sexta-feira, 28 de junho de 2019

Os desafios da mídia alternativa

Por Eleonora de Lucena e Rodolfo Lucena, no site Tutaméia:

A imprensa brasileira tem se comportado lamentavelmente, com algumas exceções. Os quatro ou cinco principais veículos desempenham um papel de ‘think tank’ das classes conservadoras. Há um jornalismo de subserviência, unilateral.

A análise é do jornalista e escritor Bernardo Kucinski em entrevista ao Tutaméia (acompanhe no vídeo). Professor de jornalismo, ele avalia que a imprensa deveria ser “mais crítica e independente” em relação ao governo Bolsonaro.

De outro lado, opina que a mídia progressista deveria ser “menos panfletária, mais substantiva e analítica”. “Fazem campanha o tempo todo. Sinto falta de um jornalismo analítico na imprensa alternativa, com análises realistas e com mais profundidade. Há falta de meios”, diz.

Para ele, o campo popular é culpado porque nunca investiu bastante em ter esses meios. “O PT nunca teve um jornal importante. Fica culpando a imprensa burguesa em desempenhar o papel que ela se propõe, em vez de desenvolver meios de comunicação numa dimensão comparável [à da mídia corporativa].
Kucinski atribui essa lacuna na esquerda à cultura sectária do campo popular no Brasil. Fala das várias tendências do PT que disputam espaço entre si. “O esforço de comunicação é dirigido para dentro, não para fora, para o conjunto da sociedade”, afirma.

Jornal clandestino amarrado nos postes

Aos 82 anos, ele lembra de outros tempos na mídia de esquerda no país. Conta que, quando era jovem aluno da escola técnica, caminhava do Brás até a rua Piratininga, passando por várias fábricas. “Via o jornal do Partidão amarrado aos postes”. Numa época em que o PCB era clandestino e estava sendo perseguido.

“A gente culpa a grande imprensa por fazer o papel que eles estão fazendo direitinho, enquanto se tinha que ter uma imprensa alternativa do campo popular, representativa de forças sociais amplas. As empresas ditam a pauta por falha do campo popular. Até as igrejas evangélicas têm jornal”, declara.
Na Lava Jato e desde o começo do processo de impeachment de Dilma, a imprensa foi coadjuvante, observa Kucinski.
“Como as classes conservadoras no Brasil são intelectualmente muito débeis –é um pequeno grupo de famílias que vivem da agro-exportação e de algumas indústrias de serviços–, eles não têm propriamente uma ideologia. Quem acabou exercendo esse papel é a grande imprensa. São os jornais que dizem a eles o que fazer. Por exemplo, na reforma da Previdência, é evidente que a cobrança por uma reforma veio da grande imprensa, não veio do Bolsonaro. Ele nem tinha isso no programa de governo e dizem até que ele reluta um pouco. A Globo, a Folha e o Estadão ficam cobrando o tempo todo: ‘Tem que ter’. Há tempos que a grande imprensa desempenha esse papel de intelectual orgânico da burguesia brasileira. Isso limita muito o papel que o jornalismo deveria ter: de ser crítico do poder”.
Na sua visão, o jornalismo tem dois papeis fundamentais: ser crítico do poder e ser defensor dos direitos humanos. “Esses dois papeis só a imprensa pode fazer com desenvoltura. E fracassam nesse papel. É muito triste. O que me deixa mais triste nessa situação toda não é o povão votar no Bolsonaro, mas ver jornalistas inteligentes entrarem nesse jogo”.

Ficção dolorosamente realista

Tutaméia entrevista Kucinski a propósito de seu novo livro “A Nova Ordem” (Editora Alameda), que ele qualifica como uma “ficção dolorosamente realista”. Condenando as bases ideológicas do neoliberalismo, ele constrói um enredo de uma distopia – um mundo em que generais e poderosos estão ocupados em destruir a ciência, a civilização, o país, os mais pobres e vulneráveis.

No livro há duas narrativas: a da ficção e a das notas de rodapé. “As notas de rodapé refletem o que está acontecendo no Brasil. Fiquei espantado. Porque eu imaginava que a ‘nova ordem’ elimina sindicatos, o Ministério do Trabalho e, quando eu vou ver, no dia seguinte, eles fazem isso mesmo. Isso me espantou. Fiquei com medo de prosseguir na novela. Alguém estava lendo lá de ia assoprando para o presidente. Fiquei espantado. Espantado com a quantidade de políticas públicas e de ações públicas que o Estado brasileiro possui e que estão sendo desmanteladas. É um estrago gigantesco que está sendo feito por esse governo. Ele tem uma agenda muito clara: privatização de tudo e diminuição do valor do trabalho. Bolsonaro derrotou a ficção brasileira. Nenhum escritor conseguiria inventar uma situação dessas. Nem o Gabriel García Márquez”.

Fim dos filmes Kodak, decepção e tristeza

Professor de jornalismo, correspondente internacional, Kucinski conheceu de perto a imprensa alternativa de combate à ditadura militar. Nesta entrevista, ele traça paralelos com aqueles tempos e analisa a situação da mídia como um todo.
Fala das transformações enormes decorrentes do avanço do mundo digital nas comunicações: “Mexeu com os fundamentos do jornalismo. Destruiu o conceito da notícia como mercadoria. O jornalista perde o monopólio da mediação”.
Para ele, os jornais impressos vão desaparecer, como acabaram os filmes da Kodak – de um dia para outro. “É uma revolução que nunca houve nessa dimensão”.

Foi nessa esteira dessas mudanças, que o professor deixou o jornalismo e resolveu trilhar a ficção. Conta que num curso sobre jornalismo e saúde, por exemplo, viu as mudanças no ambiente da profissão.
“Os alunos não estavam interessados naquilo que eu queria ensinar. A minha visão é de um jornalismo muito comprometido com o combate à injustiça, à desigualdade. A cabeça dos jovens está muito voltada para como devem aparecer na telinha. Há muito do fascínio para aparecer na telinha, para ser famoso. É uma mudança muito profunda, e eu vi que não servia mais para nada nesse ambiente novo. Virei ficcionista por causa disso”.

“Do jornalismo brasileiro eu não espero nada. Só espero decepções e tristeza”, diz.

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