Charge: Latuff |
A comitiva de posse do Presidente Lula sobe a rampa. O que se projeta entre os penachos vermelhos dos Dragões da Independência e as penas amarelas do Cacique Raoni – mais além de Lula que segura a mão de um menino negro que pode ser Presidente – são os pontos vermelhos dos bonés petistas, sob o sol amarelo e quente da Praça dos Três Poderes. O povo na Praça vibra, chora, canta e ama: são os rituais da democracia na vida comum que se expandem como furacões de luz e comovem as mentes sadias da nação. Ela sai do cárcere mais inteira e mais confiante.
Um pouco depois a nossa gigantesca Bandeira Nacional cobre, com seu manto verde, uma parte daquela multidão vibrante, que sofreu com seu líder – num cárcere exíguo –, de onde saiu respeitado pelos seus carcereiros, que hoje lhe dão segurança e prestam seu respeito. A vida e a morte têm rituais. A política e violência estatal também. Os fascistas alucinados estavam e ainda estão na frente dos quartéis e continuarão nas ruas. A vida e a morte continuarão com seus ritos alegres ou macabros, mas agora com Lula regendo a Orquestra da Democracia no Planalto, mais forte, mais lúcido, mais absolvido pela História e pelos Tribunais da República.
No exato momento em que eu acabava de ouvir o discurso do Presidente Lula, proferido depois de receber a faixa presidencial de pessoas referenciais da sociedade brasileira – totalmente invisíveis nos quatro anos do cruel mandato de Bolsonaro – recebi uma mensagem do meu amigo Boaventura de Souza Santos. Ele dizia da dimensão simbólica impressionante daquela “posse”, que considerou a mais brilhante e significativa do mundo nos últimos 50 anos. Dentro do mesmo período em que se reacenderam as tochas do fascismo, o neoliberalismo passou a ser hegemônico, as guerras de “conquista” – de espaços vitais imperiais – se multiplicaram, e a herança soviética arrebentou as utopias de um perfeito futuro imaginário.
A posse de Lula abriu uma possibilidade para a redenção nacional e democrática do país e torna um horizonte possível na nossa cena histórica a recriação da ideia de nação. A nação reencontrada fora da degradação do racismo, da misoginia, da opressão racial, da demolição cultural e corpórea dos povos originários, da opressão de gênero e de classe, com o resgate de vastos contingentes de humilhados – excluídos e descartáveis – da periferia do sistema capitalista para compartilharem de um destino comum. É apenas uma possibilidade, mas um povo que foi capaz de derrotar o fascismo dentro dos rituais da democracia liberal, pervertida pelo uso de práticas criminosas para tentar eleger um néscio, pode sonhar com mais.
A diferença radical, entre este momento de luta pela democracia e o Estado Social, e aqueles momentos anteriores de lutas socialistas – pela igualdade material fundada no “espírito” proletário clássico – é que os contingentes de homens e mulheres que hoje podem aderir a um modo de vida democrático – político, cultural e econômico viável dentro do próprio sistema capitalista – são infinitamente maiores do que aqueles contingentes que poderiam aderir, aos padrões de uma sociedade socialista, ainda formatada nos padrões idealizados na sociedade industrial do Século passado.
A análise mais adequada à ideia socialista, idealizada no Século passado, foi feita por Karl Marx e seus discípulos e as ideias democráticas de uma sociedade mais saudável e justa, voltada para paz – mais educada e mais solidária – são aquelas já forjadas por outras cabeças também assentes, de algum modo, no velho Marx. São as cabeças, entre outras, como as de Gramsci, Boaventura, Castells e Baumann. O complexo sistema global capitalista, que trava guerras contínuas contra o gênero humano, hoje turbinado pelas novas tecnologias info digitais, também naturaliza as violências internas de cada país, que podem alimentar e transformar o fascismo para torná-lo, de um desvio secundário da democracia liberal, um caminho autoritário e principal, para os ajustes da acumulação privada.
Na comitiva que entregou a faixa ao Presidente não está todo o povo brasileiro, mas seguramente está a maior parte daquele que foi alvo especial – por ação e omissão – do Governo que nos assolou por quatro anos demoníacos, onde a mentira vencia a verdade e a morte vencia a vida. Com o povo que subiu a rampa, podemos vencê-los para resgatar a ideia de uma nação solidária e da República democrática.
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