Por João Paulo Cunha, no jornal Brasil de Fato:
Vivemos tão mergulhados no dia a dia, tão tomados pelas urgências da conjuntura, presos aos problemas mais próximos que esquecemos que os momentos de invenção são imprescindíveis. E, na verdade, há poucos lugares e oportunidades para exercer a função de reinventar o mundo. A universidade, de certa maneira, seria o lugar próprio para esse exercício.
O recente ataque à universidade pública brasileira, com espetáculos midiáticos de condenação pelo constrangimento de reitores, professores e funcionários de instituições do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Minas Gerais, entre outras, é por isso uma situação de extremo perigo. Ao lado dos abusos judiciais, já em si graves, evidenciam um desprezo por valores de civilização que brotam e são defendidos pela universidade pública. É uma espécie de tábula rasa da civilização, de um nivelamento pelo moralismo punitivista.
Quem condena o saber, mesmo por meio de pretextos legalistas não explicitados, na verdade aposta na continuidade, no conservadorismo, na impotência da energia de renovação tão necessária numa sociedade marcada pela injustiça. Fazer calar o pensamento crítico e, no caso da operação na UFMG, tentar silenciar a memória das cicatrizes da ditadura, é uma ação reacionária e, no limite, fascista.
Intelectuais públicos
No entanto, pressionada pelas contingências de toda ordem, das carências materiais à cobrança produtivista, a academia se distanciou do mundo real. O que gerou uma crítica, não de todo injusta, de certo afastamento dos problemas mais aquecidos pela urgência e pela proximidade com o cidadão comum.
É nessa encruzilhada que alguns professores e pesquisadores passam a ocupar o lugar necessário do intelectual público. Aquele que reúne a sensibilidade que recolhe o melhor da construção do conhecimento para oferecê-lo como reflexão para as pessoas comuns. Uma boa universidade se faz de erudição e porosidade. Uma boa universidade precisa ser uma universidade boa.
Os intelectuais públicos honram uma tradição que entende o compromisso duplo do saber com o mundo: buscar na vida o sentido do conhecimento; produzir saber para aprimorar o mundo e diminuir as injustiças. São ainda pessoas que carregam a coragem de ir contra a corrente e de estabelecer vínculos com outras jornadas emancipatórias. São gente rara, mas necessária.
São pessoas que merecem reconhecimento e agradecimento do país. Que precisam frequentar os meios de informação como exemplo de cidadãos produtivos, inventivos, democráticos e defensores dos melhores valores da República. Como a professora do Departamento de História da UFMG, Heloísa Starling.
Autora de importante obra em sua especialidade, foi pioneira em desvelar a estratégia classista que arquitetou o golpe militar, com seus elementos de poder real dados pela força e sua eficácia cultural, urdida pela estratégia simbólica. Depois das revelações cuidadosas e argutas de Os senhores das Gerais, os conspiradores da primeira e da undécima hora não dispuseram mais do álibi dos valores classistas que julgavam protegê-los da violência que patrocinaram.
Heloísa, em seu livro de estreia, deixa já entrever a sensibilidade para a cultura popular, sobretudo para a força da canção. Essa inspiração estética se amplia em seu trabalho sobre o romance Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Partindo da ficção encantada, a autora realiza a intuição do personagem Selorico Mendes: “Tudo é política, e potentes chefias”.
Mais que uma leitura poética da saga rosiana, Lembrança do Brasil é um trabalho que articula teoria e política, ficção e história, como se fosse possível reconstruir as origens do saber pelos caminhos da invenção. Os clássicos da teoria política precisam falar a língua do Gerais, e ocupam, estrategicamente, as notas eruditas que liberam o texto para a fala originária dos sertanejos. Tudo que não é poesia é política demais.
Nossa amiga (não há qualificação mais justa para republicanos que se doam aos valores do bem comum com as armas de sua inteligência) seguiu percorrendo outros caminhos igualmente tocados pela poesia e pela ciência. Ajudou a criar e dar vida ao Projeto República e convidou pares de todos os campos – da ciência política à filosofia – para ouvir com atenção a contemporaneidade entre o surgimento da música popular e da República entre nós.
Saiu em busca de poetas e artistas populares e encontrou o sentimento de República nos movimentos populares, sobretudo no Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Rompeu os muros da academia, organizou cantorias, trouxe a poesia para o palco da educação. Chegou a inventar um caminhão, que viaja distribuindo e recolhendo conhecimento pelo país.
Recentemente, em parceria com Lilia Moritz Schwarcz, produziu uma história do Brasil em forma de biografia, que destaca o papel da resistência popular, quase sempre secundária na narrativa oficial. Na conclusão, afirma-se uma crença nos valores democráticos conquistados depois de tanta luta. O que viria em seguida mostrou a importância de não perder jamais o estado de atenção.
Nosso maior otimismo segue sendo a esperança ativa. Equilibrista, mas esperança.
Vivemos tão mergulhados no dia a dia, tão tomados pelas urgências da conjuntura, presos aos problemas mais próximos que esquecemos que os momentos de invenção são imprescindíveis. E, na verdade, há poucos lugares e oportunidades para exercer a função de reinventar o mundo. A universidade, de certa maneira, seria o lugar próprio para esse exercício.
O recente ataque à universidade pública brasileira, com espetáculos midiáticos de condenação pelo constrangimento de reitores, professores e funcionários de instituições do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Minas Gerais, entre outras, é por isso uma situação de extremo perigo. Ao lado dos abusos judiciais, já em si graves, evidenciam um desprezo por valores de civilização que brotam e são defendidos pela universidade pública. É uma espécie de tábula rasa da civilização, de um nivelamento pelo moralismo punitivista.
Quem condena o saber, mesmo por meio de pretextos legalistas não explicitados, na verdade aposta na continuidade, no conservadorismo, na impotência da energia de renovação tão necessária numa sociedade marcada pela injustiça. Fazer calar o pensamento crítico e, no caso da operação na UFMG, tentar silenciar a memória das cicatrizes da ditadura, é uma ação reacionária e, no limite, fascista.
Intelectuais públicos
No entanto, pressionada pelas contingências de toda ordem, das carências materiais à cobrança produtivista, a academia se distanciou do mundo real. O que gerou uma crítica, não de todo injusta, de certo afastamento dos problemas mais aquecidos pela urgência e pela proximidade com o cidadão comum.
É nessa encruzilhada que alguns professores e pesquisadores passam a ocupar o lugar necessário do intelectual público. Aquele que reúne a sensibilidade que recolhe o melhor da construção do conhecimento para oferecê-lo como reflexão para as pessoas comuns. Uma boa universidade se faz de erudição e porosidade. Uma boa universidade precisa ser uma universidade boa.
Os intelectuais públicos honram uma tradição que entende o compromisso duplo do saber com o mundo: buscar na vida o sentido do conhecimento; produzir saber para aprimorar o mundo e diminuir as injustiças. São ainda pessoas que carregam a coragem de ir contra a corrente e de estabelecer vínculos com outras jornadas emancipatórias. São gente rara, mas necessária.
São pessoas que merecem reconhecimento e agradecimento do país. Que precisam frequentar os meios de informação como exemplo de cidadãos produtivos, inventivos, democráticos e defensores dos melhores valores da República. Como a professora do Departamento de História da UFMG, Heloísa Starling.
Autora de importante obra em sua especialidade, foi pioneira em desvelar a estratégia classista que arquitetou o golpe militar, com seus elementos de poder real dados pela força e sua eficácia cultural, urdida pela estratégia simbólica. Depois das revelações cuidadosas e argutas de Os senhores das Gerais, os conspiradores da primeira e da undécima hora não dispuseram mais do álibi dos valores classistas que julgavam protegê-los da violência que patrocinaram.
Heloísa, em seu livro de estreia, deixa já entrever a sensibilidade para a cultura popular, sobretudo para a força da canção. Essa inspiração estética se amplia em seu trabalho sobre o romance Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Partindo da ficção encantada, a autora realiza a intuição do personagem Selorico Mendes: “Tudo é política, e potentes chefias”.
Mais que uma leitura poética da saga rosiana, Lembrança do Brasil é um trabalho que articula teoria e política, ficção e história, como se fosse possível reconstruir as origens do saber pelos caminhos da invenção. Os clássicos da teoria política precisam falar a língua do Gerais, e ocupam, estrategicamente, as notas eruditas que liberam o texto para a fala originária dos sertanejos. Tudo que não é poesia é política demais.
Nossa amiga (não há qualificação mais justa para republicanos que se doam aos valores do bem comum com as armas de sua inteligência) seguiu percorrendo outros caminhos igualmente tocados pela poesia e pela ciência. Ajudou a criar e dar vida ao Projeto República e convidou pares de todos os campos – da ciência política à filosofia – para ouvir com atenção a contemporaneidade entre o surgimento da música popular e da República entre nós.
Saiu em busca de poetas e artistas populares e encontrou o sentimento de República nos movimentos populares, sobretudo no Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Rompeu os muros da academia, organizou cantorias, trouxe a poesia para o palco da educação. Chegou a inventar um caminhão, que viaja distribuindo e recolhendo conhecimento pelo país.
Recentemente, em parceria com Lilia Moritz Schwarcz, produziu uma história do Brasil em forma de biografia, que destaca o papel da resistência popular, quase sempre secundária na narrativa oficial. Na conclusão, afirma-se uma crença nos valores democráticos conquistados depois de tanta luta. O que viria em seguida mostrou a importância de não perder jamais o estado de atenção.
Nosso maior otimismo segue sendo a esperança ativa. Equilibrista, mas esperança.
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