Foto: Atta Kenare/AFP |
Os EUA praticam terrorismo de Estado há muito tempo.
Fazem o que querem, muitas vezes à margem do sistema de segurança coletiva da ONU, sempre que consideram necessário ou desejável.
Deflagram guerras, derrubam governos, torturam e assassinam em nome da “democracia”, dos “direitos humanos”, do “combate ao terrorismo” e da suposta necessidade de “salvar vidas americanas”, as únicas que importam.
Estudo da Universidade de Brown estima, de forma bastante conservadora, que, em apenas três países, Iraque, Afeganistão e Paquistão, as guerras e conflitos promovidos pelos EUA mataram diretamente ao menos 480 mil pessoas, desde 2002.
Obviamente, o estudo não computa as mortes indiretas causadas por fome, doenças, deslocamentos forçados, etc. Nesse caso, os mortos, a maioria civis, estariam na casa dos milhões.
O estudo também não computa outros conflitos como os ocorridos na Líbia e na Síria, por exemplo. Apenas nesse último país, já teriam sido diretamente mortos pela violência do conflito, estimulado pelos EUA, que apoiou o Estado Islâmico contra o regime Assad, cerca de 380 mil pessoas.
Na estratégia militar desse terrorismo de Estado, a ação dos drones joga papel central. Segundo o Ministério de Relações Exteriores do Paquistão, entre 2004 e 2013, cerca de 2.200 pessoas foram mortas pelos drones dos EUA naquele país.
Ao menos 35% desse total foram compostos por civis inocentes. Os drones são precisos e permitem abater alvos sem qualquer probabilidade de morte de norte-americanos.
Atacam furtivamente sem nenhum aviso e de forma letal. São uma arma de puro terror, que os EUA usam à larga há bastante tempo.
O assassinato de Soleimani não é, portanto, algo inédito. Inédita é a importância do alvo e a audácia da decisão. Mas há razões para isso.
Para se entender a ação, é necessário compreender a relevância de Soleimani no jogo de xadrez estratégico do Oriente Médio.
Soleimani, herói da guerra Irã/Iraque, dirigia a Quds ou Al-Quds (Jerusalém em farsi e em árabe).
Trata-se de uma espécie de forças especiais da Guarda Revolucionária iraniana, especializadas em ações no exterior.
Foi Soleimani que ajudou a conceber a vitoriosa estratégia do Hezbollah no Líbano, a qual derrotou os israelenses. Foi ele também que estimulou e deu suporte ao levante dos Huthis iemenitas contra a o regime saudita. Soleimani, ademais, teve papel central na derrota do Estado Islâmico na Síria.
Ele contribuiu para a criação das milícias Al-Hashd Al-Sha'abi, grandes responsáveis pelo colapso dos Estado Islâmico na Síria e no Iraque. Essa milícias eram dirigidas por Abu Mahdi al-Muhandis, também assassinado no mesmo atentado em que morreu Soleimani.
Mas sua importância não era apenas militar. Era, sobretudo, política.
Foi ele que, em 2015, convenceu a Rússia a entrar mais decisivamente na guerra da Síria.
Da mesma forma, Soleimani empenhou-se na articulação da aliança trilateral entre China, Rússia e Irã, no Oriente Médio. Recentemente, em dezembro do ano findo, essa aliança realizou manobras marítimas conjuntas no Mar de Omã e no Oceano Índico.
Esses exercícios militares, que não foram noticiados aqui, causaram um impacto profundo no Oriente Médio e sinalizaram o fim do monopólio estratégico dos EUA e aliados nos mares daquela região.
Enfim, Soleimani era uma figura chave na estratégia de contenção dos EUA, Israel e aliados no Oriente Médio e, consequentemente, na Eurásia. Uma estratégia que estava dando certo.
Assim, ao contrário do que se afirma, as manifestações das milícias xiitas no Iraque em frente à embaixada dos EUA em Bagdá, que não chegou a ser invadida, foram apenas um pretexto para justificar o assassinato de Soleimani.
Os motivos reais são bem mais substanciais e têm relação com essa lenta, mas crescente perda de influência dos EUA no Oriente Médio, e com o aumento do protagonismo da Rússia e da China na região, tendo o Irã como pivô central. Os EUA deixaram de ser os únicos grandes players na região.
Esse é o pano de fundo, a razão última da ação norte-americana.
Contudo, isso não explica totalmente o porquê de uma decisão tão arriscada quanto assassinar Soleimani, herói nacional iraniano e figura pública amplamente conhecida e respeitada, alguém com um perfil muito distinto de um “terrorista” de fato, como Osama Bin Laden, por exemplo.
Há vários motivos que podem ser especulados.
1- A pressão de Israel.
Israel não engoliu a derrota no Líbano e vê com muita apreensão a crescente influência do Irã na Síria e na Palestina. Segundo o Channel 10 (canal televiso de Israel), EUA e esse país teriam feito uma espécie de acordo secreto no último mês de dezembro, no sentido de conter definitivamente o Irã.
O assassinato de Soleimani poderia ser um passo dessa estratégia mais agressiva.
2- A pressão das ditaduras sunitas do Golfo Pérsico.
As ditaduras medievais sunitas do Golfo Pérsico (Arábia Saudita, Qatar, Emirados Árabes, Bahrein, Kuwait) são aliadas dos EUA e inimigas do Irã, um regime xiita.
A Arábia Saudita, em particular, está furiosa com o apoio do Irã aos huthis do Iêmen, que vêm desafiando a hegemonia dos sauditas e sunitas na Península Arábica.
3- Pressão do Deep State e de grupos sunitas iraquianos para manter as bases e as posições norte-americanas no Iraque.
Esse parece ser o motivo imediato mais concreto.
O assassinato de Soleimani foi feito às vésperas de votação, no parlamento iraquiano, da lei que expulsa tropas estrangeiras do país, como de fato aconteceu na votação de ontem (04/01). Se a lei for cumprida, os EUA terão de abandonar definitivamente o país e perderão as suas bases militares estratégicas. Mike Pompeo, no entanto, já afirmou que o “povo iraquiano” não quer que os EUA saiam.
Antes da votação de ontem, o primeiro ministro do Iraque, Adil Abdul-Mahdi, anunciou que pretendia se reunir com Soleimani um dia após seu assassinato.
Ainda segundo Adil Abdul-Mahdi, Soleimani trazia uma carta para o governo iraquiano, com a posição do Irã sobre uma proposta de détente da Arábia Saudita. Adil Abdul-Mahdi também admitiu publicamente que Trump havia lhe pedido para intermediar um diálogo entre os EUA e o Irã.
Trump, quase tão ignorante quanto Bolsonaro e que sequer devia saber quem era Soleimani até ontem, deve ter aceito a sugestão de neocons. Pressionado pelo processo de impeachment e pelo processo eleitoral que se inicia, provavelmente achou por bem seguir o conselho dos falcões anti-iranianos, próximos a Hillary Clinton e a muitos democratas. Se der errado, cai na conta pessoal do presidente.
Compreensivelmente, o primeiro-ministro iraquiano está furioso e conseguiu aprovar uma proposta de entrar com uma reclamação contra os EUA na ONU.
A influência do Irã no Iraque, após a vitória contra o Estado Islâmico, tornou-se muito grande para o gosto americano. Parece, portanto, que os EUA vão fazer de tudo para conter tal influência e permanecer no país que hoje eles consideram seu.
No limite, os EUA poderiam até estimular de novo o Estado Islâmico e grupos sunitas dissidentes para derrubar o governo atual do Iraque.
Quanto à resposta do Irã, ela deverá ser contida e cautelosa.
Toda a política externa do Irã dos últimos tempos tem sido dirigida para acabar com o seu isolamento.
Não haverá, é óbvio, Terceira Guerra Mundial, até mesmo porque Rússia e China não desejam nenhum grande conflito com os EUA.
Tampouco haverá fechamento do Estreito de Ormuz, pois isso prejudicaria também o Irã. É pouco provável que haja alguma ação bélica direta do Irã contra algum alvo norte-americano de relevo.
O mais provável é que a resposta militar, se houver, virá de algum aliado na região (Hezbollah, Huthis, etc.) contra alvos de aliados dos EUA (Israel, Arábia Saudita, etc.,).
Ademais, o Irã usará o acordo nuclear para pressionar os europeus a não se alinhar com os EUA nessa nova aventura confrontacionista.
O anúncio de que haverá mais respeito aos limites do acordo faz parte dessa estratégia.
Afora essas especulações, o certo é que o ato terrorista de Trump tornou o Oriente Médio e o mundo mais perigosos. E o apoio estúpido do governo Bolsonaro ao terrorismo de Estado dos EUA tornou o Brasil um lugar bem mais perigoso. Isso também é certo.
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