terça-feira, 27 de outubro de 2020

A beleza da democracia no Chile

Por Tereza Cruvinel, no site Brasil-247:


No plebiscito de domingo, os chilenos deram prova inquestionável da força da democracia e da soberania popular, numa escolha que molda o futuro do Chile.

A convocação de uma Constituinte para redigir uma nova Carta foi aprovada por 78%, enquanto 79% optavam pela eleição de uma assembleia destinada exclusivamente ao trabalho constitucional, com participação paritária de homens e mulheres.

Nunca antes, que eu saiba, a paridade de gênero foi praticada em questão de tal relevância.

Os chilenos querem uma nova Constituição não apenas para destinarem ao lixo da História a Carta imposta pelo ditador Pinochet em 1980.

Ela foi seguidamente alterada, antes e depois da transição, encerrada com o plebiscito de 1988, em que os chilenos disseram não à possibilidade de Pinochet concorrer a novo mandato.

Veio então a primeira eleição direta, mas os fundamentos da carta pinochetista permaneceram.

Especialmente, no que diz respeito às obrigações do Estado e aos privilégios do mercado.

À carta remendada de Pinochet falta legitimidade popular mas não apenas isso moveu os chilenos.

Com as manifestações de 2019, que se prolongaram até março deste ano, eles produziram o chamado "estallido social": um basta às imposições neoliberais da velha carta pinochetista, que desobriga o Estado de prestar serviços como os de previdência, educação e saúde, entre outros.
O governo de Pinochet foi o primeiro experimento neoliberal radical na América do Sul, e nele pontificavam economistas da Escola de Chicago.

Paulo Guedes passou por lá, após voltar de um doutorado em Chicago, e teve alguma atuação na experiência que ele tenta reeditar no Brasil de 2020.

Os Chicago Boys seriam expulsos do Chile mais tarde, mas deixaram inscritos na Constituição os fundamentos do ultra-neoliberalismo, e o campo aberto para o predomínio absoluto do mercado em áreas que são obrigação do Estado.

Deu no que deu: um sistema previdenciário cruel, um sistema educacional limitado, um sistema de saúde que deixa sem assistência os que não podem pagar. Contra tudo isso gritaram os chilenos, deflagrando uma crise que levou ao plebiscito deste domingo.

A Constituinte que eles vão eleger no ano que vem será bem diferente da que fizemos em 1987/1988.

Derrotada a emenda das diretas, em 1984, mas estando a ditadura esgotada, sem condições de se prolongar, chegou-se ao acordo por cima, para a eleição de Tancredo-Sarney pelo Colegio Eleitoral.

Tancredo prometeu uma Constituinte.

Morreu sem tomar posse e Sarney fez a convocação. Mas nossa Constituinte não foi exclusiva e isso foi um dos erros cometidos na transição. Outro foi não ter punido os que mataram e torturaram, concedendo-lhes o perdão prévio com uma anistia recíproca.

Em 1986, os brasileiros foram chamados a eleger deputados e senadores que seriam constituintes nos dois primeiros anos, e depois continuariam a exercitar seus mandatos parlamentares.

Os redatores de uma Constituição não podem ser políticos.

Devem ser impedidos de disputar eleições imediatamente depois.

Isso para que não contaminem a Carta com a defesa de seus interesses. Por isso nossos constituintes produziram tantas mudanças e conquistas, mas praticamente não mexeram no sistema político. Optaram por manter o sistema pelo qual já se elegiam.

Este sistema, que exige do presidente governar em coalizão, por exemplo, é o pai da corrupção, do fisiologismo e da instabilidade frequente.

Os chilenos optaram por uma constituinte exclusiva e enxuta, que terá apenas 155 membros (a nossa tinha 559).

Quando os trabalhos terminarem, ela será dissolvida. Seus integrantes não poderão concorrer a mandatos imediatamente.

A assembleia chilena será composta por 50% de homens e 50% de mulheres, um exemplo para o mundo.

Mais uma vez o Chile nos mostra como é bela a democracia, apesar dos hiatos autoritários e regressivos.

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