terça-feira, 17 de outubro de 2017

Mídia sustenta o golpe e agrava a crise

Foto: Anderson Bahia
Por Felipe Bianchi, no site do Centro de Estudos Barão de Itararé:

O papel da mídia na crise política pela qual passa o país foi tema de discussão na noite desta segunda-feira (16), em São Paulo. Os jornalistas Eleonora de Lucena, Rodrigo Vianna e Inácio Carvalho participaram da mesa de abertura de Ciclo de Debates promovido pelo Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé durante a Semana Nacional pela Democratização da Comunicação que, neste ano, ocorre entre 15 e 21 de outubro.

Ao longo do bate-papo, os jornalistas traçaram um panorama histórico da atuação da mídia monopolista no Brasil, a fim de lançar luz sobre como esses atores desempenharam papel crucial no golpe judicial, parlamentar e, sobretudo, midiático que alçou Michel Temer à cadeira presidencial em 2016. Além disso, também foi discutido, além do que une os donos da mídia no país, o que os divide, apontando caminhos e desafios para superar a hegemonia de um monopólio que atenta, historicamente, contra a democracia.

De acordo com Eleonora Lucena, basta observar a história do país para concluir que os grandes meios de comunicação agem como instrumento de guerra. Não é possível, segundo a ex-editora-executiva da Folha de S. Paulo, pensar a mídia fora do contexto político e nem a política sem a mídia. “Em todas as crises do país, a mídia teve papel central. É um instrumento de guerra política”, opina.

A jornalista evoca exemplos como o clima insuflado pelos meios de comunicação em 1954, marcado pela expressão “mar de lama”, que culminou, em última instância, no suicídio de Getúlio Vargas. Uma década depois, outra grave crise teve a mídia como uma de suas protagonistas: a queda de João Goulart e a ascensão dos militares ao poder. “Praticamente todos os jornais se alinharam ao golpe de 1964”, recorda a jornalista. Pelo menos até 1968, quando foi editado o Ato Institucional Número Cinco (AI-5), que institucionalizou a censura e o terror, a imprensa foi um dos principais sustentáculos do regime.

O período da redemocratização, na avaliação de Lucena, é um marco no cenário midiático. “Conquista histórica, o restabelecimento da democracia significou também a fragmentação dos meios de comunicação no campo político. As iniciativas de mídia alternativa acabaram sucumbindo em meio à crise da época e a televisão foi referendada como o instrumento midiático mais poderoso no país”.

O emblemático episódio da edição do debate presidencial entre Fernando Collor e Lula, em 1989, pela Rede Globo, não só ilustra mais um capítulo dessa trajetória, como aponta para uma guinada dos barões da mídia que ajuda a entendermos o momento presente: a partir dali, sublinha Lucena, os meios de comunicação aderiram em peso ao receituário neoliberal. A consequência da opção implica na oposição sistemática desses barões da mídia a governos progressistas que surgem no Brasil e no continente.

Conforme avalia a jornalista, a corrupção é o tema eleito pela mídia como pauta prioritária. Ao realizar cobertura ostensiva sobre o tema, mas de forma seletiva, a imprensa elege seus alvos a fim de impor a agenda que atende aos interesses de seus proprietários. “A fúria da imprensa contra a esquerda tem a ver com a reestruturação do campo capitalista no mundo inteiro”, analisa, remontando à brutal crise sistêmica que explodiu em 2008.

A intensificação do partidarismo midiático tem a ver com o que a jornalista descreve como falência do capitalismo em promover melhorias na qualidade de vida das massas, o que poda as perspectivas de ascensão e corrói a esperança de que as coisas mudem. “A mídia ecoa e serve de instrumento para forçar essa guinada reestruturante do capital: extrair dos fundos públicos, do Estado, para engordar a concentração dos mais ricos”. Para aplicar esse projeto, é fundamental eliminar as vozes dissonantes: “Você olha a TV, os jornais, as rádios e não acha o contraditório. Não há pluralidade de visões. Há hegemonia de uma única perspectiva”.

O contraponto potencializado pela Internet e as mídias sociais provocaram mudanças nesse mercado, aponta Lucena. Mas à medida que abre espaço para outras vozes, também vem se constituindo como terreno fértil para a intolerância, o ódio e uma avassaladora onda de mentiras. “O que fica claro é que o ambiente da Internet, assim como em todas as mídias, não é neutro. Governos, empresas e corporações manipulam o que a gente lê, curte e compartilha, o que tem influência decisiva na tomada de atitude e decisões políticas da população”.

Os setores populares, que englobam partidos, movimentos sociais e ativistas, precisam entender, na opinião de Lucena, a importância central da mídia e da comunicação para reverter esse quadro. “Não é que se precisa de um jornalista, de uma secretaria de mídia. É que a mídia, a comunicação, é central. O desafio é parar de chorar sobre a mídia hegemônica e pensar como construir uma mídia com capacidade de análise, de crítica, de informação, despida de doutrinarismo. Uma mídia que construa uma outra visão de mundo, com qualidade e alcance”.

O ovo da serpente: o ódio se vira contra quem o insuflou

Para o jornalista Rodrigo Vianna, os grandes meios de comunicação foram os grandes responsáveis por chocar o ovo da serpente que desaguou na onda de intolerância ultraconservadora. Agora, as serpentes avançam sobre quem as alimentou. “A mídia apostou em uma estridência típica do jornalismo de guerra, que induz à intolerância e ao ataque ao que pensa diferente”, avalia. “Mas agora começa a se dar conta do pântano ao qual ela mesma lançou o país”, denota.

A capa da revista Veja sobre “a ameaça Bolsonaro”, da primeira semana de outubro de 2017, é um exemplo. “Fizeram 85 capas contra Lula e só agora fazem uma capa dizendo que Bolsonaro é um perigo para o Brasil”, mas é tarde: os leitores da revista, agora, acusam-na de ter sido “infiltrada por comunistas”. A Globo fez reportagens sobre os ataques conservadores no campo da arte e da cultura e as redes respondem com a pecha de “Globo comunista”. “Não adianta dar cavalo de pau, pois o estrago já está feito”, opina o autor do blog Escrevinhador.

Muito vendida a partir dos anos 1980, a ideia de que a imprensa é independente, neutra, só faz sentido do ponto de vista comercial, do marketing, conforme opina Vianna.

O cenário mudou rapidamente desde 2016, o que ajuda a entendermos como a mídia se guia por interesses escusos: “Durante o processo de impeachment, os meios de comunicação privados blocaram. Foi um bloco, uma frente unitária pela derrubada do governo eleito. Um ano depois, podemos ver a casa deles um pouco desarrumada. Alguns grupos, como a Bandeirantes, continuam dando sustentação ao governo Temer, enquanto outros, como a Globo, racharam e partiram pra cima do presidente".

Esse “desarranjo” mostra que nem todos os barões da mídia seguiram a família Marinho, conforme pontua o jornalista. “É desafiador pensar na posição radicalizada da Globo contra Temer. Há alguma agenda comercial oculta? Temer atendeu grupos de mídia. Band estava quebrada e recebeu polpudas ajudas do governo em forma de verba publicitária. O Estadão, também. Mas e a Globo? Foi bem atendida nas verbas publicitárias, mas descarrilha e descola do governo”.

Uma leitura possível levantada por Vianna é de que Temer cobra caro demais e “suja” a defesa do golpe. “O governo Temer criou obstáculos no caminho ao projeto de restauração da elite brasileira”, ressalta. Em meio à turbulência, Temer se equilibra na corda das reformas da Previdência e trabalhista, bandeiras defendidas praticamente em uníssono pelos grandes meios de comunicação. “O timing das denúncias e delações, entretanto, atrapalharam os setores que antes estavam blocados”.

Mídia, militante permanente do retrocesso

Editor do Portal Vermelho, Inácio Carvalho destaca que a ação militante por parte dos grandes meios de comunicação é algo incessante - o que fica claro nas explanações de Eleonora de Lucena e Rodrigo Vianna. “A intervenção partidarizada é permanente e, por isso, a imprensa permeia as crises políticas no país”, comenta. “Os editoriais contam essa história”.

O cearense relembra declaração de Judith Brito, então presidenta da Associação Nacional de Jornais [ANJ, entidade patronal], em 2010: “Se a oposição não está cumprindo o papel dela, cabe à mídia cumpri-lo”, disse, em período próximo à eleição vencida por Dilma Rousseff. A posição de Brito escancara como o monopólio midiático assume, abertamente, o papel militante. “Mídia atuou de forma incansável no sentido de desconstruir e abalar o processo iniciado pela eleição de Lula, em 2002”, acrescenta.

Ainda que seja possível listar mais uma dezena de casos reveladores do enviesamento e do partidarismo da mídia ao longo da história do país, Inácio de Carvalho elege 2016 como chave para desnudar o projeto defendido pelos donos dos grandes veículos.

Em março, a mídia promoveu cobertura ininterrupta das manifestações contra o governo de Dilma Rousseff, repetindo convocatórias e reverberando, 24 horas por dia, a insatisfação da população com a presidenta. “Brasil vai às ruas contra Dilma e Lula, e a favor de [Sérgio] Moro”, estampou uma das manchetes de jornalões, recorda Carvalho.

Uma semana depois, houve uma massiva manifestação em defesa da democracia, levada a cabo por setores populares, partidos e movimentos de trabalhadores. A colunista Eliane Catanhêde, do Estadão, não perdeu tempo em desqualificar, dizendo que ali “só havia militância”. “Constrói-se uma ideia, distorcida, de que existe antagonismo entre o que é o Brasil e quem são os militantes de causas populares”, analisa o jornalista.

De volta à 2017, Carvalho avalia que a ‘meladeira’ do golpe descortina horizontes para pensarmos como resistir à agenda de retrocessos e enfrentar o poder midiático. “A posse de ministros exclusivamente homens, brancos e ricos, além das gafes de Temer, incomodaram, mas são os sucessivos escândalos de corrupção que minam a credibilidade do golpe”, defende. O fio que segura este processo, principalmente em relação à aliança com os donos da mídia, é a tomada de um caminho mais curto para a aplicação de uma agenda ainda mais regressiva do que a rejeitada nas urnas na última eleição presidencial, em 2014.

“A contradição que se coloca é de que a agenda do golpe já não é mais tão segura devido ao desgaste do governo, recordista de desaprovação no país e com fraturas na harmonia dos segmentos que o compõem”, explica Carvalho. “Os desafio dos meios alternativos, contra-hegemônicos e afins é romper a hegemonia monopolista a partir desse cenário. Temos de pensar como viabilizar e fortalecer esse trabalho”.

Para isso, sugere o jornalista, discutir projetos e ideias tem de estar na ordem do dia. “Um projeto de país e saídas para a crise econômica são pautas dessa discussão, assim como a onda de intolerância e outras regressões civilizatórias que estão em curso. Esforço que temos de fazer é para a nossa sobrevivência, também. Mas não só. É um esforço para construir, ou reconstruir, o país”.

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