segunda-feira, 5 de julho de 2021

A CPI tem que tirar o bode da sala

Por Jorge Gregory, no site Vermelho:


Algo que talvez esteja passando despercebido nos desdobramentos dos trabalhos da CPI, é que neste desastre da condução da política sanitária se evidencia a existência de um andar de baixo e um andar de cima no governo. Entre a conduta de um andar e outro há intersecções que devem ser exploradas nos trabalhos de investigação, mas os senadores terão que tomar muito cuidado para não se perderem no secundário, em detrimento do que é central. O que é central diz respeito ao andar de cima, o alto escalão do governo que, ao adotar o negacionismo e a teoria da imunidade de rebanho como política de governo, conduziu milhares de brasileiros à morte, promovendo um verdadeiro genocídio. No andar de baixo, nos escalões médios e inferiores, pouco interessa a política. Interessam, sim, os benefícios pessoais, de forma que a corrupção corre solta.

Uma vez que se incutiu na mente da imensa maioria da população que a corrupção é o problema do país, há uma certa tendência das mais diferentes colorações políticas de colocar a questão como central, o que pode ser um erro fatal. O problema dessa linha de raciocínio é que poderá levar a CPI a ficar patinando nas falcatruas do andar de baixo, deixando os que ocupam o andar de cima se livrarem dos verdadeiros crimes que cometeram. O depoimento do cabo Dominguetti foi claramente um bode colocado na sala para desviar o foco da CPI e da opinião pública. A manobra fracassou, no entanto, o bode pode permanecer na sala para desviar a atenção da Comissão, levando-a a tratar daquilo que é secundário e secundarizar o principal.

O caso dos irmãos Miranda surge neste contexto. Dentre os documentos requeridos pela CPI junto ao Ministério Público, um dos processos entregues e em curso dizia respeito à investigação de possíveis irregularidades no contrato de compra de doses da vacina indiana Covaxin. Dentre os depoimentos tomados, encontrava-se o de Luis Ricardo Miranda, técnico responsável pelos procedimentos de liberação das importações do Ministério da Saúde, onde o servidor, ao ser questionado pela procuradora se havia sofrido pressões para liberar a importação confirmou que sim, que recebera pressões dos superiores imediatos. Ao ver tal depoimento, um senador requereu a convocação do servidor para prestar esclarecimentos.

Até aqui o assunto Covaxin era periférico e provavelmente permaneceria assim caso o requerimento tivesse passado despercebido pela imprensa que, tomando conhecimento da convocação do servidor, publicou o depoimento dado ao Ministério Público. Acontece que o servidor era irmão do deputado bolsonarista Luis Miranda. Para que o seu mano não fosse crucificado em público, o parlamentar foi à imprensa afirmar que a maracutaia que estava sendo armada foi levada ao conhecimento de Bolsonaro por ele e pelo servidor. Tal afirmação foi confirmada e detalhada por ambos, deputado e irmão, em depoimento à CPI.

Com o procedimento adotado, um caso em que o servidor conseguiria comprovar no máximo a participação dos seus superiores, não passando do quarto escalão, tomou outras proporções. Havendo tão somente provas de envolvimento na tentativa de corrupção do diretor acima de Miranda, Pazuello e Bolsonaro afirmariam que não tinham conhecimento e que tomariam providências. Aquela balela de sempre. É pouco provável que se comprove o envolvimento direto de Bolsonaro no esquema de corrupção, mas a revelação de que foi comunicado e de que não tomou providências caracteriza o crime de prevaricação, razão muito mais consistente para um impeachment que a Elba de Collor e as pedaladas de Dilma. Mais, Bolsonaro ficou encurralado, pois não sabendo se a conversa com os irmãos Miranda havia sido gravada ou não, não podia desmenti-la.

Seguramente a CPI deve estar recebendo inúmeras ofertas de depoimentos voluntários para apresentar outras denúncias e com certeza também a própria mesa da CPI deve estar avaliando criteriosamente a credibilidade do denunciante bem como a consistência da denúncia. Dito isso, tivesse o tal cabo Dominguetti se dirigido a CPI, certamente a sua “denúncia” não teria demonstrado consistência e nem ele próprio, um bolsonarista convicto conforme demonstram as suas redes sociais, conseguiria demonstrar qualquer credibilidade. Ele então é jogado nas mãos da Folha de São Paulo, obviamente ávida por mais um furo. Dominguetti relata ao jornal uma tentativa de obtenção de propina pelo ex-diretor de logística do Ministério da Saúde, Roberto Dias, na oferta de vacinas AstraZeneca.

Excitados pela denúncia dos irmãos Miranda, que revelam um caso concreto de corrupção, os senadores mordem a isca. Antes de qualquer avaliação sobre quem era Dominguetti e a consistência da sua denúncia, se apressaram em convocar o personagem. Em audiência, centrando a denúncia em Roberto Dias, tido como homem de confiança de Ricardo Barros, era inevitável que algum senador da oposição mordesse a segunda isca e perguntasse se havia envolvimento de algum deputado. A pergunta foi feita e o cabo tirou a carta da manga. “Sei de um”, afirmou, e apresentou um áudio de Luis Miranda. Os senadores governistas quase foram ao orgasmo com a revelação. Estava colocado o bode na sala.

Contudo, a alegria bolsonarista e a perplexidade oposicionista durou pouco. O deputado Luis Miranda, que estava ligado no depoimento, correu para a sala de audiência e, como também tinha o áudio gravado, comprovou que a gravação era antiga e que se tratava de negociação relacionada a luvas. Não tivesse o deputado preservado tal gravação, a CPI passaria meses discutindo a credibilidade dos irmão Miranda, esvaziando a denúncia de prevaricação de Bolsonaro.

Para colocar o bode na sala, no entanto, Dominguetti construiu toda uma narrativa que mostrava certa coerência quanto à possibilidade de tentativa de corrupção por parte de Roberto Dias. Tendo sido levado a ele a possível oportunidade de desvios monumentais de dinheiro com um determinado esquema montado, seria muito provável que o ex-diretor tivesse se interessado e muito plausível que a tal reunião no restaurante tivesse de fato acontecido. Supostamente, com tal reunião Dias pretendia se inteirar de como a maracutaia funcionava para avaliar a viabilidade do esquema.

Aqui é necessário fazer um parêntese. Uma empresa do Texas, montada por um exilado cubano há menos de um ano, ter obtido a representação de um laboratório do porte da AstraZeneca é algo que só poderia ganhar credibilidade junto às frágeis organizações de prefeituras do interior e não duvido que alguns prefeitos tenham caído nesse conto do vigário. Dominguetti, associado a uma ONG evangélica e a alguns coronéis, resolveu apostar e tentar aplicar o golpe também no Ministério da Saúde. Ao conhecer a fragilidade do esquema, Roberto Dias, que ao que tudo indica é cobra criada, deve ter caído fora, de forma que é pouco crível que tenha ocorrido o pedido de propina de um dólar por vacina. No entanto, como Dias já foi exonerado como bode expiatório do caso Covaxin, não custava nada colocar na conta dele mais um possível ato de corrupção para plantar o bode do áudio. Em último caso, ficaria a palavra dele contra a de Dominguetti, mas o bode já teria sido plantado.

A CPI, no entanto, não pode cair na tentação de querer ficar investigando a corrupção do andar de baixo do governo. Tudo o que a situação quer é que a discussão caminhe para este pantanal. Se corrupção é o problema, corrupção ocorreu nos governos municipais e estaduais, há indícios de que ocorreu na América do Sul, nos Estados Unidos, na Europa e no Oriente. Se a corrupção é o problema, então Bolsonaro é tão culpado quanto o resto do mundo. A CPI tem que tirar este outro bode da sala e precisa se manter focada em provar que o genocídio foi uma política de governo, que no caso irmãos Miranda houve prevaricação e revelar quem idealizou a armadilha Dominguetti pois, convenhamos, o coitado do cabo não tinha a menor capacidade de ser o ideólogo de tal manobra.

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