Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
A demissão de João Paulo Cunha, editor de cultura do jornal Estado de Minas, publicação de maior circulação naquele estado, ajuda a colocar um traço de realismo ao debate sobre liberdade de imprensa no Brasil.
É uma piada pronta, que ajuda a lembrar que vivemos um regime que deveria ser definido como bolivarianismo patronal.
Todos lembram de uma noite recente em São Paulo, quando jornalistas subiram ao palco de uma cerimônia de premiação para dizer em tom dramático: “não ao controle social da mídia.” É disso que estamos falando.
Embora estejamos falando de um direito constitucional, na vida real da imensa maioria de jornais, revistas, emissoras de rádio e de TV do país o exercício da liberdade de expressão vive limitado por uma prerrogativa de classe.
Pode ser exercida pelos donos da empresa, seus familiares e uma pequena elite de profissionais autorizados. E só.
Aos demais jornalistas está reservada a função de apurar o que pedem e escrever o que mandam, num regime de cima para baixo que não é exagero comparar com hierarquia militar.
A linguagem panfletária, editorializada, reflete a falta de debate interno. A edição seletiva, dirigida para ressaltar um ponto de vista pré-definido, expressa a mesma situação.
Profissional diferenciado, há 18 anos no Estado de Minas, João Paulo pediu demissão ao ser informado pela direção da publicação que não estava mais autorizado a escrever sobre assuntos políticos.
A decisão foi tomada depois da publicação de um artigo no qual o autor ousava fazer uma observação em tom crítico ao senador e ex-candidato presidencial Aécio Neves. Convém atentar para dois detalhes. O artigo foi publicado em 12 de dezembro de 2014, ou seja, um mês e meio depois que Aécio já tinha sido derrotado por Dilma Rousseff, quando os votos já haviam sido contados e o resultado da eleição já fora anunciado. Seria impossível, portanto, imaginar que João Paulo tivesses a intenção de usar as páginas do Estado de Minas para pedir votos para a adversária de Aécio nas páginas de um jornal que defende a candidatura presidencial do senador mineiro desde 2010, quando ele sequer concorria ao Planalto.
Outro aspecto é que não se trata de um artigo que julgasse Aécio Neves como um político bom ou ruim. Fazia uma crítica a sua postura depois da derrota, quando Aécio e o PSDB partiram para a ignorância: tentaram impugnar as urnas e estimularam protestos que pediam golpe de Estado. Num texto denso, refletido, verdadeira glória da imprensa brasileira de nossos dias, onde é raro ler-se um material de qualidade equivalente, João Paulo comparou Aécio a Bentinho, o personagem de Machado de Assis que não consegue compreender o que acontece no mundo – nem com a mulher Capitu, suspeita de adultério.
Vamos ler um trecho do artigo, chamado Sindrome de Capitu:
“Bentinho não sofre só pela traição mas porque não entende que o mundo mudou. Não pode aceitar que a sociedade republicana deixou para trás as amarras elitistas do Segundo Reinado e da escravidão. (…) Tudo o que ele não compreende o ameaça.”
Outro parágrafo:
“O Brasil tem uma recorrente síndrome de Capitu: tudo que a elite não tolera se torna, por meio de um discurso marcado pela força jurídica e da tradição, algo que deve ser rejeitado. Eternos maridos traídos. A tendência de empurrar a política para os tribunais é uma consequência desse descaminho. Assim, tudo que de alguma forma aponta para a mudança e ampliação de direitos é considerado ilegítimo e, em alguns momentos, quase uma afronta que precisa ser questionada e combatida. Foi assim com a visibilidade dada aos novos consumidores populares (que foram criminalizados em rolezinhos ou objeto de ironia em aeroportos), com as cotas raciais para a universidade, com a chegada de médicos estrangeiros para ocupar postos que os brasileiros, psicanaliticamente, denegaram.”
A leitura desses parágrafos – o texto integral pode ser encontrado na internet – mostra uma produção intelectual sofisticada, a altura das complexidades de um país como o Brasil em 2014. Não estamos falando de um panfleto. O tom é profissional, de quem sabe seus limites e conhece as fronteiras de quem faz a dissidência num ambiente geral hostil.
O vigor intelectual contrasta com uma certa timidez política, até.
E aí chegamos ao verdadeiro bolivarianismo de nossas terras. Qual a liberdade que ameaça nossos Bentinhos? Qual seu temor?
Ao falar de uma elite de “eternos maridos traídos”, João Paulo toca no ponto central de nossa democracia, regime que pode ser aceito, preservado e até celebrado – enquanto o povo não ousa ultrapassar determinados limites e fronteiras. Quando isso acontece, considera-se traição – e isso é imperdoável.
Esse é o drama da liberdade de expressão e da democratização dos meios de comunicação. A luta contra a censura foi benvinda enquanto auxiliou os donos de jornal a livrar-se das botas e tanques de um regime que haviam ajudado a colocar de pé.
Foi uma causa justa correta, vamos ter clareza.
Quando se procura ampliar o espaço para que o conjunto da sociedade possa se manifestar, num movimento que apenas fortalece a democracia, e é coerente com as mudanças sociais que ocorreram-no país na última década, a reação é falar em bolivarianismo, sem receio de produzir uma fraude. Quem censura? Quem cala o outro lado? Quem oprime?
Até dá para entender. Só não dá para aceitar.
“Síndrome de Capitu” é um trabalho de gabarito, que não se lê todos os dias, que coloca a política em outro plano, da discussão cultural. Ajuda a pensar o país – e é isso que se proibiu.
A demissão de João Paulo Cunha, editor de cultura do jornal Estado de Minas, publicação de maior circulação naquele estado, ajuda a colocar um traço de realismo ao debate sobre liberdade de imprensa no Brasil.
É uma piada pronta, que ajuda a lembrar que vivemos um regime que deveria ser definido como bolivarianismo patronal.
Todos lembram de uma noite recente em São Paulo, quando jornalistas subiram ao palco de uma cerimônia de premiação para dizer em tom dramático: “não ao controle social da mídia.” É disso que estamos falando.
Embora estejamos falando de um direito constitucional, na vida real da imensa maioria de jornais, revistas, emissoras de rádio e de TV do país o exercício da liberdade de expressão vive limitado por uma prerrogativa de classe.
Pode ser exercida pelos donos da empresa, seus familiares e uma pequena elite de profissionais autorizados. E só.
Aos demais jornalistas está reservada a função de apurar o que pedem e escrever o que mandam, num regime de cima para baixo que não é exagero comparar com hierarquia militar.
A linguagem panfletária, editorializada, reflete a falta de debate interno. A edição seletiva, dirigida para ressaltar um ponto de vista pré-definido, expressa a mesma situação.
Profissional diferenciado, há 18 anos no Estado de Minas, João Paulo pediu demissão ao ser informado pela direção da publicação que não estava mais autorizado a escrever sobre assuntos políticos.
A decisão foi tomada depois da publicação de um artigo no qual o autor ousava fazer uma observação em tom crítico ao senador e ex-candidato presidencial Aécio Neves. Convém atentar para dois detalhes. O artigo foi publicado em 12 de dezembro de 2014, ou seja, um mês e meio depois que Aécio já tinha sido derrotado por Dilma Rousseff, quando os votos já haviam sido contados e o resultado da eleição já fora anunciado. Seria impossível, portanto, imaginar que João Paulo tivesses a intenção de usar as páginas do Estado de Minas para pedir votos para a adversária de Aécio nas páginas de um jornal que defende a candidatura presidencial do senador mineiro desde 2010, quando ele sequer concorria ao Planalto.
Outro aspecto é que não se trata de um artigo que julgasse Aécio Neves como um político bom ou ruim. Fazia uma crítica a sua postura depois da derrota, quando Aécio e o PSDB partiram para a ignorância: tentaram impugnar as urnas e estimularam protestos que pediam golpe de Estado. Num texto denso, refletido, verdadeira glória da imprensa brasileira de nossos dias, onde é raro ler-se um material de qualidade equivalente, João Paulo comparou Aécio a Bentinho, o personagem de Machado de Assis que não consegue compreender o que acontece no mundo – nem com a mulher Capitu, suspeita de adultério.
Vamos ler um trecho do artigo, chamado Sindrome de Capitu:
“Bentinho não sofre só pela traição mas porque não entende que o mundo mudou. Não pode aceitar que a sociedade republicana deixou para trás as amarras elitistas do Segundo Reinado e da escravidão. (…) Tudo o que ele não compreende o ameaça.”
Outro parágrafo:
“O Brasil tem uma recorrente síndrome de Capitu: tudo que a elite não tolera se torna, por meio de um discurso marcado pela força jurídica e da tradição, algo que deve ser rejeitado. Eternos maridos traídos. A tendência de empurrar a política para os tribunais é uma consequência desse descaminho. Assim, tudo que de alguma forma aponta para a mudança e ampliação de direitos é considerado ilegítimo e, em alguns momentos, quase uma afronta que precisa ser questionada e combatida. Foi assim com a visibilidade dada aos novos consumidores populares (que foram criminalizados em rolezinhos ou objeto de ironia em aeroportos), com as cotas raciais para a universidade, com a chegada de médicos estrangeiros para ocupar postos que os brasileiros, psicanaliticamente, denegaram.”
A leitura desses parágrafos – o texto integral pode ser encontrado na internet – mostra uma produção intelectual sofisticada, a altura das complexidades de um país como o Brasil em 2014. Não estamos falando de um panfleto. O tom é profissional, de quem sabe seus limites e conhece as fronteiras de quem faz a dissidência num ambiente geral hostil.
O vigor intelectual contrasta com uma certa timidez política, até.
E aí chegamos ao verdadeiro bolivarianismo de nossas terras. Qual a liberdade que ameaça nossos Bentinhos? Qual seu temor?
Ao falar de uma elite de “eternos maridos traídos”, João Paulo toca no ponto central de nossa democracia, regime que pode ser aceito, preservado e até celebrado – enquanto o povo não ousa ultrapassar determinados limites e fronteiras. Quando isso acontece, considera-se traição – e isso é imperdoável.
Esse é o drama da liberdade de expressão e da democratização dos meios de comunicação. A luta contra a censura foi benvinda enquanto auxiliou os donos de jornal a livrar-se das botas e tanques de um regime que haviam ajudado a colocar de pé.
Foi uma causa justa correta, vamos ter clareza.
Quando se procura ampliar o espaço para que o conjunto da sociedade possa se manifestar, num movimento que apenas fortalece a democracia, e é coerente com as mudanças sociais que ocorreram-no país na última década, a reação é falar em bolivarianismo, sem receio de produzir uma fraude. Quem censura? Quem cala o outro lado? Quem oprime?
Até dá para entender. Só não dá para aceitar.
“Síndrome de Capitu” é um trabalho de gabarito, que não se lê todos os dias, que coloca a política em outro plano, da discussão cultural. Ajuda a pensar o país – e é isso que se proibiu.
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