quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Bandeirantes paulistas mataram Zumbi

Por Cynara Menezes, no blog Socialista Morena:

Em seu afã de continuar a escrever a história sob a ótica dos vencedores, autores de direita têm se notabilizado por divulgar que no Quilombo dos Palmares também havia negros escravizados. Uma “descoberta” que não chega nem a ser novidade: já aparece no clássico O Quilombo dos Palmares, do baiano Edison Carneiro (1912-1972), publicado em 1947 (leia aqui). “Os escravos que, por sua própria indústria e valor, conseguiam chegar aos Palmares, eram considerados livres, mas os escravos raptados ou trazidos à força das vilas vizinhas continuavam escravos. Entretanto, tinham uma oportunidade de alcançar a alforria: bastava-lhes levar, para os mocambos dos Palmares, algum negro cativo”, diz o livro.

Mas qual seria o interesse da direita em desmerecer os quilombos, especialmente Palmares, como sociedades em que os negros podiam ser livres do domínio branco, chefiados por si mesmos e com suas próprias regras e leis? A primeira intenção certamente é fazer a abjeta escravidão de seres humanos negros parecer “menos cruel” e “normal” – afinal, se até nos quilombos havia escravos, não é? Um destes reaças travestidos de historiadores teve a pachorra de afirmar, por incrível que pareça, que existia a possibilidade de ascensão social para os africanos que vinham para cá à força, acorrentados em navios negreiros…

Deseja-se demolir, portanto, o mito fundador da “consciência negra” entre os negros: se o seu principal herói era um “escravocrata”, que sentido teria imaginar uma outra realidade possível, em que o negro estivesse livre dos grilhões impostos pelos brancos? Cairia por terra Palmares e com ele toda a concepção de um Estado negro para onde fugiam todos aqueles que não queriam viver nas senzalas e que alcançou, em seu auge, na segunda metade do século 17, uma população de cerca de 20 mil pessoas. Sem o Quilombo dos Palmares, sem Zumbi, a direita reforça a ideia do negro conformado com sua desgraça, de cabeça baixa, resignado com o “destino” que a história lhe reservou.

Menos óbvio, em minha opinião, é o propósito de tentar livrar a cara dos “heróicos” bandeirantes paulistas na destruição completa de Palmares, o maior dos quilombos e que existiu por quase um século, ameaçando a autoridade das elites açucareiras e da coroa portuguesa. Propagar que também havia escravos nos Palmares funciona como uma espécie de cortina-de-fumaça para o fato de os bandeirantes terem sido responsáveis pelo fim do mais próspero dos quilombos, pouco importa como fosse o seu funcionamento interno. Detalhe: as terras onde se situava Palmares eram consideradas as melhores da então capitania de Pernambuco, e até por isso cobiçadíssimas. E se Palmares tivesse sobrevivido?

A construção do mito do bandeirante como “herói” pela elite paulista passa, sem dúvida, pela destruição do Quilombo dos Palmares. Não à toa, Domingos Jorge Velho, algoz de Zumbi, foi eternizado numa pintura de Benedito Calixto, uma das muitas obras de arte encomendadas pelo governo de São Paulo no início do século 20 para enaltecer os bandeirantes como símbolo da “superioridade paulista”. Sintomaticamente, Velho, que era mameluco, foi pintado à imagem e semelhança dos barões do café, em pose idêntica à dos quadros que retratavam a monarquia europeia: branco, bem-vestido, bem-cuidado, altivo e robusto.

Com uma estratégia digna de qualquer marqueteiro de hoje, implantava-se assim, no inconsciente coletivo, a ideia de que a elite cafeeira era descendente direta dos “valentes” bandeirantes e que o paulista seria, por natureza, mais “batalhador” que os demais brasileiros. Percepção que, pelo que temos visto, permanece viva na memória de boa parte dos habitantes do Estado até hoje.

Alcunhado mais tarde “herói dos Palmares”, o sanguinário Domingos Jorge Velho, atual nome de rua em 12 cidades de São Paulo, foi contratado pelo governador de Pernambuco para esmagar o Quilombo quando estava “aposentado” no Piauí, vivendo nas terras que tomara dos índios, cercado de concubinas. O governador deu plenos direitos ao “coronel”, como foi logo chamado, inclusive o de prender qualquer branco que ajudasse os negros do Quilombo dos Palmares. Se bem sucedidos, o bandeirante e seus homens seriam recompensados com dinheiro e terras, embora os vizinhos de Palmares preferissem os negros aos “bárbaros” paulistas por perto.

O bispo de Pernambuco assim descreveu o “heróico” bandeirante em carta ao rei: “Este homem é um dos maiores selvagens com que tenho topado: quando se avistou comigo trouxe consigo língua (intérprete), porque nem falar sabe, nem se diferencia do mais bárbaro tapuia mais que em dizer que é cristão, e não obstante o haver-se casado de pouco, lhe assistem sete índias concubinas, e daqui se pode inferir como procede no mais”.

O que aconteceu em Palmares foi um banho de sangue e o aprisionamento de mulheres e crianças. “Foram tantos os feridos que o sangue que iam derramando serviu de guia às tropas que os seguiram”, escreveu o governador Caetano de Melo e Castro. Ficara acertado que as presas menores de 12 anos seriam vendidas aos paulistas. Os meninos menores de 12 anos ficariam em Pernambuco. Às negras com crias também foi permitido permanecer na capitania até que os rebentos chegassem à idade de três anos, quando “poderão viver sem o leite de suas mães”. Somente um ano depois da queda dos Palmares, porém, é que Zumbi foi capturado e morto.

Assim conta Edison Carneiro:

“Os moradores do Rio São Francisco (Penedo) conseguiram prender um dos auxiliares imediatos do Zumbi –’um mulato de seu maior valimento’, como dizia o governador Caetano de Melo e Castro.

O prisioneiro estava a caminho do Recife, sob escolta, quando o grupo deu com uma tropa, ‘que acertou ser de paulistas’, comandada pelo capitão André Furtado de Mendonça. Provavelmente os paulistas torturaram o mulato, pois este, ‘temendo… que fosse punido por seus graves crimes’, prometeu que, se lhe garantissem a vida em nome do governador, se obrigava a entregar o ‘traidor’ Zumbi. A oferta foi aceita –e o mulato cumpriu a palavra, guiando a tropa ao mocambo do chefe negro.

O chefe dos Palmares já se tinha desembaraçado da família e se encontrava apenas com 20 negros. Destes, distribuiu 14 pelos postos de emboscada e, com os seis que lhe restavam, correu a esconder-se num sumidouro ‘que artificiosamente havia fabricado’. A passagem, porém, estava tomada pelos paulistas. O Zumbi ‘pelejou valorosa ou desesperadamente, matando um homem, ferindo alguns, e não querendo render-se, nem os companheiros, foi preciso matá-los…’.

Somente um dos homens do Zumbi foi apanhado vivo.

Domingos Jorge Velho, mais tarde, em requerimento a Sua Majestade, dizia, expressamente, que o Zumbi fora liquidado por ‘uma partida de gente’ do seu Terço, que topara com o chefe negro a 20 de novembro de 1695.

A carta do governador, em que contava detalhadamente o episódio, está datada de 14 de março de 1696, mas Caetano de Melo e Castro conhecia a notícia muito antes, pois já recebera dos Palmares a cabeça do Zumbi e a mandara espetar num poste, ‘no lugar mais público desta praça’ (o Recife), para satisfação dos ofendidos e para atemorizar os negros, que consideravam ‘imortal’ o chefe palmarino. O atraso certamente decorreu das dificuldades de navegação: o governador viu-se forçado a mandar a sua carta por um patacho que seguia para a ilha da Madeira, na esperança de que ali houvesse navio que ‘com maior brevidade’ chegasse a Lisboa, pois não queria ‘dilatar’ a nova a Sua Majestade.

A morte do Zumbi teve lugar, como o indicam esses documentos, a 20 de novembro de 1695 – quase dois anos depois de destroçado o reduto do Macaco.”


Diz-se que o negro Zumbi foi morto com 15 ferimentos a bala e mais de 100 golpes de armas brancas. Um de seus olhos teria sido arrancado, assim como a mão direita. O pênis foi cortado e enfiado em sua própria boca. A cabeça foi salgada e levada para o Recife para ser exposta em praça pública. O bandeirante Domingos Jorge Velho morreu em 1705, aos 64 anos, em sua fazenda na Paraíba.

Para mim, parece bem claro quem é o herói desta história. Para a direita, não.

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