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A publicação do Relatório do Comité de Inteligência do Senado dos Estados Unidos dado a conhecer há dias descreve de forma minuciosa as diferentes “técnicas de interrogatório” utilizadas pela CIA para extrair informação relevante na luta contra o terrorismo. O que foi tornado público é apenas um resumo, de umas 500 páginas, de um estudo que contém umas 6.700 e cuja primeira e rápida leitura produz uma sensação de horror, indignação e repugnância como poucas vezes experimentou quem escreve estas linhas. [1]
Os adjectivos para qualificar esse lúgubre inventário de horrores e atrocidades não conseguem transmitir a patológica desumanidade do que ali se conta, apenas comparável às violações dos direitos humanos perpetradas na Argentina pela ditadura cívico-militar, ou as que no quadro do Plano Condor se consumaram contra milhares de latino-americanos nos anos de chumbo.
O Relatório é susceptível de múltiplas leituras, que animarão seguramente um significativo debate. Para começar digamos que o simples facto da sua publicação produz um dano irreparável para a pretensão estado-unidense de se erigir em campeão dos direitos humanos, sendo que uma agência do governo, com linha directa para a Presidência, perpetrou estas atrocidades ao longo de vários anos com o aval – caso de George W. Bush - ou a displicente indiferença do seu sucessor na Casa Branca.
Obviamente, se já antes os Estados Unidos careciam de autoridade moral para julgar terceiros países por presumíveis violações dos direitos humanos, depois da publicação deste Relatório o que Barack Obama deveria fazer seria pedir perdão à comunidade internacional (coisa que desde logo não fará, ou não o deixarão fazer, como o demonstrou o escândalo da espionagem às comunicações), interromper definitivamente a publicação dos relatórios anuais sobre a situação dos direitos humanos e do combate al terrorismo onde se qualifica o comportamento de todos os países do mundo (excepto os Estados Unidos, juiz infalível que não pode ser julgado) e assegurar-se de que práticas tipificadas como torturas pelo Relatório senatorial não apenas não voltarão a ser utilizadas pela CIA ou pelas forças regulares do Pentágono como também pelo número crescente de mercenários alistados para defender os interesses do império, o que igualmente não tem demasiada probabilidade de ocorrer.
Precisamente, a ideia de nutrir cada vez mais as forças do Pentágono com mercenários recrutados pelos seus aliados no Golfo Pérsico (Arabia Saudita, Emiratos, Qatar, etc.) ou por companhias especializadas, como Academi (a tenebrosa ex Blackwater) é libertar o governo dos Estados Unidos de qualquer responsabilidade por violações dos direitos humanos que estes “contratistas”, como eufemisticamente são denominados, possam cometer. Ao “terceirizar” deste modo as suas operações militares no exterior a aplicação de torturas contra presumíveis, ou verdadeiros, terroristas realiza-se à margem do que a Convenção de Genebra estipula, ao estabelecer que os prisioneiros de guerra devem ter garantias jurídicas de defesa e ser tratados de modo humanitário. Os mercenários ou “contratistas”, pelo contrário, são bandos contratados por Washington para operações especiais, actuando à margem de qualquer lei. Não têm prisioneiros mas “detidos”, que podem manter sob custódia todo o tempo que considerem necessário, negando-lhes o direito à defesa e deixando-os à mercê dos maus-tratos ou das torturas que os seus captores decidam aplicar-lhes, gozando para isso de total impunidade.
Em segundo lugar, o relatório evita considerar que a tortura foi legalizada pelo Presidente George W. Bush. Tal como apontámos num estudo publicado em 2009, a tortura como uma prática habitual vinha sendo utilizada desde há muito tempo pela CIA e outras agências do governo federal. No referido texto dizíamos que “a partir dos atentados de 11 de Setembro e da nova doutrina estratégica estabelecida pelo presidente George W. Bush no ano seguinte (“guerra contra o terrorismo”, “guerra infinita”, etc.) as torturas a prisioneiros, sejam estes supostos combatentes inimigos ou simples suspeitos, tornaram-se prática habitual nos interrogatórios, tal como também os tratos desumanos ou degradantes infligidos às pessoas sob custódia das tropas estado-unidenses. A fim de evitar as consequências legais que decorrem desta situação Washington adoptou como uma das suas políticas a transferência dos seus prisioneiros para prisões situadas em países onde a tortura é legal ou nos quais as autoridades não têm interesse algum em impedi-la, sobretudo se se trata de favorecer os planos estado-unidenses; ou enviá-los para o Afeganistão, Iraque ou a própria base norte-americana de Guantánamo, onde se pode interrogar brutalmente qualquer prisioneiro sem qualquer tipo de acompanhamento judicial e sem a presença de observadores incómodos como, por exemplo, a Cruz Vermelha Internacional.” [2]
Para assombro de próprios e alheios, mesmo depois de ter sido dado a conhecer o Relatório do Senado o porta-voz da Casa Branca fez apelo a ridículos eufemismos quando transmitiu o repúdio do presidente Obama pelo que nele é revelado: condenou os “duros e atrozes interrogatórios” praticados pela CIA, evitando utilizar o termo correcto para definir o que segundo a Convenção Contra a Tortura e outros Tratos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes é pura e simplesmente isso: tortura. No seu artigo primeiro a Convenção estabelece que “Se entenderá pelo termo ‘tortura’ todo acto pelo qual se inflija intencionadamente a uma pessoa dores ou sofrimentos graves, sejam físicos ou mentais, com o fim de obter dela ou de um terceiro informação ou uma confissão; de a castigar por um acto que haja cometido, ou se suspeite que tenha cometido; ou de intimidar ou coagir essa pessoa ou outras, ou por qualquer razão baseada em qualquer tipo de discriminação, quando as referidas dores ou sofrimentos sejam infligidos por um funcionário público ou outra pessoa em exercício de funções públicas, sob instigação sua, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerarão torturas as dores ou sofrimento que sejam consequência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes ou decorrentes destas.” [3]
De acordo com esta definição é impossível sustentar que práticas tais como a “reidratação rectal”, a “hipotermia”, a “alimentação rectal”, suspender a vítima de uma barra, ameaçar violar a sua esposa ou filhas, a proibição de dormir ou o “submarino” (“waterboarding”, como se lhe chama em inglês) aplicadas cruelmente durante horas y dias para interrogar suspeitos de terrorismo não constituem flagrantes casos de tortura. [4]
Não obstante tudo isto, em Março de 2008 o presidente Bush vetou uma lei do Congresso que proibia a aplicação do “submarino” a presumíveis terroristas, dando cumprimento a um anúncio prévio no qual advertia que vetaria qualquer peça legislativa que impusesse limitações ao uso da tortura como método válido e legal de interrogatório. Em resposta aos seus críticos a Casa Branca disse que seria absurdo obrigar a CIA a respeitar os preceitos estabelecidos pela legislação internacional porque os seus agentes não se confrontavam com combatentes legais, forças regulares de um estado operando em conformidade com os princípios tradicionais, mas com terroristas que actuam com total desprezo por qualquer norma ética. Deste modo Bush e a sua pandilha tentaram justificar a violação permanente dos direitos humanos sob o pretexto do “combate ao terrorismo”. Não apenas isso: o seu Secretario da Defesa, Donald Rumsfeld, autorizou explicitamente em Dezembro de 2002 a utilização de pelo menos nove “técnicas de interrogatório” que só em virtude de um perverso eufemismo podem deixar de ser qualificadas como torturas. O interessante do caso é que os Estados Unidos aderiram em 1994 à citada Convenção (que conta com 145 estados participantes) mas tratou cuidadosamente de não ratificar o Protocolo que outorga faculdades de controlo ao Comité da Tortura das Nações Unidas. Por outras palavras, a simples adesão à Convenção foi uma jogada demagógica, carente de consequências práticas na luta contra a tortura.
O horror que o Relatório desperta não deveria levar-nos a pensar que ali se encontra toda a verdade. Embora destrua o argumento central da CIA no sentido de que essas “duras tácticas de interrogatório” eram necessárias para prevenir novos ataques terroristas contra os Estados Unidos, o certo é que a estimativa do número de detidos e torturados se situa muito abaixo daquilo que outras fontes documentais permitem inferir. No Relatório, por exemplo, diz-se que “a CIA manteve detidas 119 pessoas, 26 das quais apreendidas ilegalmente”. Entretanto, é sabido que para perpetrar estas violações os direitos humanos Estados Unidos instalaram numerosas prisões secretas na Polonia, Lituânia, Roménia, Afeganistão e Tailândia; e contaram com a colaboração de países como Egipto, Síria, Líbia, Paquistão, Jordânia, Marrocos, Gambia, Somália, Uzbequistão, Etiópia e Djibouti para realizar os seus interrogatórios, ao mesmo tempo que algumas exemplares “democracias” europeias, como Áustria, Alemanha, Bélgica, Chipre, Croácia, Dinamarca, Espanha, Finlândia, Irlanda, Itália, Lituânia, Polonia, Portugal, Reino Unido, República Checa, Roménia e Suécia, bem como outros países extra-europeus, colaboraram em facilitar a entrega e a transferência de prisioneiros sabendo o que aguardava essas pessoas. [5] O número de vítimas supera largamente as 119 do Relatório. Tenha-se presente que segundo Human Rights First, uma organização não-governamental estado-unidense, o número total de detidos que passaram pela prisão de Guantánamo desde a sua inauguração é de 779 pessoas. [6] Por outro lado, um relatório especial das Nações Unidas assegura que só no Afeganistão a CIA deteve 700 pessoas, e no Iraque 18.000, todos sob a acusação de “terroristas”. [7] Nem falemos do ocorrido no campo de detenção de Abu Ghraib, tema que examinámos em detalhe no nosso livro. [8]
Para finalizar, três conclusões. Primeiro, o Relatório põe o acento na inefectividade das torturas omitindo imprescindíveis considerações de carácter ético ou político. Das vinte conclusões que são apresentadas nas primeiras páginas do Relatório só uma, a vigésima, expressa alguma preocupação marginal sobre o tema ao lamentar-se que as torturas aplicadas pela CIA “provocaram danos à imagem dos Estados Unidos no mundo ao mesmo tempo que ocasionaram significativos custos monetários e não-monetários.” [9] Não existe nenhuma reflexão sobre o que significa para um país que presume orgulhosamente de ser uma democracia - ou a mais importante democracia do mundo, segundo alguns dos seus mais entusiastas publicistas – para além de “líder do mundo livre”, incorrer em práticas monstruosas que só podem qualificar-se como próprias do terrorismo de estado ao estilo do que conhecemos no passado em América Latina e no Caribe. A tortura não degrada e destrói só a humanidade de quem a sofre; também degrada e destrói o regime político que ordena executá-la, a justifica ou a consente. Por isso é que este novo episódio demonstra, pela enésima vez, o carácter de farsa da “democracia norte-americana”. Daí que a expressão que melhor convém para retratar a sua verdadeira natureza é a de “regime plutocrático.” Regime, porque quem manda é um poder de facto, o complexo militar-financeiro-industrial que ninguém elegeu e que não presta contas a ninguém; e plutocrático, porque o conteúdo material do regime é a colusão de gigantescos interesses corporativos que são, como há dias anotou Jeffrey Sachs, quem investe centenas de milhares de milhões de dólares para financiar as campanhas e as carreiras dos políticos e dos lobbies que se movimentam a favor dos sus interesses e que logo obtêm como compensação dos seus esforços benefícios económicos de todo o tipo que se medem em milhares de milhões de dólares. Tudo esto, aliás, justificado por uma decisão do Supremo Tribunal dos Estados Unidos que legalizou os donativos ilimitados que, na sua enorme maioria, podem beneficiar de anonimato. [10]
Segundo, o Relatório abstém-se de recomendar a responsabilização legal dos responsáveis pelas monstruosidades perpetradas pela CIA. Ante uma descrição que parece inspirada nas mais horríveis cenas do Inferno de Dante, os autores abstêm-se de recomendar ao Premio Nobel da Paz que faça intervir a justiça no assunto. Mas o pacto de impunidade está consagrado, e ante a inacção da Casa Branca os torturadores e os seus numerosos cúmplices, dentro e fora da Administração Bush, saíram a apoiar abertamente as torturas e a acusar os redactores do Relatório de parcialidade ideológica, tudo esto por entre uma desaforada exaltação do chauvinismo estado-unidense e uma cuidadosa ocultação das mentiras utilizadas por Bush e sua pandilha, desde as que dizem respeito ao que foi que realmente ocorreu no 11-S, onde há mais incógnitas do que certezas, até à acusação ao Iraque de possuir armas de destruição massiva. Dado que Obama deu a entender que não processará os responsáveis materiais e intelectuais destes crimes a conclusão é que não só se legaliza mas que também se legitima e se aprova a tortura, talvez como um “mal necessário” mas justificado. Perante isto seria bom que algum tribunal do estrangeiro, actuando segundo o princípio da jurisdição universal em matéria de delitos de lesa-humanidade, tratasse de fazer justiça ali onde o regime norte-americano ampara a impunidade dos criminosos e consagra a perversão e a maldade como uma virtude.
Terceiro e último: a deplorável cumplicidade da imprensa. Todos sabiam que a CIA e outras forças especiais do Pentágono têm incorporada a tortura de prisioneiros como um SOP (“standard operating procedure”, um procedimento estandardizado de operação no jargão militar dos serviços norte-americanos), como foi dito antes. Mas os grandes media - não apenas os pasquins raivosamente direitistas da cadeia de Rupert Murdoch e muitos outros desse tipo, dentro e fora dos Estados Unidos – conspiraram, voluntariamente ou não, é irrelevante, para não chamar a coisa pelo seu nome e para utilizar em vez disso todo o género de eufemismos que permitiram suavizar a noticia e manter enganada a população norte-americana. Para o Washington Post, o New York Times e a Agência Reuters eram métodos de interrogatório “brutais”, “duros” ou “atrozes”, mas não torturas; para a cadeia televisiva CBS eram “técnicas extremas de interrogatório” e para Candy Crowley, a chefe dos correspondentes de política da CNN em Washington, eram “torturas, conforme quem as descreva”. Para o canal de noticias MSNBC (fusão da Microsoft com a NBC) eram, segundo Mika Brzezinski, filha do estratega imperial Zbigniew Brzezinski e, pelo visto, fiel discípula dos ensinamentos do seu pai, “tácticas de interrogatório utilizadas pela CIA”. É esta a gente que é depois apontada pelos políticos e pelos intelectuais da direita para nos dar lições de democracia e de liberdade de imprensa na América Latina e no Caribe. Seria bom registar a sua cumplicidade com estes crimes e a sua absoluta carência de virtudes morais para dar lições seja a quem for.
Notas
[1] O Relatório pode ser consultado no seguinte endereço: https://es.scribd.com/doc/249652086/Senate-Torture-Report
[2] Cf. Atilio A. Boron e Andrea Vlahusic, El Lado Oscuro del Imperio. La Violación de los Derechos Humanos por Estados Unidos (Buenos Aires: Ediciones Luxemburg, 2009), pp. 43-44.
[3] Ibid., p. 44.
[4] Sobre o tema da tortura o livro de Roberto Montoya, La impunidad imperial. Como os Estados Unidos legalizaram a tortura e “blindaram” os seus militares, agentes e mercenários face à justiça (Madrid: La esfera de los libros, 2005) é uma fonte absolutamente imprescindível pela meticulosidade da sua investigação e a sólida fundamentação dos casos examinados. Particularmente instrutiva é a sua análise das 35 “técnicas de interrogatório”, as quais, como dizem os membros de uma Comissão ad-hoc convocada pelo Secretario da Defesa Donald Rumsfeld, poderiam ter como resultado “que pessoal estado-unidense envolvido no uso dessas técnicas pudesse ser em outros países objecto de processos por violação dos direitos humanos ou que pudesse ser entregue a instâncias internacionais, como o Tribunal Penal Internacional. Isto teria impacto em futuras operações ou deslocações ao exterior desse pessoal.” Cf. Montoya, op. cit, pp. 130-134. Dados mais específicos sobre as “técnicas de interrogatório” encontram-se em http://globalsecurity.org/intell/library/policy/army/fm/fm34-52
[5] “¿Que países colaboraram com o programa de torturas da CIA”, relatório elaborado sobre a base de documentação recolhida pela American Civil Liberties Union e pela Open Society Justice Initiative, e publicado por La Nación (Buenos Aires) em 10 de Dezembro de 2014. Ver http://www.lanacion.com.ar/1751052-que-paises-colaboraron-con-el-programa-de-torturas-de-la-cia
[6] http://www.humanrightsfirst.org/sites/default/files/gtmo-by-the-numbers-2014-11-24.pdf
[7] Cf. “Preliminary Findings on Visit to United States by Special Rapporteur on Human Rights and Counter-terrorism”, May 29, 2007, em El Lado Oscuro, op. cit., pp. 55-56.
[8] El lado oscuro, op. cit., pp. 47-48
[9] Relatório, op. cit., pg.16.
[10] “Understanding and overcoming America’s plutocracy”, Huffington Post, 6 Novembro 2014.http://www.huffingtonpost.com/jeffrey-sachs/understanding-and-overcom_b_6113618.html
O Relatório é susceptível de múltiplas leituras, que animarão seguramente um significativo debate. Para começar digamos que o simples facto da sua publicação produz um dano irreparável para a pretensão estado-unidense de se erigir em campeão dos direitos humanos, sendo que uma agência do governo, com linha directa para a Presidência, perpetrou estas atrocidades ao longo de vários anos com o aval – caso de George W. Bush - ou a displicente indiferença do seu sucessor na Casa Branca.
Obviamente, se já antes os Estados Unidos careciam de autoridade moral para julgar terceiros países por presumíveis violações dos direitos humanos, depois da publicação deste Relatório o que Barack Obama deveria fazer seria pedir perdão à comunidade internacional (coisa que desde logo não fará, ou não o deixarão fazer, como o demonstrou o escândalo da espionagem às comunicações), interromper definitivamente a publicação dos relatórios anuais sobre a situação dos direitos humanos e do combate al terrorismo onde se qualifica o comportamento de todos os países do mundo (excepto os Estados Unidos, juiz infalível que não pode ser julgado) e assegurar-se de que práticas tipificadas como torturas pelo Relatório senatorial não apenas não voltarão a ser utilizadas pela CIA ou pelas forças regulares do Pentágono como também pelo número crescente de mercenários alistados para defender os interesses do império, o que igualmente não tem demasiada probabilidade de ocorrer.
Precisamente, a ideia de nutrir cada vez mais as forças do Pentágono com mercenários recrutados pelos seus aliados no Golfo Pérsico (Arabia Saudita, Emiratos, Qatar, etc.) ou por companhias especializadas, como Academi (a tenebrosa ex Blackwater) é libertar o governo dos Estados Unidos de qualquer responsabilidade por violações dos direitos humanos que estes “contratistas”, como eufemisticamente são denominados, possam cometer. Ao “terceirizar” deste modo as suas operações militares no exterior a aplicação de torturas contra presumíveis, ou verdadeiros, terroristas realiza-se à margem do que a Convenção de Genebra estipula, ao estabelecer que os prisioneiros de guerra devem ter garantias jurídicas de defesa e ser tratados de modo humanitário. Os mercenários ou “contratistas”, pelo contrário, são bandos contratados por Washington para operações especiais, actuando à margem de qualquer lei. Não têm prisioneiros mas “detidos”, que podem manter sob custódia todo o tempo que considerem necessário, negando-lhes o direito à defesa e deixando-os à mercê dos maus-tratos ou das torturas que os seus captores decidam aplicar-lhes, gozando para isso de total impunidade.
Em segundo lugar, o relatório evita considerar que a tortura foi legalizada pelo Presidente George W. Bush. Tal como apontámos num estudo publicado em 2009, a tortura como uma prática habitual vinha sendo utilizada desde há muito tempo pela CIA e outras agências do governo federal. No referido texto dizíamos que “a partir dos atentados de 11 de Setembro e da nova doutrina estratégica estabelecida pelo presidente George W. Bush no ano seguinte (“guerra contra o terrorismo”, “guerra infinita”, etc.) as torturas a prisioneiros, sejam estes supostos combatentes inimigos ou simples suspeitos, tornaram-se prática habitual nos interrogatórios, tal como também os tratos desumanos ou degradantes infligidos às pessoas sob custódia das tropas estado-unidenses. A fim de evitar as consequências legais que decorrem desta situação Washington adoptou como uma das suas políticas a transferência dos seus prisioneiros para prisões situadas em países onde a tortura é legal ou nos quais as autoridades não têm interesse algum em impedi-la, sobretudo se se trata de favorecer os planos estado-unidenses; ou enviá-los para o Afeganistão, Iraque ou a própria base norte-americana de Guantánamo, onde se pode interrogar brutalmente qualquer prisioneiro sem qualquer tipo de acompanhamento judicial e sem a presença de observadores incómodos como, por exemplo, a Cruz Vermelha Internacional.” [2]
Para assombro de próprios e alheios, mesmo depois de ter sido dado a conhecer o Relatório do Senado o porta-voz da Casa Branca fez apelo a ridículos eufemismos quando transmitiu o repúdio do presidente Obama pelo que nele é revelado: condenou os “duros e atrozes interrogatórios” praticados pela CIA, evitando utilizar o termo correcto para definir o que segundo a Convenção Contra a Tortura e outros Tratos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes é pura e simplesmente isso: tortura. No seu artigo primeiro a Convenção estabelece que “Se entenderá pelo termo ‘tortura’ todo acto pelo qual se inflija intencionadamente a uma pessoa dores ou sofrimentos graves, sejam físicos ou mentais, com o fim de obter dela ou de um terceiro informação ou uma confissão; de a castigar por um acto que haja cometido, ou se suspeite que tenha cometido; ou de intimidar ou coagir essa pessoa ou outras, ou por qualquer razão baseada em qualquer tipo de discriminação, quando as referidas dores ou sofrimentos sejam infligidos por um funcionário público ou outra pessoa em exercício de funções públicas, sob instigação sua, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerarão torturas as dores ou sofrimento que sejam consequência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes ou decorrentes destas.” [3]
De acordo com esta definição é impossível sustentar que práticas tais como a “reidratação rectal”, a “hipotermia”, a “alimentação rectal”, suspender a vítima de uma barra, ameaçar violar a sua esposa ou filhas, a proibição de dormir ou o “submarino” (“waterboarding”, como se lhe chama em inglês) aplicadas cruelmente durante horas y dias para interrogar suspeitos de terrorismo não constituem flagrantes casos de tortura. [4]
Não obstante tudo isto, em Março de 2008 o presidente Bush vetou uma lei do Congresso que proibia a aplicação do “submarino” a presumíveis terroristas, dando cumprimento a um anúncio prévio no qual advertia que vetaria qualquer peça legislativa que impusesse limitações ao uso da tortura como método válido e legal de interrogatório. Em resposta aos seus críticos a Casa Branca disse que seria absurdo obrigar a CIA a respeitar os preceitos estabelecidos pela legislação internacional porque os seus agentes não se confrontavam com combatentes legais, forças regulares de um estado operando em conformidade com os princípios tradicionais, mas com terroristas que actuam com total desprezo por qualquer norma ética. Deste modo Bush e a sua pandilha tentaram justificar a violação permanente dos direitos humanos sob o pretexto do “combate ao terrorismo”. Não apenas isso: o seu Secretario da Defesa, Donald Rumsfeld, autorizou explicitamente em Dezembro de 2002 a utilização de pelo menos nove “técnicas de interrogatório” que só em virtude de um perverso eufemismo podem deixar de ser qualificadas como torturas. O interessante do caso é que os Estados Unidos aderiram em 1994 à citada Convenção (que conta com 145 estados participantes) mas tratou cuidadosamente de não ratificar o Protocolo que outorga faculdades de controlo ao Comité da Tortura das Nações Unidas. Por outras palavras, a simples adesão à Convenção foi uma jogada demagógica, carente de consequências práticas na luta contra a tortura.
O horror que o Relatório desperta não deveria levar-nos a pensar que ali se encontra toda a verdade. Embora destrua o argumento central da CIA no sentido de que essas “duras tácticas de interrogatório” eram necessárias para prevenir novos ataques terroristas contra os Estados Unidos, o certo é que a estimativa do número de detidos e torturados se situa muito abaixo daquilo que outras fontes documentais permitem inferir. No Relatório, por exemplo, diz-se que “a CIA manteve detidas 119 pessoas, 26 das quais apreendidas ilegalmente”. Entretanto, é sabido que para perpetrar estas violações os direitos humanos Estados Unidos instalaram numerosas prisões secretas na Polonia, Lituânia, Roménia, Afeganistão e Tailândia; e contaram com a colaboração de países como Egipto, Síria, Líbia, Paquistão, Jordânia, Marrocos, Gambia, Somália, Uzbequistão, Etiópia e Djibouti para realizar os seus interrogatórios, ao mesmo tempo que algumas exemplares “democracias” europeias, como Áustria, Alemanha, Bélgica, Chipre, Croácia, Dinamarca, Espanha, Finlândia, Irlanda, Itália, Lituânia, Polonia, Portugal, Reino Unido, República Checa, Roménia e Suécia, bem como outros países extra-europeus, colaboraram em facilitar a entrega e a transferência de prisioneiros sabendo o que aguardava essas pessoas. [5] O número de vítimas supera largamente as 119 do Relatório. Tenha-se presente que segundo Human Rights First, uma organização não-governamental estado-unidense, o número total de detidos que passaram pela prisão de Guantánamo desde a sua inauguração é de 779 pessoas. [6] Por outro lado, um relatório especial das Nações Unidas assegura que só no Afeganistão a CIA deteve 700 pessoas, e no Iraque 18.000, todos sob a acusação de “terroristas”. [7] Nem falemos do ocorrido no campo de detenção de Abu Ghraib, tema que examinámos em detalhe no nosso livro. [8]
Para finalizar, três conclusões. Primeiro, o Relatório põe o acento na inefectividade das torturas omitindo imprescindíveis considerações de carácter ético ou político. Das vinte conclusões que são apresentadas nas primeiras páginas do Relatório só uma, a vigésima, expressa alguma preocupação marginal sobre o tema ao lamentar-se que as torturas aplicadas pela CIA “provocaram danos à imagem dos Estados Unidos no mundo ao mesmo tempo que ocasionaram significativos custos monetários e não-monetários.” [9] Não existe nenhuma reflexão sobre o que significa para um país que presume orgulhosamente de ser uma democracia - ou a mais importante democracia do mundo, segundo alguns dos seus mais entusiastas publicistas – para além de “líder do mundo livre”, incorrer em práticas monstruosas que só podem qualificar-se como próprias do terrorismo de estado ao estilo do que conhecemos no passado em América Latina e no Caribe. A tortura não degrada e destrói só a humanidade de quem a sofre; também degrada e destrói o regime político que ordena executá-la, a justifica ou a consente. Por isso é que este novo episódio demonstra, pela enésima vez, o carácter de farsa da “democracia norte-americana”. Daí que a expressão que melhor convém para retratar a sua verdadeira natureza é a de “regime plutocrático.” Regime, porque quem manda é um poder de facto, o complexo militar-financeiro-industrial que ninguém elegeu e que não presta contas a ninguém; e plutocrático, porque o conteúdo material do regime é a colusão de gigantescos interesses corporativos que são, como há dias anotou Jeffrey Sachs, quem investe centenas de milhares de milhões de dólares para financiar as campanhas e as carreiras dos políticos e dos lobbies que se movimentam a favor dos sus interesses e que logo obtêm como compensação dos seus esforços benefícios económicos de todo o tipo que se medem em milhares de milhões de dólares. Tudo esto, aliás, justificado por uma decisão do Supremo Tribunal dos Estados Unidos que legalizou os donativos ilimitados que, na sua enorme maioria, podem beneficiar de anonimato. [10]
Segundo, o Relatório abstém-se de recomendar a responsabilização legal dos responsáveis pelas monstruosidades perpetradas pela CIA. Ante uma descrição que parece inspirada nas mais horríveis cenas do Inferno de Dante, os autores abstêm-se de recomendar ao Premio Nobel da Paz que faça intervir a justiça no assunto. Mas o pacto de impunidade está consagrado, e ante a inacção da Casa Branca os torturadores e os seus numerosos cúmplices, dentro e fora da Administração Bush, saíram a apoiar abertamente as torturas e a acusar os redactores do Relatório de parcialidade ideológica, tudo esto por entre uma desaforada exaltação do chauvinismo estado-unidense e uma cuidadosa ocultação das mentiras utilizadas por Bush e sua pandilha, desde as que dizem respeito ao que foi que realmente ocorreu no 11-S, onde há mais incógnitas do que certezas, até à acusação ao Iraque de possuir armas de destruição massiva. Dado que Obama deu a entender que não processará os responsáveis materiais e intelectuais destes crimes a conclusão é que não só se legaliza mas que também se legitima e se aprova a tortura, talvez como um “mal necessário” mas justificado. Perante isto seria bom que algum tribunal do estrangeiro, actuando segundo o princípio da jurisdição universal em matéria de delitos de lesa-humanidade, tratasse de fazer justiça ali onde o regime norte-americano ampara a impunidade dos criminosos e consagra a perversão e a maldade como uma virtude.
Terceiro e último: a deplorável cumplicidade da imprensa. Todos sabiam que a CIA e outras forças especiais do Pentágono têm incorporada a tortura de prisioneiros como um SOP (“standard operating procedure”, um procedimento estandardizado de operação no jargão militar dos serviços norte-americanos), como foi dito antes. Mas os grandes media - não apenas os pasquins raivosamente direitistas da cadeia de Rupert Murdoch e muitos outros desse tipo, dentro e fora dos Estados Unidos – conspiraram, voluntariamente ou não, é irrelevante, para não chamar a coisa pelo seu nome e para utilizar em vez disso todo o género de eufemismos que permitiram suavizar a noticia e manter enganada a população norte-americana. Para o Washington Post, o New York Times e a Agência Reuters eram métodos de interrogatório “brutais”, “duros” ou “atrozes”, mas não torturas; para a cadeia televisiva CBS eram “técnicas extremas de interrogatório” e para Candy Crowley, a chefe dos correspondentes de política da CNN em Washington, eram “torturas, conforme quem as descreva”. Para o canal de noticias MSNBC (fusão da Microsoft com a NBC) eram, segundo Mika Brzezinski, filha do estratega imperial Zbigniew Brzezinski e, pelo visto, fiel discípula dos ensinamentos do seu pai, “tácticas de interrogatório utilizadas pela CIA”. É esta a gente que é depois apontada pelos políticos e pelos intelectuais da direita para nos dar lições de democracia e de liberdade de imprensa na América Latina e no Caribe. Seria bom registar a sua cumplicidade com estes crimes e a sua absoluta carência de virtudes morais para dar lições seja a quem for.
Notas
[1] O Relatório pode ser consultado no seguinte endereço: https://es.scribd.com/doc/249652086/Senate-Torture-Report
[2] Cf. Atilio A. Boron e Andrea Vlahusic, El Lado Oscuro del Imperio. La Violación de los Derechos Humanos por Estados Unidos (Buenos Aires: Ediciones Luxemburg, 2009), pp. 43-44.
[3] Ibid., p. 44.
[4] Sobre o tema da tortura o livro de Roberto Montoya, La impunidad imperial. Como os Estados Unidos legalizaram a tortura e “blindaram” os seus militares, agentes e mercenários face à justiça (Madrid: La esfera de los libros, 2005) é uma fonte absolutamente imprescindível pela meticulosidade da sua investigação e a sólida fundamentação dos casos examinados. Particularmente instrutiva é a sua análise das 35 “técnicas de interrogatório”, as quais, como dizem os membros de uma Comissão ad-hoc convocada pelo Secretario da Defesa Donald Rumsfeld, poderiam ter como resultado “que pessoal estado-unidense envolvido no uso dessas técnicas pudesse ser em outros países objecto de processos por violação dos direitos humanos ou que pudesse ser entregue a instâncias internacionais, como o Tribunal Penal Internacional. Isto teria impacto em futuras operações ou deslocações ao exterior desse pessoal.” Cf. Montoya, op. cit, pp. 130-134. Dados mais específicos sobre as “técnicas de interrogatório” encontram-se em http://globalsecurity.org/intell/library/policy/army/fm/fm34-52
[5] “¿Que países colaboraram com o programa de torturas da CIA”, relatório elaborado sobre a base de documentação recolhida pela American Civil Liberties Union e pela Open Society Justice Initiative, e publicado por La Nación (Buenos Aires) em 10 de Dezembro de 2014. Ver http://www.lanacion.com.ar/1751052-que-paises-colaboraron-con-el-programa-de-torturas-de-la-cia
[6] http://www.humanrightsfirst.org/sites/default/files/gtmo-by-the-numbers-2014-11-24.pdf
[7] Cf. “Preliminary Findings on Visit to United States by Special Rapporteur on Human Rights and Counter-terrorism”, May 29, 2007, em El Lado Oscuro, op. cit., pp. 55-56.
[8] El lado oscuro, op. cit., pp. 47-48
[9] Relatório, op. cit., pg.16.
[10] “Understanding and overcoming America’s plutocracy”, Huffington Post, 6 Novembro 2014.http://www.huffingtonpost.com/jeffrey-sachs/understanding-and-overcom_b_6113618.html
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E eu acrescento: os atentados de 11.9 foram cometidos pelos próprios americanos. As torres gêmeas foram atingidas por aviões teleguiados (não, não foram aviões sequestrados) e em seguida, implodidas, e o Pentágono foi atingido por um míssil (tomahawk, talvez). Mas nossa mídia insiste em contar a versão mentirosa do governo americano, de que o responsável por aquele crime absurdo contra a Humanidade foi cometido por terroristas liderados por Osama Bin Laden. Tanta mentira, tanta gente sendo enganada por essa imprensa vendida a interesses econômicos, que manipula e sonega informação e impostos. Vejam o documentário: "A grande farsa dos atentados de 11.9 - RTP-2, traduzido pela TV portuguesa do original "Loose Change", feito pelos próprios americanos. Este crime absurdo nossa imprensa esconde até hoje da população. Isto é muito grave!
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