quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Bolsonaro afina com Boeing e entrega Embraer

Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:

Em sua primeira semana no Planalto, Jair Bolsonaro comentou sobre a venda da Embraer à Boeing, tratativa que irá desfalcar o país da última empresa brasileira presente no mercado mundial de tecnologias. Mesmo empregando o termo "fusão", inadequado para um acordo que implicará na compra de uma parte pela outra, o presidente deixou escapar uma crítica à transação.

"Seria muito boa essa fusão, mas é uma preocupação nossa daqui cinco anos tudo ser repassado para o outro lado. É um patrimônio nosso", disse Bolsonaro.

Embora o estatuto da Embraer garantisse à União o direito - e até o dever - de impedir a venda da empresa, pelo uso da "ação ordinária de classe especial", mais conhecida como golden share, em de cuidar do "patrimônio nosso" Bolsonaro fez silêncio no dia de ontem, quando a venda se consumou. Essa postura só beneficiou a Boeing, que ganhou acesso a um mercado no qual a empresa brasileira é líder -- o dos jatos regionais, o filé mignon da indústria neste momento.

Após uma assembleia de acionistas que votou a favor da transação, o gigante norte-americano consumou um negócio que ainda poderá ser questionado, com base em ações populares e outros recursos de grande legitimidade, mas com trâmite mais difícil na Justiça. Não custa lembrar que estão em jogo interesses de uma das maiores empresas dos Estados Unidos, que ganharam novo fôlego com o silêncio obsequioso do governo brasileiro.

A base jurídica para o veto é fácil de reconhecer. O Estatuto da Embraer define no artigo 9o. as situações nas quais cabe a União usar esse poder. Entre sete possibilidades, três dizem respeito aos programas militares que sempre estiveram ligado a história da empresa.

Um artigo diz que o veto é possível no caso de "criação e alteração" desses programas, na hipótese de "capacitação de terceiros em tecnologia para programas militares" e ainda "interrupção para o fornecimento de peças de manutenção e reposição de aeronaves militares que envolvam ou não a República Federativa do Brasil". A cláusula de número VI trata da "transferência de controle acionário da companhia." Segundo advogados, foi para não contrariar essa cláusula de modo escancarado que se criou uma ficção -- de que a Embraer estava se "fundindo" com a Boeing, e não sendo comprada por ela.

Nos últimos meses, o juiz Vitório Giuzio Neto, da 24a Vara Cível de São Paulo, acatou quatro liminares que determinavam a suspensão das negociações entre a Embraer e a Boeing, o que já recomendaria uma visão prudente e demorada sobre a negociação.

"O que se montou foi uma fraude, para escapar do poder de veto da golden share", afirma o advogado Rodrigo Salgado, que atuou contra o acordo em ações movidas pelos sindicatos de trabalhadores, preocupados com a perda de empregos. Para o advogado, "a questão era permitir a Boeing só comprar a parte da Embraer em que estava interessada."

Numa visão que tem relação com o ambiente político geral do país, Rodrigo diz que "muitas partes interessadas no negócio estavam com medo de serem taxadas de entreguistas".

O estatuto da nova empresa possui um artigo emblemático. Ela será comandada por uma Conselho Administrativo com 5 integrantes. Com 80% de participação, a Boeing terá quatro executivos, com direitos plenos de voz e voto. A Embraer terá um diretor. Sem direito a voto.

Em sentença do final do ano passado,Vitório Giuzio Neto registra várias inconsistências na transação. Chega a usar ironia para falar dos argumentos de advogados que, em nome da empresa brasileira, trabalharam na confecção do acordo: "Confessa o juízo sua perplexidade diante da afirmação da Embraer, através de sua qualificadíssima banca de advogados, de que, mesmo ocupando a posição de terceira maior exportadora do país, se encontra a caminho da falência."

Vitório Giuzio Neto fez questão de registrar que o "acordo envolve a venda da parte comercial da Embraer (a mais lucrativa)", afirmação que possui muita relevância aqui. Desfalcada da aviação comercial, que responde por 40% do faturamento da empresa, a área que cuida da aviação será forçada a fechar as portas. "Daqui a três anos tudo estará acabado e nada mais restará no Brasil", afirma o professor Gilberto Bercovici, titular da cadeira de Direito Econômico da Universidade de São Paulo e uma das grandes referências no assunto.

Para o advogado Rodrigo Salgado, a decisão de vetar ou não uma transação não pode ser vista como uma decisão de livre escolha da autoridade, mas envolve uma obrigação legal. "O funcionário público não tem esse poder discricionário. Deve cumprir o que manda o estatuto." Por esse raciocínio, aplica-se aqui o artigo 319 do Código Penal, que define o crime de prevaricação: "deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal".

Produto da mobilização de lideranças da Aeronáutica, a Embraer nasceu como parte do esforço de desenvolvimento industrial do Estado brasileiro país que teve início na década de 1950 e avançou pelas décadas seguintes, inclusive pelo regime militar. Sua última aeronave de sucesso, o cargueiro KC 390, foi iniciado a partir uma injeção de R$ 800 milhões de reais autorizada pelo Congresso durante o governo Lula. A Embraer deixou de ser estatal na década de 90, quando foi vendida por moedas podres num dos leilões do governo Fernando Henrique.

Bolsonaro produziu assim uma lição notável. Capaz de agredir a memória dos brasileiros com elogios nostálgicos ao regime militar, ao ser colocado diante de um gigante do império norte-americano ficou calado quando tinha a obrigação de reagir em defesa do "patrimônio nosso".

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