sábado, 13 de dezembro de 2014

Democratização da mídia envia lembrança

Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:

Imagine você que na última segunda-feira fui ao tradicional Club Homs, na avenida Paulista, como um dos homenageados na entrega do Premio dos 100 Jornalistas Mais Admirados dos país. Encontrei amigos, revi colegas sumidos. Subi ao palco, agradeci o prêmio e os votos que recebi e fui embora.

Num mundo cada vez mais atomizado, iniciativas desse tipo, realizada pelo site Comunique-se, merecem aplauso. Reforçam o convívio entre as pessoas, ajudam a manter laços esgarçados, reforçam a solidariedade. Lembrando que cientistas políticos sustentam que até corais de vizinhos ajudam a dar raízes ao regimes democrático, pois constroem laços que atravessam uma comunidade inteira, só podemos valorizar eventos dessa natureza.

Mas o evento de segunda-feira ajudou a mostrar uma divisão política clara entre jornalistas, entre os mais prestigiados do país, a respeito de um tema de urgência — a democratização dos meios de comunicação.

Num sinal dos tempos que vivemos, enquanto centenas de presentes estavam à mesa, permutando nostalgias, diversos colegas que também subiram ao palco na condição de “mais admirados,” aproveitaram o microfone para falar de supostas ameaças que perseguem a liberdade de imprensa do país.

Nós conhecemos a matriz desse discurso, que tenta desqualificar um debate necessário, apresentando toda tentativa de mudar uma situação de monopólio - proibido pela Constituição - como um exercício de ginástica bolivariana. Respeitando o direito de todos a manifestar sua opinião, sempre que consideram adequado, sabemos que é um comportamento coerente com a mobilização conservadora que marcou a derrota de Aécio Neves em 26 de outubro, que tem incluído passeatas de protesto e até pedidos de impeachment sob liderança de neo-ativistas, inclusive Lobão.

Mas, mesmo iniciada por seus adversários, a discussão tem absoluta atualidade.

Um dos mais aplicados críticos da mídia brasileira, o jornalista Luciano Martins Costa - também premiado - aproveitou sua coluna no Observatório da Imprensa, no dia seguinte, para fazer a discussão. Disse que os adversários da democratização da mídia “desfiaram seus temores e seu repúdio a uma suposta ameaça à liberdade de imprensa, que estaria pairando sobre o universo midiático. Foi quase uma manifestação de solidariedade ao credo patronal: o Brasil estaria à beira de ver ressuscitar a censura do período militar, agora por conta de um regime ‘bolivariano” em Brasília.” No mesmo tom, outro premiado, Ricardo Kotscho, comentou: “Não encontro nenhuma razão objetiva, nenhum fato novo concreto, qualquer sinal de que a liberdade de imprensa esteja correndo perigo no Brasil.”

Não custa lembrar que este debate só pode ser compreendido a partir de um contexto mais amplo. A discussão sobre riscos - imaginários, em minha opinião - à liberdade de imprensa, tem origem no lugar que os principais grupos de comunicação decidiram ocupar na vida da sociedade brasileira nos últimos anos, em particular depois da posse de Luiz Inácio Lula da Silva no Planalto, em 2003. Como ficou particularmente claro na campanha presidencial, temos hoje uma nítida divisão entre opiniões políticas que se manifesta no apoio ou na oposição às principais políticas de Estado, do Bolsa Família à valorização do salário mínimo, cotas para ingresso na universidade e uma política externa menos dependente dos Estados Unidos.

Eu acho que os jornalistas que se colocam como adversários da democratização dos meios de comunicação, repetem o comportamento das corporações médias que em 2013, usaram a presença de médicos cubanos para combater o programa Mais Médicos - sem dar respostas concretas a população da pobre que não consegue encontrar um doutor para cuidar de suas dores nem quando o Estado se dispõe a pagar R$ 30 000 por mês.

Estamos falando de projetos para o país, de esquerda e direita, ainda que, em função dos vínculos jamais apagados com o regime de 64, a “direita” brasileira prefira não dizer seu nome e até sustentar que essas distinções foram eliminados em algum ponto da história humana posterior à Queda do Muro de Berlim.

Após a quarta vitória do bloco Lula-Dilma em eleições presidenciais, feito raríssimo nas democracias do mundo, parece difícil negar que uma parcela importante da população não se sente representada pelas opções de mídia que estão aí. A maioria de jornais, revistas, emissoras de r[adio e TV, não só estão alinhadas sem pudor no apoio aos adversários, mas são capazes de orientar a cobertura factual para sustentar suas preferências políticas, num tratamento seletivo que é particularmente nocivo para o debate público e a formação dos cidadãos.

Não se trata, é claro, de um debate de interesse exclusivo de jornalistas. Estes são profissionais que, em 99% dos casos, jamais têm o direito de usufruir da liberdade apresentar os fatos à sua maneira, de acordo com sua opinião. Sobrevivem como cidadãos submetidos a uma divisão de trabalho que se tornou ainda mais rígida depois que os meios de comunicação se tornaram parte essencial da polarização política do país.

Não haveria nada de mais na situação atual se ela fosse fruto de uma disputa leal, entre ideias e instituições que tiveram a chance de concorrer entre si e vencer com igualdade de condições. Mas não. Vivemos num país onde impera uma política de comunicação que procura tirar vantagens tanto da herança do regime militar como das noções de uma desregulamentação grosseira, radical como em poucas partes do mundo - para impedir a entrada de novos concorrentes, manter tudo como sempre esteve, e até piorar um pouco.

No plano das garantias do cidadão, o Brasil aboliu o direito de resposta, que era a principal proteção efetiva contra erros e abusos cometidos por jornalistas, e que foi, ironicamente, uma das poucas garantias democráticas previstas pela carta de 1967, do regime militar.

No terreno das emissoras de rádio e TV, que são uma concessão pública, convive-se sem remorso com o entulho deixado pela ditadura - que perseguiu e esfacelou aliados do antigo regime - reforçado pelos movimentos sequenciais de José Sarney para engordar as legendas conservadoras e garantir cinco anos de seu mandato na Assembléia Constituinte.

Em vez de procurar limites a concentração de propriedade, numa mercadoria que pode conduzir ao domínio da informação e da opinião, nada se faz para cumprir uma Constituição que condena o monopólio e o oligopólio em qualquer setor da economia, seja a venda de sabonetes, as redes bancárias e as fábricas de chocolate.

Esta é a discussão de fundo que precisa ser encarada, destravando um debate que foi sufocado em 1988 pelo Centrão que fez maioria na Assembléia Constituinte. Derrotado no debate político, nosso conservadorismo foi vitorioso no atalho regimental: estabeleceu a exigência de que todas as mudanças só entrariam em vigor quando fossem regulamentadas por lei ordinária – e a partir então a bancada de amigos trabalha tem trabalhado com empenho para impedir que isso aconteça, consolidando interesses cada vez mais poderosos para impedir qualquer mudança.

O esforço para encontrar raízes bolivarianas neste debate não resiste a 5 minutos no Google.

Basta ler os projetos originais, de um quarto de século atrás, da deputada Cristina Tavares, daquele honroso PMDB pernambucano ligado as lutas contra a ditadura de onde saiu Eduardo Campos, e do senador Arthur da Távola, da geração tucana que honrava a palavra social-democracia, para compreender o alcance da discussão de hoje. Quem fala em bolivarianismo não sabe o que diz - ou sabe tão bem que procura confundir em vez de esclarecer. Quando a Constituinte encerrou seus trabalhos, de forma positiva em tantos capítulos, , mas melancólica em outros, Hugo Chávez era um simples coronel com ideias de esquerda, que desenvolvia uma militância clandestina nos quartéis da Venezuela.

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