quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Um ano do crime ambiental em Brumadinho

Por Julia Castello Goulart, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:

Dia 25 de janeiro de 2019. 12h28 min. Um som estrondoso foi ouvido. Seu Sebastião jura ter ouvido dois sons, como bombas, seguidos um do outro. Dona Neiva começava a cozinhar o almoço quando o telefone insistiu em tocar. Roberta ouviu o filho batendo à porta de casa gritando que a barragem tinha se rompido.

Bastou um telefonema de uma amiga para Ana Paula saber que o pior tinha acontecido com seu marido que trabalhava na mina. E o seu irmão? Já para Helena foi a falta de um telefonema que fez seu coração pressentir algo muito ruim. O mesmo aconteceu com Joel. Chegou a ficar com o corpo paralisado ao ouvir a notícia do ocorrido na televisão.

Enquanto alguns esperavam angustiados por notícias, outros se preparavam para trabalhar. Tenente Pedro teve uma reunião de emergência e embarcou no helicóptero. Mariane convocou médicos, para assim como ela se tornarem voluntários. Avimar pegou o primeiro voo para voltar para a cidade. Várias decisões precisavam ser tomadas como prefeito. Rômulo foi direto para a Defensoria, já sabia que iria para Brumadinho naquela mesma noite. Até o amanhecer Dom Vicente rezou dentro da casa de diversas famílias para que Deus os confortasse, de alguma forma.

Mais de 250 histórias não tiveram um merecido final feliz. Não terminaram em encontros emocionados. Vidas que se foram não por acaso, nem pelo acaso. A ganância de uma mineradora colocou preço por estas vidas. E nada valia mais para eles do que o ferro que ainda poderia ser explorado e vendido, mesmo que colocassem milhares de pessoas em perigo. Brumadinho não foi apenas um dos maiores crimes ambientais e humanos das três últimas décadas. Foi um crime, como muitos outros casos no Brasil, sem desfecho da justiça para as vítimas que ficaram e têm suas vidas marcadas e modificadas para sempre.

Morte do rio

O rio Paraopeba corta a cidade, é possível vê-lo de uma ponte. A mesma ponte que Thiago esperou por horas, minutos ou segundos durante o bloqueio de uma barreira policial naquela sexta-feira (24) para encontrar o tio que estava com o filho desaparecido. A lama que citam, não é terra com água, não é algo natural. São rejeitos de minério de ferro que escorreram e contaminaram o rio. Destruindo por onde passava toda a fauna e a flora.

Hayò, cacique da aldeia Pataxó Hã-Hã-Hãe que vive na região, viu da noite para o dia a morte deste mesmo rio. A morte de toda mãe natureza que ele havia jurado proteger. Alguns estranhos entravam na aldeia, mediam a qualidade de água, pegavam peixes mortos para fazer análises em laboratórios e produziam estudos, pesquisas e estatísticas de que o rio poderia ter uma pequena chance, mas voltaria a viver. Hayò rezava e pedia perdão pela morte do rio. Uma morte para ele sem volta.

Dona Neiva também olhava da janela de sua casa o mesmo rio que um dia viu os filhos e os netos nadando. Cheroso, seu marido, tentou salvar alguns peixes que tentavam em meio a água contaminada buscar oxigênio na superfície.

Buscas sem encontros. Enterros sem corpos. Roberta lutou mais de seis meses depois para encontrar o corpo do marido. Nada do que os funcionários da mineradora dissessem mudaria a ideia de que ela encontraria o marido. Nem que fosse uma parte dele, ela esperaria para dar um enterro digno para seu companheiro de vida e pai de seus filhos.

A revolta é tamanha. As investigações avançavam, mas nada parecia trazer conforto para as famílias, para os amigos e vizinhos. Raquel, como Junior, não perdeu nenhum familiar, mas perderam conhecidos e todo simples almoço de família que antes era tão comum, tinha se tornado um evento. A felicidade dava vergonha, às vezes. Era difícil se permitir sorrir quando se encontra tantas pessoas conhecidas sofrendo.

Justiça?

O dinheiro das indenizações veio para alguns. O auxílio veio para quase todos da cidade. Mas era um dinheiro ingrato. Conseguia comprar tudo, menos a vida dos que se foram. Dinheiro este que trouxe muitas brigas entre familiares e um vazio, que gerava eco na busca em vão da felicidade que tinha desaparecido.

Havia alguns que acreditavam. Para Guilherme ainda era possível ver o pai, os tios e os colegas de trabalho do papai nas estrelas do céu. Para outros, como Gabriel, a morte não era algo fácil de aceitar. Assim como não era fácil ver as pessoas esperando em filas para receber cestas básicas da prefeitura. O incômodo se tornou em ação e ele criou a ONG Amigos de Brumadinho. Helena transformou seu luto em luta e criou um Instituto em homenagem aos filhos.

O tempo passa. Dia 25 de janeiro de 2020 se completa um ano. A dor, a saudade permanece destas vidas que não se apagam das memórias dos atingidos em Brumadinho. Permanece a pergunta: a justiça foi feita? Alguém foi realmente responsabilizado por este crime ambiental e humano?

Desde 1985 aconteceram nove rompimentos de barragens de minério no Brasil. E ainda existem 723 barragens consideradas de alto risco no país. Eu te pergunto, você que está aqui: até quando?

* Julia Castello Goulart é jornalista, autora do livro “Memórias de Brumadinho: vidas que não se apagam”, publicado pela editora Autonomia Literária.

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