Foto: Ricardo Stuckert |
“As paisagens, cansei-me das paisagens
cegá-las com palavras rasurá-las
As paisagens são frutos descabidos
agudos olhos farpas sons à noite
espaço livre para o erro regiões recompostas
por desejo
Paisagens bruscas
decercadas as subidas não poupam
meu silêncio: renominá-las aqui
neste abandono ou aprendê-las diversas e desertas.”
(Vigília II, Ana Cristina Cesar)
As celebrações do Natal e do Ano-Novo com Lula em Curitiba tiveram grande repercussão. Colocaram em evidência o espaço da Vigília Lula Livre, que existe e resiste desde 7 de abril de 2018, dia da chegada do ex-presidente à capital do Paraná, conhecida como República de Curitiba. Em 1º de janeiro de 2019 completaram-se 270 dias de vigília.
São muitos os sentimentos de quem visita a Vigília Lula Livre. Um misto de tristeza, revolta, pertencimento, esperança – e também desesperança. O choro é livre e muito presente naquele território livre da democracia. Afinal, não é fácil estar diante do prédio da Superintendência da Polícia Federal (PF), saber que Lula se encontra no terceiro andar, numa janela que não conseguimos ver, pode nos escutar, porém segue só, privado do que para ele há de mais caro que é o convívio humano, o exercício da coletividade.
Ao ser instalada em abril de 2018, a vigília ocupava o encontro das ruas Dr. Barreto Coutinho e Guilherme Matter, entroncamento que passou a ser chamado de Praça Olga Benário. As tendas de recebimento de doações, da saúde, da cultura e outras estavam montadas ao longo da rua Dr. Barreto Coutinho e logo no quarteirão abaixo foi mais tarde alugada uma casa para abrigar os comunicadores, então chamada Casa da Democracia. Sobre a tenda da saúde, uma observação: trata-se sobretudo de um espaço de cuidado holístico, com oferta de massagens e medicina natural.
A instauração da vigília e do acampamento pode ter soado para muitos como uma iniciativa bonita, de apoio ao ex-presidente Lula, mas que não teria fôlego para sustentar-se no cotidiano, nos (muitos) dias em que não há fatos políticos espetaculosos, em que não há visitas importantes. Felizmente enganaram-se os que pensavam assim. É certo que as visitas de artistas, intelectuais e políticos são frequentes, diz-se inclusive que, desde que Lula foi para Curitiba, o prédio da Superintendência da PF recebe mais presidentes, ex-presidentes e chanceleres internacionais que o Palácio do Planalto em Brasília. Em princípio um disparate, mas um fato que denota a percepção internacional da prisão de Lula. Figuras como Noam Chomsky, Ernesto Samper, Pepe Mujica, Adolfo Perez Esquivel, Aleida Guevara são alguns dos visitantes das quintas-feiras ao ex-presidente.
Contudo, o dia a dia da vigília é sustentado por algumas organizações e movimentos sociais, dentre os quais destacam-se o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Partido dos Trabalhadores, e ganha vida sobretudo com presenças anônimas de militantes que chegam a se deslocar centenas e até milhares de quilômetros em caravanas para participar dos já conhecidos “Bom dia”, “Boa tarde” e “Boa noite, Presidente Lula”; para trazer doações de roupas e mantimentos; para prestar homenagens ao ex-presidente; para bordar pela democracia. A presença de moradores de Curitiba também se faz notar, assim como de catarinos, gaúchos e paulistas, que têm mais facilidade de deslocamento devido à proximidade. O livro de visitas aberto em maio já conta com mais de 13 mil assinaturas.
Em julho de 2018, a vigília ganhou uma nova casa. Transferiu-se para um terreno logo em frente à PF. Se antes não era possível chegar tão perto de Lula, agora ele está logo ali, do outro lado da rua. Pode nos escutar melhor e ver a copa das belas araucárias do terreno da vigília. Diga-se de passagem, Lula deve escutar de tudo. Discursos políticos, mensagens de carinho, agradecimento e esperança, teatro, poesia e música, muita música. A organização da vigília divulga a programação do dia em um cartaz escrito à mão. Artistas são sempre muito bem-vindos para apresentações de teatro, declamações de poesias autorais ou não, intervenções de todo tipo e músicas. Há oficinas, rodas de conversa e celebrações ecumênicas. São também distribuídos boletins diários, em formato digital, produzidos pelo Comitê Popular em Defesa de Lula e da Democracia.
Em setembro de 2018, o MST, em parceria com o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, inaugurou o Centro de Formação e Cultura Marielle Vive, a poucos metros da PF e da sede da vigília, com a presença dos pais de Marielle, o espaço conta com o Cine Lula Livre e um rol de atividades culturais e de formação para a militância.
A tristeza estampada no rosto de cada militante que chega vem também acompanhada da alegria de estar ali; em frente a um edifício de arquitetura e aura tão hostis criou-se um território de esperança, de luta pela democracia, pela liberdade e por justiça. Há um sentimento de pertencimento, animado pela solidariedade das/os companheiras/os, pelo compartilhamento da comida, da limpeza do local, de informações e sobretudo de sonhos. Foram lindas as celebrações de Natal e Ano-Novo, mas esperamos que sejam as únicas. Esperamos não precisar celebrar o aniversário da vigília em 7 de abril de 2019, esperamos que ela se recolha em breve, com a liberdade de Lula.
* Luiza Dulci é militante da JPT, integra o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo. É economista (UFMG), mestre em Sociologia (UFRJ) e doutoranda em Ciências Sociais, Desenvolvimento e Agricultura (UFRRJ).
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