quarta-feira, 26 de junho de 2019

Golpe atual "visa a jugular da soberania"

Por Vitor Nuzzi, na Rede Brasil Atual:

Miguel Nicolelis passou a maior parte de sua vida, 31 de 58 anos, fora do país, mas conta que só se sente realmente em casa no Brasil. Como nos últimos dias, antes de voltar aos Estados Unidos. Só que, recentemente, andar por aqui causa uma sensação de dubiedade. “É muito difícil voltar pra cá, por tudo o que eu imaginava, e ver como essa utopia vem sendo desmontada muito rapidamente”, diz o neurocientista, que participou ontem (25) à noite de debate no Centro de Estudos de Mídia Alternativa Barão de Itararé, na região central de São Paulo. Para ele, o momento é muito pior do que 1964, quando ainda havia projetos de país. “Esse golpe visa a jugular da soberania do Brasil”, afirma, ao lado da presidenta da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG), Flávia Calé.

Não é uma situação da qual se sai com facilidade, observa Nicolelis: “A reversão desse processo não acontece na mesma velocidade da demolição. Ela leva décadas”. Se acontecer, ele emenda. “No momento em que você abraça o obscurantismo e se distancia do pensamento crítico, a volta, se é possível, é extremamente longa e traumática.”

Por isso, ele também considera “natural” o fato de a ciência e a educação serem os “alvos primordiais” de um projeto de destruição da soberania. “É assim que se puxa o tapete de um país emergente”, diz. Um país que não chegou a se tornou nação. “Se fôssemos uma nação de verdade, não permitiríamos que nossos filhos e netos, e os que ainda não nascer, fossem alijados de tudo.”

Mas o cientista manifesta esperança ao ver jovens na “vanguarda” de um momento de resistência. “Ainda existe um gérmen de pensamento nacional, ainda que seja uma reação reflexa à hecatombe.” Segundo ele, nem regimes autoritários tiveram “a cara de pau de destruir a academia”.

Para o cientista, não é uma situação interna, mas global, detonada a partir do momento em que o Brasil “esticou a corda” e passou a “incomodar” a geopolítica mundial, com descobertas como a do pré-sal e iniciativas como a do Brics. “O surpreendente foi a maneira como aconteceu. Isso mostra uma fragilidade institucional, uma deficiência assustadora dos mecanismos de equilíbrio e defesa. Não é um fenômeno local. É uma questão geopolítica clara. E só vai ser entendida sob a ótica da geopolítica. Franklin Delano Roosevelt gostava de dizer que toda política é local. Não é mais. Toda política é global.”

Renascença

Ele acredita que o Brasil viveu um curto período de “renascença” entre 2003 e 2014 (governos Lula e Dilma), de incentivo e inclusão, citando programas como o Ciências sem Fronteiras. “As universidades norte-americanas começaram a abrir escritórios em São Paulo. Encontrei moleques do Acre fazendo astrofísica na Harvard.” E lamenta que tenha durado tão pouco, lembrando que essa era levou aproximadamente 100 anos na Grécia e 200 na Itália. “A nosa levou 12”, compara. “Na história da República brasileira, não acredito que tivemos um período tão frutífero.”

No mundo do século 21, acrescenta, o país terá chance “se abandonar a próxima geração de cientistas brasileiros ao deus-dará”. Não apenas quem já está no sistema, mas os que ainda poderão vir e talvez desistam, optando, por exemplo, pelo mercado financeiro, ao remover do nosso ethos o sonho de se tornar cientista. “Espero que a gente se dê conta do que estamos fazendo hoje na vida de brasileiros que ainda nem nasceram.”

Eleita em 2018 para a presidência da ANPG, a carioca Flávia Calé acredita que o Brasil vive uma nova tentativa de colonização, com um processo de perseguição aos instrumentos de soberania e tentativa de desmoralização das universidades. “Luiz Carlos Cancellier foi a primeira vítima desse projeto criminoso”, afirma, citando o ex-reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, que se suicidou em 2017 após ser acusado de integrar um esquema criminoso e ter sido proibido de entrar na instituição. O processo foi concluído sem provas contra ele.

Segundo ela, a Federal de Minas Gerais já sofreu investigação relacionada a um projeto de memória política e a do Rio de Janeiro é “constantemente monitorada” pelo Ministério Público e outros órgãos de controle. Há também outra questão que Flávia considera preocupante, citando pesquisa divulgada na semana passada pela revista Science. Em relação ao Brasil, 75% dos entrevistados disseram que “quando ciência e religião discordam, escolho a religião”.

Aeroporto ou subemprego

“O caráter obscurantista e anti-intelectual do governo Bolsonaro tem forte lastro na sociedade brasileira”, comenta a presidenta da ANPG, para quem o país vive uma “cruzada ideológica”. Por isso, aponta, “é cada vez mais estratégico vincular ciência e educação”. Hoje, restam poucas alternativas aos pós-graduandos. Não há um movimento de desistência, mas queda significativa da procura. “O sinal que o Brasil dá é que a ciência não vale a pena. O caminho é o aeroporto ou o subemprego.”

Um dos presentes ao debate chama a atenção para o orçamento federal na área de ciência e tecnologia, “o menor em 20 anos”, que com o contingenciamento não chega a R$ 3 bilhões. Nicolelis acrescenta: o orçamento para o mesmo setor nos Estados Unidos é de US$ 133 bilhões. Na China, ainda mais, US$ 141 bilhões.

O neurocientista cita com orgulho projeto desenvolvido em Macaíba, cidade da região metropolitana de Natal, um polo de ensino denominado Campus do Cérebro, que incluiu escolas de educação científica e um centro de saúde na periferia – uma terceira escola surgiu em Serrinha, na Bahia. “Mostramos às pessoas no entorno do nosso campus o que a ciência é capaz de fazer”, afirma. O governo Temer fechou as escolas no final de 2017. O centro mantém-se funcionando. O projeto foi objeto de um dos livros do também professor, Made in Macaíba, lançado em 2016.

Certificado de brasileiro

Nicolelis faz também uma crítica aos próprios cientistas, que segundo ele “têm uma aversão atávica de falar com a população”, em qualquer lugar do mundo. O projeto desenvolvido no Rio Grande do Norte, observa, permitiu mostrar que é possível fazer ciência em que parte do Brasil. “E ela tem que ter uma função agregadora da sociedade”, afirma. “Eu virei brasileiro indo embora, voltando e despencando no interior do Rio Grande do Norte.” Usando a imagem da flor de cáctus, o cientista diz inúmeros floresceram durante o período de “renascença” científica. “Acho que foi isso que me deu certificado de brasileiro.”

Ao mesmo tempo, ele acredita que os Estados nacionais morreram. Nicolelis cita o conceito de global village, aldeia global, criado pelo pensador canadense Marshal McLuhan. “O efeito foi o oposto. Foi a tribalização da raça humana. A humanidade se fragmentou em microtribos”, diz. Cada qual com interesses próprios, ignorando “uma estrutura macroscópica chamada país”. “Ninguém consegue reagrupar as tribos em plataformas comuns. A fragmentação da nossa espécie é tão brutal que ninguém percebe que estamos criando as condições para o extermínio da nossa própria espécie.”

Ele dá um exemplo que tem passado longe do radar do noticiário e do conhecimento das pessoas no dia a dia, mas que tem relevância do ponto de vista da preservação da vida. “Nunca na história da humanidade tantos insetos morreram simultaneamente”, afirma Nicolelis, citando a dizimação de abelhas devido ao uso de agrotóxicos e já apontando a consequência: “Sem polinização não tem comida”. A única solução para garantir a sobrevivência, acredita, seria uma governança global.

Durante as mais de duas horas de debate, Flávia teve de se ausentar algumas vezes para cuidar da pequena Aurora, com poucos meses de vida. E Nicolelis também falou sobre o Projeto Andar de Novo, que ganhou visibilidade a partir do chute inicial da Copa do Mundo de Futebol de 2014, no Brasil, dado por um para-atleta, Juliano Pinto, vestindo um exoesqueleto, um projeto teve repercussão global e terá a memória preservada. “Todos os nomes, todas as conversas estão documentadas e vão virar livro e documentário”, conta.

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