Charge: Nani |
No passado dia 09/05/2023, o atual Ministro da Justiça, Flávio Dino, compareceu à Comissão de Segurança Pública do Senado para ser interpelado por seus integrantes.
Desse episódio, o que mais nos chamou a atenção foram os altercados entre o ministro e três dos mais notórios representantes do bolsonarismo naquela casa, nomeadamente, os senadores Flávio Bolsonaro (PL-RJ), Sérgio Moro (União-PR) e Marcos do Val (Podemos-ES).
Para alguém pouco familiarizado com os meandros de nossa política, seria difícil entender como é possível que as mais destacadas figuras da principal força de oposição no Senado na atualidade (o bolsonarismo) sejam seres tão marcadamente patéticos, carentes de cultura e de traquejo, como evidenciam os nomes recém citados. Todos os que tiveram a oportunidade de assistir aos debates não puderam conter um certo sentimento de pena e vergonha alheia ao ver como esses bolsonaristas se viam inteiramente desnorteados à medida que Flávio Dino ia expressando seus argumentos. Dava vontade de interceder e implorar para que o Ministro não seguisse adiante com aquela crueldade. Era uma sensação semelhante à que teríamos ao presenciar cenas de um espancamento violento de uma criança de cinco anos por um marmanjão bem formado.
Infelizmente, com base nesta constatação totalmente fundamentada na realidade, tendemos a ser impelidos a concluir que o grande capital não dispõe de quadros em condições de travar satisfatoriamente as batalhas políticas exigidas para a sustentação de seus interesses de classe. Este é um grande equívoco que não deveríamos repetir. Digo isto porque já o cometemos no passado.
Embora muitas vezes ocorra que os escolhidos pelas classes dominantes para atuar em sua defesa sejam pessoas realmente patéticas, toscas e até repulsivas, isto não significa que elas não estejam à altura de cumprir com as incumbências que lhes foram dadas. Os critérios utilizados pelas classes dominantes para definir aqueles políticos que serão merecedores de seu apoio ou alvo de sua condenação estão alinhados com princípios vinculados com a luta de classes, tendo pouco a ver com peculiaridades relacionadas com a estética, os bons modos ou a fluência de oratória. Não é certo que uma atuação política eficiente dependa necessariamente da capacidade intelectual do ativista. O que reflete a eficácia de um agente político são os resultados que ele produz para a classe que ele objetiva beneficiar e não seu grau de sofisticação pessoal.
Tendo isto em mente, nos será mais fácil entender por que o mesmo Sérgio Moro que agora está se revelando um sujeito extremamente limitado e nada confiável, até pouco tempo atrás era pintado pelos meios de comunicação corporativos como um modelo a seguir, um paladino da luta contra a corrupção. Não podemos nos esquecer que ele chegou a ser elevado por nossa mídia à categoria de grande herói nacional.
O que ocorreu para que se desse esta mudança tão acentuada de percepção em tão curto prazo? Teria Sérgio Moro se submetido a um curso intensivo de bestialização que, em pouco menos de cinco anos, o teria transformado de protótipo de correção e infalibilidade ética em um desprezível energúmeno?
Na verdade, por mais que façamos elucubrações hipotéticas a respeito deste assunto, Sérgio Moro não mudou quase nada em termos de caráter no transcorrer da última década. Ele continua sendo essencialmente o mesmo de antes. As características pessoais com as quais ele é visto e sentido por quase todos na atualidade já estavam presentes bem antes. Só que havia setores muito poderosos de nossa sociedade que, mesmo em plena ciência deste fato, não desejavam que essa imagem negativa chegasse ao conhecimento público.
Então, em decorrência desta constatação, seria correto concluir que Sérgio Moro sempre foi um imprestável e que foi um grande erro de nossa “elite” socioeconômica ter dedicado a ele tanto apoio e feito seu endeusamento? Nada disso. Para as classes dominantes, ele prestou serviços inestimáveis, que poucos outros antes tinham conseguido oferecer com igual êxito. Foi por meio da decidida atuação de Sérgio Moro e seus pupilos da Operação Lava-Jato que a engenharia civil brasileira (uma das mais expressivas do mundo até recentemente) e nossa indústria naval foram completamente arrasadas. Como resultado, as grandes multinacionais estrangeiras que disputavam espaços em concorrência com as construtoras brasileiras estão agora se regozijando com a aniquilação de suas congêneres tupiniquins. Hoje em dia, até mesmo para a realização de obras no território de nosso próprio país, as empreiteiras nacionais estão sendo desbancadas por outras sediadas fora de nossas fronteiras.
Em relação com nossa indústria naval, sabemos que ela foi completamente destruída. As embarcações que eram fabricadas ou reparadas por aqui por nossos técnicos e trabalhadores, agora precisam ser importadas ou enviadas a estaleiros de outros países para sanar suas avarias. A numerosa mão de obra brasileira que era empregada localmente para a consecução dessas atividades foi deixada ao deus-dará.
Neste ponto, convém fazer referência ao caso da Petrobrás. Apesar de ter sido combatida desde o momento de sua criação, a Petrobrás pôde resistir aos ataques sofridos e veio a se constituir numa das empresas mais dinâmicas do mundo no ramo petrolífero. Além disso, passou a configurar-se como o mais importante pólo de desenvolvimento econômico da nação. Tanto assim que, mesmo enfrentando forte objeção de poderosos grupos econômicos, os pesquisadores da Petrobrás foram capazes de descobrir as jazidas do pré-sal e desenvolver uma tecnologia de ponta que possibilita sua prospecção em condições muito vantajosas para o Brasil. Claro que isto serviu para aguçar o descontentamento daqueles que desejavam impedir o avanço de nosso país no rumo de nossa soberania no cenário internacional.
E foi com o propósito de eliminar as barreiras que a fortaleza da Petrobrás antepunha à expansão do domínio imperialista sobre nossa nação que Sérgio Moro e a Lava-Jato foram novamente convocados para entrar em cena.
Com os golpes demolidores desfechados por Moro e sua equipe, a Petrobrás foi sendo maniatada e desmantelada; suas refinarias foram sendo entregues a grupos estrangeiros, e o pré-sal foi também desnacionalizado. As dificuldades enfrentadas na atualidade por essa empresa símbolo do orgulho nacional são imensas, e o risco de que percamos de vez esse grande patrimônio do povo brasileiro é cada dia mais real.
Evidentemente, os mentores do grande capital nunca se importaram com o baixo nível intelectual de Sérgio Moro, com sua falta de cultura, nem com sua incapacidade de articular e expressar seus pensamentos de modo coerente e inteligível. O que eles decididamente sempre apreciaram é sua invejável determinação para seguir adiante com as tarefas que lhe são designadas sem se intimidar diante de impedimentos legais, morais ou éticos. Ao longo do tempo, ele demonstrou ser muito bem dotado da qualidade mais enaltecida entre os capitalistas, ou seja, uma ambição desenfreada. Neste quesito, ele, de fato, deu provas de ser quase imbatível.
Raciocínio semelhante pode ser empregado para analisar o desempenho do clã bolsonarista (pai e filhos). Tomemos inicialmente o caso do patriarca da família. Se vasculhássemos os últimos 50 anos de nossa história, dificilmente iríamos nos topar com algum exemplo de outro político que pudesse superá-lo no tocante às qualificações consideradas negativas, ou seja, as tidas como desqualificações. Em outras palavras, grosseria, falta de cultura, péssima oratória estão entre as atribuições comumente associadas a ele.
É comum em meios de esquerda ouvir referências à pouca dedicação do ex-presidente ao trabalho, uma vez que ele dedicava boa parte de seu tempo a promover motociatas com seus apoiadores, em lugar de se envolver em atividades consideradas de governança real. Esta ideia se vê reforçada por ele nunca ter exercido uma atividade profissional fora da política. Outrossim, embora sua carreira parlamentar tenha se estendido por quase 30 anos, ele jamais apresentou sequer um projeto de alguma relevância em termos sociais. As poucas iniciativas por ele tomadas se referem a condecorações atribuídas a suspeitos de estar involucrados com atividades milicianas.
Se os grandes capitalistas fossem julgar sua potencialidade tão somente com base nos aspectos que acabamos de citar, o ex-capitão jamais chegaria a merecer sua confiança a ponto de disputar e assumir o comando da nação em representação de seus interesses maiores.
Entretanto, uma vez mais, deveríamos nos perguntar: Como aqueles que abriram o caminho para sua chegada à presidência avaliam o desempenho do ex-capitão bolsonarista no governo? O que pensam sobre isto banqueiros e demais rentistas, assim como os grandes capitalistas do agronegócio e os donos das empresas-igrejas neopentecostais? Estariam eles satisfeitos ou desapontados com a maneira como o governo bolsonarista se comportou em seus quatro anos de gestão?
Reiterando e consolidando a indagação, o governo bolsonarista foi bom ou ruim para aqueles que o promoveram e sustentaram?
Vamos recordar que durante os anos de administração bolsonarista os trabalhadores sofreram as mais drásticas perdas de direitos em quase um século. Além da retirada do amparo das leis trabalhistas da CLT, que tinham sido conquistadas com lutas e sacrifícios penosos, as entidades sindicais dos trabalhadores também foram muito debilitadas através de medidas restritivas e repressivas por parte do governo. Até o Ministério do Trabalho foi extinto para que as classes trabalhadoras se vissem ainda mais fragilizadas.
Como os grandes capitalistas devem ter encarado essa fase de governo bolsonarista? Será que eles se sentiram prejudicados pelo fato de o presidente da república naquele momento não ter permanecido o tempo todo em seu escritório envolvido com as atividades burocráticas de governo? Ou será que eles gostaram das medidas que lhes desobrigavam de arcar com custos previdenciários e trabalhistas e daquelas que serviam para desestruturar o funcionamento das entidades sindicais dos trabalhadores, com o consequente enfraquecimento de sua capacidade de resistência?
Analogamente, seria interessante repassar como se deu a privatização da Eletrobrás. Como é sabido, foi neste processo que um grupo de acionistas privados pôde arrebatar por um custo irrisório o controle deste conglomerado de empresas vital para o funcionamento da economia nacional. Será que os acionistas privados que foram agraciados com o amplo controle da Eletrobrás se sentiram incomodados pela persistência do governante bolsonarista em se dedicar a atividades de passeio e recreação em horários tipicamente de trabalho? Ou o fato de eles terem sido favorecidos com uma gigantesca transferência de patrimônio público para seu domínio particular poderia representar uma robusta motivação para que se sentissem identificados com o governante que lhes possibilitou isso? É difícil adivinhar a resposta?
Também os que vivem do rentismo estão repletos de razões para se sentirem agradecidos ao presidente derrotado eleitoralmente em 30 de outubro passado. Ele encampou como sua a reivindicação dos setores financeiros para que o Banco Central gozasse de total independência e pudesse manter as taxas de juros nos patamares mais elevados imagináveis. Se, por um lado, esse posicionamento inviabiliza o reerguimento da economia nacional e provoca um acentuado aumento do desemprego, por outro, possibilita um enorme transpasso de recursos do conjunto da nação para uns poucos grandes rentistas. Portanto, aqueles que se locupletam com esse rentismo parasitário não têm nenhuma motivação para nutrir antipatia ao governante bolsonarista que lhes proporcionou tal privilégio, muito pelo contrário.
Reservando umas palavrinhas para os filhos do citado patriarca e para o outro senador a quem fizemos menção no início do texto, é importante ressaltar que eles desenvolvem, entre outras atividades, um forte proselitismo em favor da indústria e do comércio de armamentos. Não restam dúvidas de que os negócios armamentísticos estão entre as atividades econômicas mais lucrativas, tanto no Brasil como na maior parte do mundo. O bolsonarismo sempre se caracterizou por pregar abertamente uma forte expansão do porte e uso de armas em nosso país. Em consequência, o número de armas de fogo em mãos de particulares cresceu exponencialmente nestes anos de ascensão bolsonarista. Em vista do que acabamos de mencionar, os que lucram com a indústria e o comércio da morte recebem incentivos suficientes para apoiarem os bolsonaristas do tipo dos que se enfrentaram com Flávio Dino na citada sessão da Comissão de Segurança do Senado por mais que eles aparentem contar com diminutos recursos intelectuais.
Toda a argumentação que venho procurando desenvolver neste texto visa conduzir-nos à conclusão de que não é correto justificar nosso rechaço a políticos do bolsonarismo (como Sérgio Moro, Jair Bolsonaro, Flávio Bolsonaro e Marcos do Val) em função de suas carências intelectuais, morais ou éticas. Não são essas características nada lisonjeiras que fazem deles seres inofensivos para as maiorias populares. Independentemente de suas deficiências de caráter, essas pessoas podem ser muito úteis para as causas dos exploradores
As classes dominantes sabem ser muito pragmáticas quando seus interesses estão em jogo. As peculiaridades morais, intelectuais ou éticas de alguns políticos nunca são os pontos determinantes para que recebam apoio ou rechaço de sua parte. O que realmente é levado em consideração na avaliação de seus servidores é o quanto seu comportamento contribui ou impede que seus objetivos sejam alcançados e preservados. É por isso que eles estão propensos a utilizar seus meios de comunicação com o objetivo de transformar em heróis a certos seres que não se diferenciam muito de meros ruminantes, ao passo que se esmeram por demonizar e destruir a imagem daqueles que ousam desafiar seus postulados.
* Jair de Souza é economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ.
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