normal.
A omissão – ou a covardia, ou a catatonia, ou tudo isso junto – diante deste crime “gravíssimo, que atenta contra a ordem constitucional”, como disse Fachin, poderá custar ainda mais caro. Na falta de uma reação contundente da sociedade e do poder civil, os conspiradores ficarão mais encorajados a acelerarem a mudança de regime.
Com a tibieza e a covardia da sociedade e do poder civil, o cadáver do pouco que resta de democracia será sepultado, e então a ditadura militar-fascista se imporá com toda crueza, força e poder.
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