sábado, 30 de julho de 2011

Época, IstoÉ e os atentados na Noruega

Por Mauro Malin, no Observatório da Imprensa:

Duas das mais importantes revistas semanais brasileiras, Época e IstoÉ, poderiam ter disputado, no fim de semana de 23-24/7, para saber quem foi capaz de errar mais na avaliação dos violentíssimos atos terroristas cometidos na sexta-feira (22/7), na Noruega, por um fascista local.



IstoÉ errou de cabo a rabo: simplesmente atribuiu o atentado à Al Qaeda. Ilustra a reportagem com uma foto de prédios abalados em Oslo e outra de Ayman Al-Zawahiri, sucessor de Osama bin Laden.

A revista, como as demais, apresentou a Noruega como um cenário político idílico. Esse engano se repetiu em todas as mídias. Ou quase. Na noite de terça-feira (26/7), Alberto Dines abriu o programa do Observatório de Imprensa na TV com um comentário que colocou em contexto histórico o ato aparentemente desvairado de Anders Behring Breivik:

“O monstro de Oslo certamente agiu sozinho, mas ele não estava nem está sozinho. Breivik faz parte de uma legião mundial de extrema-direita que não nasceu agora, começou nos anos 20 do século passado e levou a humanidade à mais sangrenta guerra de todos os tempos. A ideologia de Breivik só difere do nazifascismo no acréscimo do ingrediente religioso. De resto, nada a diferencia do rancor hitlerista e fascista. Sua xenofobia é gêmea do Tea Party americano. O antissocialismo que levou Breivik a atacar a sede do governo e massacrar 68 jovens conterrâneos num acampamento de verão é o mesmo que leva a direita americana a travar o orçamento do país com o pretexto de que Barack Obama é socialista. A pacífica Noruega foi invadida em 1940 pelas tropas de Hitler, que lá instalaram um ditador local, chamado Quisling, cujo nome tornou-se sinônimo de colaborador do nazismo. A Segunda Guerra Mundial ainda não acabou.”

Os suspeitos habituais

A Época evitou a imagem de uma Noruega isenta de riscos, mas os atribuiu exclusivamente à hostilidade de fundamentalistas islâmicos devido à participação do país no contingente da Otan que combate o Talibã no Afeganistão e à reprodução, em jornais noruegueses, de charges dinamarquesas que, em 2005, provocaram a ira de religiosos muçulmanos.

No fim da reportagem, mencionou a hipótese de o ataque ter sido promovido pela extrema direita norueguesa, dada a nacionalidade do atirador preso, mas isso não abalou o tom geral do texto, encimado por um subtítulo onde se lia: “Um duplo atentado à [sic] bomba e a tiros, endereçado ao governo norueguês, lembra o Ocidente de que o sinistro legado de Osama bin Laden continua à espreita”.

Presente desenraizado?

Veja esperou para dar as informações corretas, embora não tenha deixado de mencionar a hipótese de uma ação de fundamentalistas islâmicos. O que não saiu a contento foi o cenário norueguês. O clichê usado na capa da revista, “Terror no país da paz”, patenteia granítica ignorância histórica.

Por sinal, a reportagem afirma, logo no início, para criar um mote com o qual “amarra” o texto no final, que Alfred Nobel, antes de morrer, em 1896, estabeleceu que a entrega do prêmio que leva seu nome seria feita na Noruega, porque ela era “um país sem apego ao militarismo e dirigido por uma elite tolerante”.

Ocorre que em 1896 a Noruega não era um país, mas parte da Suécia (desde 1814, após uma dominação pela Dinamarca que remontava a meados do século 16). Tornar-se-ia independente em 1905 e, num plebiscito, escolheria como rei um príncipe dinamarquês. O regime é desde então essencialmente democrático, em molde parlamentarista.

O colaborador norueguês

A Noruega independente é um país pacífico, que ficou fora da Primeira Guerra Mundial e teria repetido essa escolha na Segunda se não tivesse sido invadida por Hitler. A Alemanha importava da Suécia o ferro que era escoado pelo porto norueguês de Narvik e daí pelo Mar do Norte. Hitler adiantou-se aos britânicos, que teriam invadido o país para cortar esse fluxo. O exército da Noruega resistiu dois meses aos alemães até capitular, tempo suficiente para a família real e o governo buscarem refúgio.

Forças antinazistas norueguesas impuseram ao invasor uma resistência nada desprezível, que, juntamente com a possibilidade de ataque dos Aliados, obrigou Hitler a manter no país 300 mil soldados que teriam sido preciosos em outras frentes de batalha.

O Quisling mencionado por Dines no programa de TV, Vidkun Quisling (sobrenome aportuguesado como quisling, sinônimo de quinta-coluna), foi primeiro-ministro entre 1942 e 1945, sob a égide de um “comissário civil” alemão, o nazista Josef Terboven. Das fotos que ilustram este texto (publicadas na Coleção 70º Aniversário da II Guerra Mundial, 1939-1945, vol. 4), uma mostra Quisling durante uma visita a Berlim e outra é de seu julgamento.

Por vontade própria

O que importa aqui não é a narrativa histórica, mas sinalizar para o leitor a força que teve e tem na Noruega, como na Europa inteira, nos Estados Unidos e alhures, a extrema-direita racista, antissemita, xenófoba.

Quisling era um homem da elite norueguesa, filho de conhecido pastor luterano. Foi ministro da Guerra entre 1931 e 1933. Depois, fundou o Nasjonal Samling, agremiação nacionalista que acabaria transformada em partido nazista, com escassos votos (2% nas eleições de 1935), embora tenha chegado a 45 mil filiados sob a ocupação hitlerista. Logo após o desembarque alemão, em abril de 1940, tentou sem êxito formar um governo pró-nazista. Não foi aceito. Só em 1942 conseguiu tornar-se primeiro-ministro.

Essas informações servem para sublinhar que Quisling não foi um colaborador “forçado”, ou alguém que se deixou cooptar em nome do “mal menor”. Era nazista convicto. Uma parte da intelectualidade norueguesa simpatizava com o nazismo – como, de resto, acontecia em todos os países.

O caso mais notório foi o do escritor Knut Hamsun, autor do celebrado romance A Fome e Prêmio Nobel de Literatura em 1920. O cartaz de propaganda nazista reproduzido abaixo mostra a expectativa de entendimento entre nazistas e noruegueses “contra o bolchevismo”.

Punição radical

Quisling, acusado de corrupção, assassinatos e traição, foi julgado, condenado e executado em outubro de 1945. Segundo Tony Judt (Pós-Guerra – Uma História da Europa desde 1945), na Noruega todos os integrantes do Nasjonal Samling (ele dá o número de 55 mil) foram julgados, “além de outros 40 mil indivíduos; 17 mil homens e mulheres receberam penas de detenção e trinta sentenças de morte foram expedidas, das quais 25 levadas a cabo. Em nenhum outro local as proporções [de punição a colaboracionistas pró-nazistas] foram tão elevadas”.

Segundo algumas interpretações, penas punições adotadas podiam ser classificadas como retaliações. Esse rigor era tanto antinazista como anti-alemão. Não funcionou para “sepultar” o radicalismo de direita, como se deu a entender depois da guerra (minha geração cresceu com essa ideia na cabeça, até que, no Brasil, a ditadura militar, com suas indisfarçáveis inclinações fascistas, enterrou ilusões).

Teimosa erva daninha

Giogio Almiranti fundou o Movimento Social Italiano, sucessor do Partido Nacional Fascista, em 1946. Franco, o ditador espanhol, governou de 1939 até morrer, em 1975. O ditador Antônio de Oliveira Salazar morreu em 1970, mas só em 1974 Portugal se viu livre do regime por ele instaurado em 1933.

Em 1999, a revista The Economist publicou um artigo cujo título é expressivo: “Fascismo ressurgente?”. O motivo imediato era a ascensão, na Áustria – país que teve proporcionalmente o maior número de nazistas, mas não os puniu em escala comparável à da Noruega e mesmo às de outros países ocupados por Hitler −, de Jörg Haider e seu Partido da Liberdade. Haider, que morreu num acidente automobilístico em 2008, propagandeava sua admiração por algumas políticas de Hitler.

Em relação à Noruega, a The Economist assinalava o crescimento do Partido do Progresso, de Carl Hagen (cerca de 15% dos votos nas eleições daquele ano; hoje, é o segundo partido no Parlamento, com 41 cadeiras), mas não o considerava uma ameaça à democracia escandinava, “menos ainda um herdeiro da depravação de Vidkun Quisling”. Entre as características do Partido do Progresso, a revista apontava o empenho em “espremer o estado de bem-estar social” e “um sopro de agressividade anti-imigrantes”.

Armas da direita

Com o terrorista Breivik o sopro virou vendaval, voltado contra noruegueses que seriam complacentes. O Christian Science Monitor disse na quinta-feira (28/7) que a oposição ao multiculturalismo e os sentimentos anti-imigrantes são “supreendentemente comuns” na Noruega.

Breivik não é louco. Ele aparentemente agiu sozinho, mas, como constatou Dines, não estava nem está sozinho. Com raríssimas exceções, atentados de direita de grandes proporções ou intensa repercussão política produziram recuos da democracia nas últimas décadas.

Isso aconteceu, por exemplo, na Itália (1976, assassinato de Aldo Moro; os autores se imaginavam de esquerda radical; 1980, atentado de Bolonha) e nos Estados Unidos (1995, bomba de Oklahoma, detonada por um simpatizante da milícia, governo Clinton; 2001, Torres Gêmeas e Pentágono, governo G.W. Bush).

Teria acontecido no Brasil em 1981, truncando a reconquista democrática, se a bomba destinada ao Riocentro não tivesse explodido no colo do sargento que a portava.

A Segunda Guerra Mundial derrotou Mussolini e Hitler, mas não o fascismo, que brota e rebrota indiferente ao grau de severidade com que seus praticantes tenham sido punidos após a vitória aliada.

As revistas que noticiaram o terror em Oslo informaram, na edição do mesmo fim de semana, que a prefeitura de Wunsiedel, sul da Alemanha, decidiu destruir o túmulo do segundo homem na hierarquia nazista, Rudolf Hess, exumar seus ossos, cremá-los e jogar suas cinzas no mar, para acabar com a peregrinação de neonazistas ao cemitério onde ele estava enterrado havia quase 25 anos.

A consciência dessa desafiadora realidade está um pouco distante das redações brasileiras.

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