terça-feira, 6 de abril de 2021

A troca no comando do Itamaraty

Por Beatriz Bandeira de Mello e João Feres Jr., no site Manchetômetro:

Na última segunda-feira (29/3), Ernesto Araújo foi substituído por Carlos Alberto Franco França no comando do Ministério de Relações Exteriores. Araújo, uma figura próxima da família Bolsonaro e inexperiente na carreira diplomática, deixou o Itamaraty após trajetória vergonhosa à frente do Ministério. Ao longo de dois anos, o ex-ministro colecionou polêmicas, erros e declarações vexatórias que provocaram atritos com alguns dos principais parceiros comerciais e diplomáticos do Brasil, dentre eles a China, conforme já mostrou artigo do Manchetômetro. O aspecto de maior destaque da gestão Araújo, porém, foi a subordinação do Brasil aos Estados Unidos e, principalmente, à figura de Donald Trump, considerado pelo bolsonarismo como grande guia moral e modelo.

A saída de Ernesto, após uma semana de embate direto com o Congresso Nacional, foi percebida pela imprensa brasileira como uma vitória do chamado “centrão” sobre o Poder Executivo e, ainda, como uma crítica à condução das relações exteriores do país. Os meios apontaram que a influência da China também foi um elemento de pressão pela saída do ministro, uma teoria alimentada pela rede de apoiadores do presidente. A troca de Ernesto por Carlos França foi avaliada pelos meios como um “respiro” em meio à distopia bolsonarista. No entanto, a mudança seria de “forma” e não de “conteúdo”, uma vez que o deputado Eduardo Bolsonaro e o assessor Filipe Martins ainda são considerados figuras influentes na condução da política externa. Nesse contexto, França é adjetivado como um personagem “tranquilo”, “educado”, “competente”, “pragmático” e de “perfil executivo”. Há, portanto, alguma expectativa de moderação do discurso – uma profissão de fé renovada toda vez que o presidente e sua cúpula dão sinais de “coerência” em algum âmbito da política.

Entretanto, não seria um exagero dizer que a agenda de Ernesto Araújo correspondeu, na verdade, a uma radicalização de uma série de pontos já defendidos pela mídia brasileira até as eleições de 2018. A série de editoriais dos grandes jornais sobre política externa revela claramente a defesa de uma atuação mais alinhada aos interesses de Estados Unidos, com distanciamento dos países da América do Sul, principalmente das “autocracias bolivarianas”, nas palavras dos próprios meios, como Bolívia, Cuba e Venezuela, e adesão aos valores do Ocidente. Durante o governo de Michel Temer, por exemplo, a escolha de José Serra para o Ministério das Relações Exteriores foi percebida pela Folha de São Paulo como o retorno de uma “diplomacia independente”, “escoimada da distorção antiocidental”, “pragmática”, sem “alinhamento ideológico” e afeita às “tradições do Itamaraty”, embora Serra não soubesse sequer o significado do acrônimo BRICS. A saída de Serra e sua substituição por Aloysio Nunes, ambos do PSDB, não foi motivo de extensa discussão sobre influência política no MRE e sequer cogitada como “ideologização” da política externa, ao contrário das constantes referências a Marco Aurélio Garcia e a Celso Amorim.

Por outro lado, a política externa “ativa e altiva” de Celso Amorim foi questionada e por vezes tratada como ideológica, com viés negativo, pelos meios brasileiros. Reforçando a retórica da equivalência, os jornais repetidas vezes buscaram justificar as ações ineptas de Araújo dizendo que elas seriam tão ou mais ideológicas que as de Celso Amorim quando este foi Ministro de Relações Exteriores do governo Lula da Silva. Sob esta perspectiva, ambos estariam alinhados a premissas político-partidárias, destoantes da realidade, e alheios aos interesses brasileiros no cenário internacional. Ao fazer esta comparação na GloboNews, Miriam Leitão foi corrigida pelo diplomata Roberto Abdenur – ex-embaixador do Brasil na Alemanha durante o governo de Fernando Henrique Cardoso e em Washington com Lula – que considerou a fala da entrevistadora um equívoco. Abdenur foi além ao sinalizar pontos positivos da gestão Amorim no Itamaraty. Dias antes, na mesma GloboNews, a jornalista Julia Dualibi perguntou ao especialista em política externa Maurício Santoro se, sob Araújo, não estaríamos passando por um processo de ideologização da política externa comparável à do período Amorim. Santoro não respondeu.

Esse movimento da imprensa brasileira na busca por distanciamento em relação ao bolsonarismo tem se tornado recorrente. Entretanto, não podemos esquecer que algumas das grandes premissas ideológicas do bolsonarismo trazem em seu DNA a participação e o empenho dos grandes veículos de comunicação brasileiros. Olavo de Carvalho, considerado o “guru” da “ala ideológica” do governo, e Paulo Guedes, foram colunistas de O Globo por anos. O próprio Jair Bolsonaro teve no mesmo jornal espaço para manifestar suas opiniões sobre a agenda de direitos humanos e a homofobia. As ideias manifestadas por esses senhores nas páginas do jornal sempre foram radicais de direita. Ademais, o espaço dado a eles pelo jornal não pode ser atribuído a um suposto pluralismo de opiniões, pois o Globo não publicou textos defendendo o “outro lado”. Assim como em relação à Lava Jato e a tantos outros temas, o tratamento jornalístico dado à política externa ajudou a parir a monstruosidade política que hoje se abate sobre todos nós. Se o Governo Bolsonaro vai mudar sua orientação na política externa agora com o novo ministro, essa é questão menos importante do ponto de vista da democracia brasileira, pois o dano já foi enorme. Resta saber se os meios de comunicação vão mudar seu modus operandi.

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