Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Quem procura uma informação de qualidade sobre os efeitos da Reforma da Previdência a longo prazo poderia perder cinco minutos de reflexão examinando uma tragédia ocorrida na Coréia do Sul em tempos recentes.
País com grau de desenvolvimento médio, embora mais avançado do que o Brasil em vários aspectos, na década de 1990 o sistema de aposentadorias que a sociedade coreana construiu ao longo de séculos veio abaixo a partir de uma das reformas estruturais que faziam a glória do chamado Consenso de Washington naquele período.
Não havia e nunca houve, na Coreia do Sul, uma Previdência como aquela que conhecemos.
Era um modelo de proteção da velhice totalmente diferente, mas funcional. Acabou destruído naquele ambiente de triunfo do pensamento único que se tenta construir no Brasil de 2016.
Num país com pouco mais de 50 milhões de habitantes, que paga até hoje pelos sacrifícios impostos pela Guerra Fria, vigorava um pacto de mão dupla entre gerações que se prolongou durante séculos. Ao longo da vida, os pais gastavam todas as suas economias para garantir o futuro dos filhos. Em troca, recebiam apoio na velhice. Quem sustentava esse sistema eram as empresas privadas, que asseguravam a estabilidade no emprego para a grande maioria, senão a totalidade, dos trabalhadores.
Dava certo. Estive em Seul em 1988, e pude conhecer uma sociedade que, apesar das contradições próprias da economia capitalista, era apontada como um exemplo de equilíbrio social.
Um dos estudos que me caiu em mãos permitia uma comparação chocante sobre desigualdade e concentração de renda. Não tenho os números aqui, mas a ordem de grandeza era a seguinte: enquanto os 10% mais ricos do Brasil possuíam uma renda 16 vezes superior aos 10% mais pobres, na Coreia do Sul essa distância limitava-se a seis vezes.
Um dos elementos centrais dessa situação consistia numa legislação que criou os chamados empregos vitalícios.
Este regime de estabilidade --que chegou a existir numa versão incompleta no Brasil antes de 1964, sendo abolido numa das primeiras iniciativas econômicas da ditadura militar -- impedia que a velhice se transformasse numa passagem sem volta para o empobrecimento e o abandono. Os mais jovens tinham emprego e renda para garantir o sustento de pais e avós. A solidariedade familiar fazia o resto.
A situação se modificou nas duas últimas décadas, informa uma reportagem do New York Times. Isso aconteceu “na crise financeira asiática dos anos 1990, quando o emprego vitalício desapareceu. Muitos que perderam seus empregos nunca os recuperaram. Sua queda simboliza o desmoronamento de um contrato social confuciano que regeu os coreanos durante décadas”. (Reproduzido pela edição em português da Folha, 7/11/2015).
A primeira consequência foi o previsível aumento do empobrecimento e da desigualdade, numa sociedade onde os mais velhos representam uma porção cada vez maior da população. Eram 3,8% em 1980, chegam a 13,1% nos dias de hoje. Conforme o NYT, a miséria tornou-se um elemento cotidiano da paisagem social do país: “cerca de 30% das famílias mais antigas têm renda inferior ao nível da pobreza absoluta”.
A outra consequência foi a transformação de muitos homens e mulheres em não-pessoas, condição deprimente da existência que acompanha cidadãos abandonados pela falta de um lugar na vida social. Se, até por razões biológicas, a velhice é uma etapa difícil de ser enfrentada em qualquer país, o caso ainda é mais grave entre os coreanos. Isso porque ali vigora a visão de que os últimos anos são um preparativo para um evento fundamental numa cultura em que os funerais são acontecimentos elegantes, que duram três dias, com centenas de convidados, recorda o NYT. Sem amparo na velhice, “um número crescente de sul-coreanos está morrendo sozinho, sem nenhum parente para fazer um ritual que eles acreditam ser essencial para a passagem para o outro mundo”.
“Na Coréia do Sul, a posição de uma família é medida durante um funeral. Centenas de parentes, amigos e colegas podem aparecer para fazer reverência diante do retrato do falecido. Os convidados se sentam no chão e conversam, enquanto a família oferece comida e bebida. Os convidados geralmente trazem dinheiro para ajudar a família. Mas para os pobres, tal acontecimento está fora de alcance. Alguns não conseguem sequer recuperar o corpo”.
Avaliando os efeitos do empobrecimento, um reverendo que atende as comunidades empobrecidas de Seul disse ao jornal: “os que ficam para trás são cada vez mais solitários. Ao contrário dos pobres de antigamente, eles veem suas comunidades destruídas. Os pobres e os velhos não têm para onde ir”.
Como acontece com modificações dessa natureza, os efeitos mais importantes das mudanças só se tornam visíveis a longo prazo. Duas décadas depois, as mortes solitárias – termômetro definitivo da miséria -- são um dado explosivo na Coreia. Cresceram 56% entre 2011 e 2015.
Viajando de volta para o Brasil. Em 2016, o debate sobre a reforma da Previdência envolve uma mudança nociva e profunda. O ponto essencial do projeto é atacar o caráter redistributivo da Previdência brasileira, que assegura um padrão que pode até ser considerado modesto por muitas pessoas, mas sem dúvida garante uma existência com dignidade para a grande maioria.
Em anos recentes, a valorização do salário mínimo, atrelado a pensão mais baixa, permitiu que velhinhos e velhinhas se tornassem arrimo de família.
Como aconteceu com os velhinhos coreanos, há duas décadas e meia, pretende-se abrir caminho para o mercado e os sistemas privados, acessíveis exclusivamente para as parcelas mais remuneradas da população e que, frequentemente, concluem que foram logradas na hora de receber os benefícios.
São mudanças em que todos perdem. As mulheres perdem mais, contudo, porque se tenta ignorar uma realidade cultural decisiva, que é a dupla jornada de trabalho feminina.
Caso a idade mínima venha a ser aprovada, os jovens também perderão. Como qualquer calouro de economia já sabe, o mercado de trabalho, ainda mais nos tempos atuais, funciona como um cobertor curto. Quem cobre a cabeça, expõe os pés – e vice-versa.
O trabalho tardio dos mais velhos representa um obstáculo para o trabalho dos mais jovens – e nós sabemos, muito bem, as consequências que isso pode ter para garotos e garotos sem meios de sobrevivência e sem perspectivas para seu futuro. Precisamos mencionar quem irá aparecer como salvador de seus destinos?
O ponto de identidade com a tragédia coreana é simples de entender. Numa tentativa de esconder suas desvantagens e prejuizos, tanto lá como aqui fez-se um debate de natureza tecnocrática, sem levar em conta o ponto essencial. Estamos falando de vidas humanas, de pessoas que constroem uma sociedade e são construídas por ela.
Há um elemento especialmente vergonhoso, porém. Basta recordar a apuração de 2014 para perceber que Michel Temer tem uma imensa dívida com aqueles cidadãos colocados sob ataque de seu governo.
Isso porque a chapa Dilma-Temer só conseguiu vencer a eleição de 2014 graças ao apoio decisivo dessa parcela de brasileiros. Quem se recorda do final dramático da apuração, na qual Aécio Neves manteve-se à frente até os últimos minutos, sabe o que aconteceu.
Os votos em comunidades pequenas e distantes, que levam mais tempo para serem apurados e contabilizados, foram os últimos a chegar ao TSE. Desde a abertura das primeiras urnas, a eleição parecia favorável ao PSDB, vitaminado pela operação midiática de ataque a Dilma e Lula ocorrida nos dias anteriores, que chegaram a inspirar uma visível festinha entre comentaristas da Globo News.
Não há dúvida de que o voto dos mais pobres, entre eles os velhinhos e velhinhas que sustentam filhos e netos em pontos onde os institutos de pesquisa não aparecem e as mentiras do mau jornalismo demoram a chegar, tiveram um peso decisivo em 2014.
Graças a esses votos, Michel Temer tornou-se vice e, após uma conspiração que envergonha a todos, conseguiu sentar-se na cadeira de presidente. E é de lá que vem um ataque selvagem a uma parcela que merece respeito e homenagem de todos os brasileiros.
Inaceitável.
Quem procura uma informação de qualidade sobre os efeitos da Reforma da Previdência a longo prazo poderia perder cinco minutos de reflexão examinando uma tragédia ocorrida na Coréia do Sul em tempos recentes.
País com grau de desenvolvimento médio, embora mais avançado do que o Brasil em vários aspectos, na década de 1990 o sistema de aposentadorias que a sociedade coreana construiu ao longo de séculos veio abaixo a partir de uma das reformas estruturais que faziam a glória do chamado Consenso de Washington naquele período.
Não havia e nunca houve, na Coreia do Sul, uma Previdência como aquela que conhecemos.
Era um modelo de proteção da velhice totalmente diferente, mas funcional. Acabou destruído naquele ambiente de triunfo do pensamento único que se tenta construir no Brasil de 2016.
Num país com pouco mais de 50 milhões de habitantes, que paga até hoje pelos sacrifícios impostos pela Guerra Fria, vigorava um pacto de mão dupla entre gerações que se prolongou durante séculos. Ao longo da vida, os pais gastavam todas as suas economias para garantir o futuro dos filhos. Em troca, recebiam apoio na velhice. Quem sustentava esse sistema eram as empresas privadas, que asseguravam a estabilidade no emprego para a grande maioria, senão a totalidade, dos trabalhadores.
Dava certo. Estive em Seul em 1988, e pude conhecer uma sociedade que, apesar das contradições próprias da economia capitalista, era apontada como um exemplo de equilíbrio social.
Um dos estudos que me caiu em mãos permitia uma comparação chocante sobre desigualdade e concentração de renda. Não tenho os números aqui, mas a ordem de grandeza era a seguinte: enquanto os 10% mais ricos do Brasil possuíam uma renda 16 vezes superior aos 10% mais pobres, na Coreia do Sul essa distância limitava-se a seis vezes.
Um dos elementos centrais dessa situação consistia numa legislação que criou os chamados empregos vitalícios.
Este regime de estabilidade --que chegou a existir numa versão incompleta no Brasil antes de 1964, sendo abolido numa das primeiras iniciativas econômicas da ditadura militar -- impedia que a velhice se transformasse numa passagem sem volta para o empobrecimento e o abandono. Os mais jovens tinham emprego e renda para garantir o sustento de pais e avós. A solidariedade familiar fazia o resto.
A situação se modificou nas duas últimas décadas, informa uma reportagem do New York Times. Isso aconteceu “na crise financeira asiática dos anos 1990, quando o emprego vitalício desapareceu. Muitos que perderam seus empregos nunca os recuperaram. Sua queda simboliza o desmoronamento de um contrato social confuciano que regeu os coreanos durante décadas”. (Reproduzido pela edição em português da Folha, 7/11/2015).
A primeira consequência foi o previsível aumento do empobrecimento e da desigualdade, numa sociedade onde os mais velhos representam uma porção cada vez maior da população. Eram 3,8% em 1980, chegam a 13,1% nos dias de hoje. Conforme o NYT, a miséria tornou-se um elemento cotidiano da paisagem social do país: “cerca de 30% das famílias mais antigas têm renda inferior ao nível da pobreza absoluta”.
A outra consequência foi a transformação de muitos homens e mulheres em não-pessoas, condição deprimente da existência que acompanha cidadãos abandonados pela falta de um lugar na vida social. Se, até por razões biológicas, a velhice é uma etapa difícil de ser enfrentada em qualquer país, o caso ainda é mais grave entre os coreanos. Isso porque ali vigora a visão de que os últimos anos são um preparativo para um evento fundamental numa cultura em que os funerais são acontecimentos elegantes, que duram três dias, com centenas de convidados, recorda o NYT. Sem amparo na velhice, “um número crescente de sul-coreanos está morrendo sozinho, sem nenhum parente para fazer um ritual que eles acreditam ser essencial para a passagem para o outro mundo”.
“Na Coréia do Sul, a posição de uma família é medida durante um funeral. Centenas de parentes, amigos e colegas podem aparecer para fazer reverência diante do retrato do falecido. Os convidados se sentam no chão e conversam, enquanto a família oferece comida e bebida. Os convidados geralmente trazem dinheiro para ajudar a família. Mas para os pobres, tal acontecimento está fora de alcance. Alguns não conseguem sequer recuperar o corpo”.
Avaliando os efeitos do empobrecimento, um reverendo que atende as comunidades empobrecidas de Seul disse ao jornal: “os que ficam para trás são cada vez mais solitários. Ao contrário dos pobres de antigamente, eles veem suas comunidades destruídas. Os pobres e os velhos não têm para onde ir”.
Como acontece com modificações dessa natureza, os efeitos mais importantes das mudanças só se tornam visíveis a longo prazo. Duas décadas depois, as mortes solitárias – termômetro definitivo da miséria -- são um dado explosivo na Coreia. Cresceram 56% entre 2011 e 2015.
Viajando de volta para o Brasil. Em 2016, o debate sobre a reforma da Previdência envolve uma mudança nociva e profunda. O ponto essencial do projeto é atacar o caráter redistributivo da Previdência brasileira, que assegura um padrão que pode até ser considerado modesto por muitas pessoas, mas sem dúvida garante uma existência com dignidade para a grande maioria.
Em anos recentes, a valorização do salário mínimo, atrelado a pensão mais baixa, permitiu que velhinhos e velhinhas se tornassem arrimo de família.
Como aconteceu com os velhinhos coreanos, há duas décadas e meia, pretende-se abrir caminho para o mercado e os sistemas privados, acessíveis exclusivamente para as parcelas mais remuneradas da população e que, frequentemente, concluem que foram logradas na hora de receber os benefícios.
São mudanças em que todos perdem. As mulheres perdem mais, contudo, porque se tenta ignorar uma realidade cultural decisiva, que é a dupla jornada de trabalho feminina.
Caso a idade mínima venha a ser aprovada, os jovens também perderão. Como qualquer calouro de economia já sabe, o mercado de trabalho, ainda mais nos tempos atuais, funciona como um cobertor curto. Quem cobre a cabeça, expõe os pés – e vice-versa.
O trabalho tardio dos mais velhos representa um obstáculo para o trabalho dos mais jovens – e nós sabemos, muito bem, as consequências que isso pode ter para garotos e garotos sem meios de sobrevivência e sem perspectivas para seu futuro. Precisamos mencionar quem irá aparecer como salvador de seus destinos?
O ponto de identidade com a tragédia coreana é simples de entender. Numa tentativa de esconder suas desvantagens e prejuizos, tanto lá como aqui fez-se um debate de natureza tecnocrática, sem levar em conta o ponto essencial. Estamos falando de vidas humanas, de pessoas que constroem uma sociedade e são construídas por ela.
Há um elemento especialmente vergonhoso, porém. Basta recordar a apuração de 2014 para perceber que Michel Temer tem uma imensa dívida com aqueles cidadãos colocados sob ataque de seu governo.
Isso porque a chapa Dilma-Temer só conseguiu vencer a eleição de 2014 graças ao apoio decisivo dessa parcela de brasileiros. Quem se recorda do final dramático da apuração, na qual Aécio Neves manteve-se à frente até os últimos minutos, sabe o que aconteceu.
Os votos em comunidades pequenas e distantes, que levam mais tempo para serem apurados e contabilizados, foram os últimos a chegar ao TSE. Desde a abertura das primeiras urnas, a eleição parecia favorável ao PSDB, vitaminado pela operação midiática de ataque a Dilma e Lula ocorrida nos dias anteriores, que chegaram a inspirar uma visível festinha entre comentaristas da Globo News.
Não há dúvida de que o voto dos mais pobres, entre eles os velhinhos e velhinhas que sustentam filhos e netos em pontos onde os institutos de pesquisa não aparecem e as mentiras do mau jornalismo demoram a chegar, tiveram um peso decisivo em 2014.
Graças a esses votos, Michel Temer tornou-se vice e, após uma conspiração que envergonha a todos, conseguiu sentar-se na cadeira de presidente. E é de lá que vem um ataque selvagem a uma parcela que merece respeito e homenagem de todos os brasileiros.
Inaceitável.
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