Por Rodrigo Martins, na revista CartaCapital:
Após algumas sessões marcadas por protestos, bate-bocas e intensa troca de acusações, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aprovou na terça-feira 31 a admissibilidade da proposta de emenda à Constituição que reduz de 18 para 16 anos a maioridade penal no Brasil. Agora, a discussão caminha para uma comissão especial, que terá cerca de três meses para debater iniciativas similares e consolidar um relatório a ser votado no plenário. Entre as sugestões, há toda sorte de “soluções”, da responsabilização de adolescentes apenas em caso de crimes contra a vida à espantosa proposta de baixar o limite de idade para 12 anos.
O debate sobre o tema ocorre há mais de duas décadas na Câmara, mas a tramitação desses projetos sempre foi travada por deputados ligados aos direitos humanos. Segundo juristas de diferentes matizes ideológicos, a responsabilização a partir dos 18 anos é cláusula pétrea da Constituição. Mesmo assim, a proposta foi reavivada pela chamada Bancada da Bala, que não teve dificuldade para angariar o apoio de parlamentares evangélicos e ruralistas. PSDB, DEM, PSD, PRB, Solidariedade, PSC e parcelas do PMDB asseguraram a vitória do grupo. Às vésperas da votação, a deputada petista Erika Kokay previa o pior. “Há uma forte aliança dos setores conservadores na Câmara. Há tempos tenho alertado sobre a força dos fundamentalistas da ‘Bancada BBB’, da Bíblia, do Boi e da Bala”, diz. “Agora, eles estão ainda mais unidos e articulados.”
O termo “BBB” foi usado por Kokay pela primeira vez em uma reunião da bancada do PT na Câmara no início do ano, e arrancou risadas dos colegas. A expressão não tardou a se difundir entre parlamentares de partidos de esquerda, que também identificam nessa articulação uma ameaça aos direitos humanos e das minorias. “Desde a discussão do Código Florestal, em 2012, os ruralistas buscam essa aproximação com os evangélicos. Logo depois, eles estavam unidos em torno da PEC 215, que retira do Executivo a prerrogativa de demarcar Terras Indígenas, transferindo-a para o Congresso. Mais recentemente agregaram a Bancada da Bala”, afirma o deputado Ivan Valente, do PSOL. “Com Eduardo Cunha na presidência da Câmara, essa aliança consolidou-se. Até porque esses grupos ajudaram a elegê-lo.”
Nos últimos anos, a esquerda recorreu a manobras de obstrução para barrar iniciativas como a revogação do Estatuto do Desarmamento ou a aprovação do Estatuto da Família, que restringe a definição de núcleo familiar à união entre um homem e uma mulher, forma de impedir a adoção de crianças por casais gays. No caso da PEC 215, contaram ainda com a mobilização dos povos indígenas, que chegaram a ocupar o Plenário da Câmara para resistir às mudanças nas demarcações. Um Congresso de perfil mais conservador torna, porém, mais difícil evitar essa onda.
A ofensiva conservadora começou pela área de segurança. Na quinta-feira 26, a Câmara aprovou um projeto que eleva a pena para crimes cometidos contra policiais, agentes carcerários, militares e bombeiros em exercício da função. No dia anterior, o plenário havia aprovado outra proposta que dificulta a concessão de liberdade condicional aos condenados por crimes hediondos.
A investida mobilizou diferentes setores da sociedade civil. “Sabemos que logo mais essa onda pode afogar os direitos indígenas, até porque a PEC 215 foi desarquivada”, avalia Cleber Buzatto, secretário-executivo do Conselho Missionário Indigenista. “Em abril, teremos novo acampamento em Brasília, com mais de mil lideranças indígenas.” Na avaliação de Kokay, a aliança BBB vai muito além da estratégia de apoiar a pauta alheia para fortalecer a sua própria. “Na verdade, todos eles compartilham da mesma ideologia, unem-se na defesa da sociedade patrimonialista e patriarcal.”
Somados, os BBB dispõem de 40% dos votos da Câmara, mas são capazes de formar maioria com tranquilidade, diz André Luís dos Santos, do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). “Eles não têm dificuldade para angariar apoio de outros blocos, até por ocuparem postos-chave na estrutura de poder da Casa.” Nessa frente, a ala mais numerosa é a ruralista, formada por 109 deputados e 17 senadores, segundo a “Radiografia do Novo Congresso”, atualizada a cada nova legislatura pelo Diap. Após Kátia Abreu assumir o Ministério da Agricultura, o oposicionista Ronaldo Caiado, do DEM, emergiu como uma das principais referências da chamada Bancada do Boi no Senado. Campeão de votos no Rio Grande do Sul, Luis Carlos Heinze, doPP, mantém a liderança do grupo na Câmara.
A Bancada da Bíblia, por sua vez, aumentou de 73 para 75 o número de deputados eleitos, além de preservar três senadores, registra o Diap. O pastor Marco Feliciano, do PSC, quase dobrou a quantidade de votos obtidos de 2010 para 2014, e segue como uma referência importante. Mas é o peemedebista Eduardo Cunha, fiel da Igreja Sara Nossa Terra, quem ocupa o palco, por definir o que entra ou não na pauta da Câmara.
Cunha reveza-se entre pautas folclóricas, entre elas a criação do “Dia do Orgulho Hétero”, e iniciativas mais retrógradas, a começar pela intenção de proibir o aborto até em casos previstos em lei, como estupro e gravidez de risco. “É difícil ter uma agenda do século XXI com o presidente da Câmara patrocinando esse tipo de projeto”, lamenta a deputada Jandira Feghali, líder do PCdoB.
Completam o time dos BBB ao menos 22 deputados defensores da redução da maioridade, do fim das penas alternativas e da permissão do porte de arma para todo cidadão, revela o Diap. Um expoente da Bancada da Bala é Jair Bolsonaro (PP-RJ), capitão da reserva do Exército, e Alberto Fraga (DEM-DF), coronel reformado da Polícia Militar e líder da Frente Parlamentar de Segurança Pública, representada pelo desenho de duas pistolas sobrespostas à silhueta do Congresso Nacional. Na terça-feira 31, Bolsonaro celebrou pelas redes sociais a vitória na CCJ da Câmara e o aniversário do golpe de 1964. Debochado, posou para fotos após estender uma faixa sobre o gramado do Parlamento: “Parabéns, militares. Graças a vocês o Brasil não é Cuba”.
Apoiada por nove em cada dez brasileiros, segundo diferentes pesquisas, a redução da maioridade penal enfrenta a oposição de importantes entidades, entre elas a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a Ordem dos Advogados do Brasil e a Associação Juízes pela Democracia. O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime também é contra. “É importante levar em conta que homicídios cometidos por adolescentes representam menos de 1% do total, enquanto mais de 36% das vítimas de homicídios no Brasil são adolescentes”, anota a agência da ONU.
Na prática, o encarceramento de menores em cadeias comuns tende a agravar o problema de superlotação no sistema prisional, hoje com um déficit de 200 mil vagas. Segundo o último levantamento feito pelo Conselho Nacional de Justiça, o País possui mais de 715 mil presos, dos quais apenas 148 mil estão em regime domiciliar. É a quarta maior população carcerária do mundo, atrás apenas de EUA, China e Rússia. Tampouco existem evidências de que o rebaixamento da idade penal seja capaz de reduzir os índices de criminalidade, observa o historiador Douglas Belchior, militante do Movimento Negro e integrante do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. “Ao contrário, o ingresso antecipado no falido sistema prisional aumenta as chances de reincidência, uma vez que as taxas nas penitenciárias são de 70%, enquanto no sistema socioeducativo estão abaixo de 20%.”
O debate sobre o tema ocorre há mais de duas décadas na Câmara, mas a tramitação desses projetos sempre foi travada por deputados ligados aos direitos humanos. Segundo juristas de diferentes matizes ideológicos, a responsabilização a partir dos 18 anos é cláusula pétrea da Constituição. Mesmo assim, a proposta foi reavivada pela chamada Bancada da Bala, que não teve dificuldade para angariar o apoio de parlamentares evangélicos e ruralistas. PSDB, DEM, PSD, PRB, Solidariedade, PSC e parcelas do PMDB asseguraram a vitória do grupo. Às vésperas da votação, a deputada petista Erika Kokay previa o pior. “Há uma forte aliança dos setores conservadores na Câmara. Há tempos tenho alertado sobre a força dos fundamentalistas da ‘Bancada BBB’, da Bíblia, do Boi e da Bala”, diz. “Agora, eles estão ainda mais unidos e articulados.”
O termo “BBB” foi usado por Kokay pela primeira vez em uma reunião da bancada do PT na Câmara no início do ano, e arrancou risadas dos colegas. A expressão não tardou a se difundir entre parlamentares de partidos de esquerda, que também identificam nessa articulação uma ameaça aos direitos humanos e das minorias. “Desde a discussão do Código Florestal, em 2012, os ruralistas buscam essa aproximação com os evangélicos. Logo depois, eles estavam unidos em torno da PEC 215, que retira do Executivo a prerrogativa de demarcar Terras Indígenas, transferindo-a para o Congresso. Mais recentemente agregaram a Bancada da Bala”, afirma o deputado Ivan Valente, do PSOL. “Com Eduardo Cunha na presidência da Câmara, essa aliança consolidou-se. Até porque esses grupos ajudaram a elegê-lo.”
Nos últimos anos, a esquerda recorreu a manobras de obstrução para barrar iniciativas como a revogação do Estatuto do Desarmamento ou a aprovação do Estatuto da Família, que restringe a definição de núcleo familiar à união entre um homem e uma mulher, forma de impedir a adoção de crianças por casais gays. No caso da PEC 215, contaram ainda com a mobilização dos povos indígenas, que chegaram a ocupar o Plenário da Câmara para resistir às mudanças nas demarcações. Um Congresso de perfil mais conservador torna, porém, mais difícil evitar essa onda.
A ofensiva conservadora começou pela área de segurança. Na quinta-feira 26, a Câmara aprovou um projeto que eleva a pena para crimes cometidos contra policiais, agentes carcerários, militares e bombeiros em exercício da função. No dia anterior, o plenário havia aprovado outra proposta que dificulta a concessão de liberdade condicional aos condenados por crimes hediondos.
A investida mobilizou diferentes setores da sociedade civil. “Sabemos que logo mais essa onda pode afogar os direitos indígenas, até porque a PEC 215 foi desarquivada”, avalia Cleber Buzatto, secretário-executivo do Conselho Missionário Indigenista. “Em abril, teremos novo acampamento em Brasília, com mais de mil lideranças indígenas.” Na avaliação de Kokay, a aliança BBB vai muito além da estratégia de apoiar a pauta alheia para fortalecer a sua própria. “Na verdade, todos eles compartilham da mesma ideologia, unem-se na defesa da sociedade patrimonialista e patriarcal.”
Somados, os BBB dispõem de 40% dos votos da Câmara, mas são capazes de formar maioria com tranquilidade, diz André Luís dos Santos, do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). “Eles não têm dificuldade para angariar apoio de outros blocos, até por ocuparem postos-chave na estrutura de poder da Casa.” Nessa frente, a ala mais numerosa é a ruralista, formada por 109 deputados e 17 senadores, segundo a “Radiografia do Novo Congresso”, atualizada a cada nova legislatura pelo Diap. Após Kátia Abreu assumir o Ministério da Agricultura, o oposicionista Ronaldo Caiado, do DEM, emergiu como uma das principais referências da chamada Bancada do Boi no Senado. Campeão de votos no Rio Grande do Sul, Luis Carlos Heinze, doPP, mantém a liderança do grupo na Câmara.
A Bancada da Bíblia, por sua vez, aumentou de 73 para 75 o número de deputados eleitos, além de preservar três senadores, registra o Diap. O pastor Marco Feliciano, do PSC, quase dobrou a quantidade de votos obtidos de 2010 para 2014, e segue como uma referência importante. Mas é o peemedebista Eduardo Cunha, fiel da Igreja Sara Nossa Terra, quem ocupa o palco, por definir o que entra ou não na pauta da Câmara.
Cunha reveza-se entre pautas folclóricas, entre elas a criação do “Dia do Orgulho Hétero”, e iniciativas mais retrógradas, a começar pela intenção de proibir o aborto até em casos previstos em lei, como estupro e gravidez de risco. “É difícil ter uma agenda do século XXI com o presidente da Câmara patrocinando esse tipo de projeto”, lamenta a deputada Jandira Feghali, líder do PCdoB.
Completam o time dos BBB ao menos 22 deputados defensores da redução da maioridade, do fim das penas alternativas e da permissão do porte de arma para todo cidadão, revela o Diap. Um expoente da Bancada da Bala é Jair Bolsonaro (PP-RJ), capitão da reserva do Exército, e Alberto Fraga (DEM-DF), coronel reformado da Polícia Militar e líder da Frente Parlamentar de Segurança Pública, representada pelo desenho de duas pistolas sobrespostas à silhueta do Congresso Nacional. Na terça-feira 31, Bolsonaro celebrou pelas redes sociais a vitória na CCJ da Câmara e o aniversário do golpe de 1964. Debochado, posou para fotos após estender uma faixa sobre o gramado do Parlamento: “Parabéns, militares. Graças a vocês o Brasil não é Cuba”.
Apoiada por nove em cada dez brasileiros, segundo diferentes pesquisas, a redução da maioridade penal enfrenta a oposição de importantes entidades, entre elas a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a Ordem dos Advogados do Brasil e a Associação Juízes pela Democracia. O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime também é contra. “É importante levar em conta que homicídios cometidos por adolescentes representam menos de 1% do total, enquanto mais de 36% das vítimas de homicídios no Brasil são adolescentes”, anota a agência da ONU.
Na prática, o encarceramento de menores em cadeias comuns tende a agravar o problema de superlotação no sistema prisional, hoje com um déficit de 200 mil vagas. Segundo o último levantamento feito pelo Conselho Nacional de Justiça, o País possui mais de 715 mil presos, dos quais apenas 148 mil estão em regime domiciliar. É a quarta maior população carcerária do mundo, atrás apenas de EUA, China e Rússia. Tampouco existem evidências de que o rebaixamento da idade penal seja capaz de reduzir os índices de criminalidade, observa o historiador Douglas Belchior, militante do Movimento Negro e integrante do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. “Ao contrário, o ingresso antecipado no falido sistema prisional aumenta as chances de reincidência, uma vez que as taxas nas penitenciárias são de 70%, enquanto no sistema socioeducativo estão abaixo de 20%.”
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