quinta-feira, 29 de outubro de 2020

2020: uma eleição mal aproveitada

Por Marcos Coimbra, no site Brasil-247:

Quando, daqui a algum tempo, formos discutir a eleição de 2020, é provável que dela só reste uma coisa a dizer: que houve a eleição.

É pouco.

Eleições são processos complexos e cheios de consequências, seja pelo que representam na vida política, seja pelo que suscitam no imaginário.

São também caras, exigindo recursos públicos e privados nada pequenos.

Fazê-las apenas por fazê-las tem cara de desperdício.

Em um país como o Brasil, todavia, é bom que apenas haja uma eleição, mesmo que seu significado seja pequeno.

Se fôssemos os Estados Unidos, onde elas se sucedem de forma ininterrupta desde o século XVIII, nem tanto.

Mas nossa história é diferente: em cem anos, entre 1900 e o ano 2000, tivemos eleições razoavelmente amplas e livres em, somados, menos que trinta anos.

Nos setenta outros, até as fizemos, embora com participação minúscula, e vivemos décadas sob ditaduras.

Daqui a vinte dias, o eleitorado brasileiro irá às urnas eleger prefeitos e vereadores, mantendo a rotina de eleições periódicas, como estabelece a Constituição, o que é muito bom. Mas, em face da situação que o País vive, é insuficiente.

O Brasil não é o único lugar do mundo com eleições em plena pandemia e que atravessa graves problemas econômicos, sociais e políticos, ainda que seja um dos que mais mal se saem na resposta a esses desafios.

Não foi a natureza ou alguma inevitabilidade que nos trouxe a esse posto, mas um conjunto de escolhas, definidas e colocadas em prática por nossas elites dirigentes, através do capitão Bolsonaro, seu rosto e representante.

No plano sanitário, vamos fazer uma eleição falsamente “normal”, salvo por recomendações inócuas de uso de máscaras e distanciamento social nos locais de votação, que serão tão eficazes quanto os tapa-queixo que vemos nas ruas e as marcações no piso de ônibus urbanos. Ganha quem apostar que os eleitores terão que lidar com filas e aglomerações perigosas.

Por que não avançamos na discussão de formas remotas de voto?

Por que impor a todos um só modo de votar?

Nas raras pesquisas de opinião que tratam do tema, vemos que, em São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Belo Horizonte não passa de 25% a parcela que se sente “muito segura” em ir votar.

Os mais receosos são os mais pobres e, muito provavelmente, os menos bolsonaristas, que não estão obrigados a se pavonear como machos.

O pior dessa “normalização” da eleição acontece, porém, em seu conteúdo.

Estamos sofrendo uma calamidade sanitária sem horizonte de solução, com quase 160 mil óbitos e mais de 5 milhões de doentes, enquanto aguardamos as próximas ondas da doença.

Ao mesmo tempo, enfrentamos uma catástrofe econômica, com níveis recordes de desemprego, falência de politicas de mitigação da pobreza extrema e sucateamento da capacidade reguladora do estado, que se traduz em incêndios florestais, disseminação de agrotóxicos, irresponsabilidade ambiental e ataque aos povos indígenas.

Não temos politica educacional, de saúde, habitação popular, apoio à cultura e ao desenvolvimento cientifico e tecnológico. Nossa politica externa é uma piada internacional.

A única vitrine do governo, o Auxilio Emergencial, sobrevive por parecer ser clientelisticamente útil ao capitão, com a cumplicidade e o aplauso dos “liberais”. Nenhum desses males é culpa do vírus.

Nossas elites dirigentes querem que a eleição de 2020 seja uma “eleição municipal normal”, bem comportada, para discutir semáforos, coleta de lixo e conservação de parques.

A “eleição normal” é parte da construção de uma “normalidade ampla” com Bolsonaro (mantido na coleira), o aprofundamento da ortodoxia mercadista e a “pax brasiliense” entre os Poderes e entre as corporações, criando uma ponte para chegar “tranquilamente” a 2022 (arrebentando com a esquerda pelo caminho, se possível).

Não é estranho que amplas parcelas da população se encaixem mal nesse jogo.

Através das pesquisas, vemos que, em muitas cidades, o desinteresse e o baixo envolvimento são regra.

No Rio de Janeiro, a três semanas da eleição de 2016, 23% não tinham candidato na pergunta espontânea; este ano, são 45% (dados do Datafolha).

No Recife, em 2016, eram 24% (Datafolha); hoje, são 49% (Ibope). Em Porto Alegre, em 2016, eram 40% (Ibope); hoje, 64% (Methodus).

Vamos votar, sem a segurança adequada, sem discutir as questões relevantes, sem o interesse e a motivação dos eleitores.

Era isso mesmo que devíamos fazer, mas poderíamos estar aproveitando a oportunidade de maneira muito melhor.

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