“Pastéis de vento.” É assim que a ex-ministra Tereza Campello e a economista Sandra Brandão qualificam os supostos benefícios do Auxílio Brasil – o mais recente retrocesso da gestão Jair Bolsonaro. Chamado equivocadamente pela grande mídia de “novo Bolsa Família”, o programa deve ser implantado pelo governo às pressas e de modo irresponsável, com um indisfarçável apelo eleitoreiro.
“Bolsonaro extinguiu, sem qualquer embasamento técnico, o maior e mais bem-sucedido programa de transferência de renda do mundo. E colocou no lugar um arremedo de programa que é o contrário do Bolsa Família”, escrevem Tereza e Sandra. Segundo elas, o Programa Bolsa Família (PBF) vingou porque não se limitou a pagar uma renda mínima aos beneficiários – famílias em situação de pobreza ou extrema pobreza.
Tereza foi, ela própria, uma das idealizadoras do Bolsa Família, além de ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome durante toda a gestão Dilma Rousseff (2011-2016), no auge do programa. Criado em 2003, no primeiro ano do governo Lula, o PBF unificou iniciativas como o Bolsa-Escola (2001), o Bolsa-Alimentação (2001), o Auxílio-Gás (2002) e o Fome Zero (2003).
Por ser um mecanismo condicional de transferência de recursos, havia contrapartidas: as famílias precisavam manter crianças e adolescentes, de 6 a 17 anos, com frequência escolar e vacinação em dia. Mulheres gestantes ou lactantes tinham de fazer acompanhamento permanente de saúde.
Com isso, o Bolsa Família foi além do combate à pobreza. De acordo com Tereza Campello e Sandra Brandão, o programa “ajudou a reduzir a mortalidade infantil e o déficit de estatura das crianças e a realizar o controle e a detecção precoce de tuberculose e hanseníase. Criou condições para que crianças de famílias pobres pudessem continuar na escola, garantiu acesso a políticas públicas, assegurando direitos e gerando oportunidades para milhões de pessoas”.
Foi graças sobretudo ao PBF que, em 2014, o Brasil saiu do Mapa da Fome, conforme reconheceu a ONU (Organização das Nações Unidas). Consolidado como referência internacional, o Bolsa Família recebeu premiações como o 1º Award for Outstanding Achievement in Social Security, concedido pela Associação Internacional de Seguridade Social (ISSA).
Com uma canetada, Bolsonaro desferiu um golpe de morte no Bolsa Família e pôs em xeque suas extraordinárias conquistas. A Medida Provisória (MP) Nº 1.061/2021 – que instituiu o Auxílio Brasil, no papel, em agosto passado – deixa a cargo do Poder Executivo Federal os valores referenciais para “caracterização de situação de pobreza ou extrema pobreza”. Ademais, acabam as contrapartidas – o grande diferencial do Bolsa Família em relação à maioria dos programas de transferência de renda.
De forma deliberada, o presidente já não vinha corrigindo os valores do Bolsa Família nos últimos anos – o último reajuste foi em junho de 2018 (governo Temer), quando o valor médio do benefício passou a R$ 182. Em outubro, o ministro da Cidadania, João Roma, anunciou que, com o Auxílio Brasil, as famílias passariam a ganhar “cerca de 20%” a mais – o que não chega sequer a repor a inflação do período.
Bolsonaro, por sua vez, insiste na promessa de que o governo pagará temporariamente R$ 400 às famílias, até o fim de 2022, na manobra mais perniciosa do Auxílio Brasil. Não bastasse a suspensão das contrapartidas, o presidente inflará os valores de modo oportunista, atrelando o pagamento à desesperada tentativa de reverter sua impopularidade. Pesquisa XP/Ipespe divulgada nesta quarta-feira (3) aponta que, para 55% dos brasileiros, a gestão Bolsonaro é ruim ou péssima.
Porém, mesmo que cubra os atuais beneficiários do Bolsa Família com o reajuste, o governo privará quase 22 milhões de brasileiros de uma renda mínima neste período de pandemia, inflação, desemprego e fome. Este é o número estimado de pessoas que deixarão de receber o auxílio emergencial, mas não serão contempladas com o Auxílio Brasil.
Ieda Castro, ex-secretária nacional de Assistência Social no governo Dilma, lembra que o País já tem cerca de 20 milhões de pessoas passando fome – número que pode mais do que dobrar com o acréscimo dos 22 milhões de remanescentes do auxílio emergencial. “Podemos passar de 20 milhões para 42 milhões”, diz Ieda, que questiona: por que as famílias pobres que estão fora do Cadastro Único “não foram orientadas ao longo da pandemia a entrar nele? O Auxílio Brasil não atenderá às necessidades de hoje”.
Os partidos de esquerda, as centrais sindicais e os movimentos sociais – que cobravam um auxílio emergencial de R$ 600 até o fim da pandemia – não se opõem a um pagamento mensal que chegue a R$ 400. Mas exigem coerência, contrapartidas e responsabilidade. Que os critérios do Bolsa Família sejam restabelecidos, preservando seus impactos positivos de médio e longo prazos. Vai ter luta!
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