Por Leonardo Sakamoto, em seu blog:
O Massacre de Eldorado dos Carajás, que matou 19 sem-terra e deixou mais de 60 feridos após uma ação violenta da Polícia Militar para desbloquear a rodovia PA-150, no Sudeste do Pará, completa 16 anos nesta terça. Duas pessoas foram condenadas por reprimir com morte a manifestação: o coronel Mario Colares Pantoja (a 228 anos) e o major José Maria Pereira Oliveira (a 154 anos), que estavam à frente dos policiais. Eles recorreram em liberdade. No final do mês passado, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, negou o direito de continuarem nessa condição. Agora, não há impedimento para que sejam presos.
Alguns vêm na prisão de ambos o fim da impunidade do caso – o que, para dizer o mínimo, é uma visão muito limitada da realidade. Pois, pergunto a vocês:
Um massacre se faz com duas pessoas?
Os responsáveis políticos na época, o então governador Almir Gabriel (que ordenou a desobstrução da rodovia) e o secretário de Segurança Pública, Paulo Câmara (que autorizou o uso da força policial), nunca foram processados. Outros 142 policiais militares que participaram da matança foram absolvidos. Isso sem contar que as denúncias de fazendeiros locais que teriam dado apoio para a ação policial ficaram por isso mesmo.
Um massacre se faz da noite para o dia?
Se fossemos contar todos os casos anteriores de sindicalistas, trabalhadores rurais, camponeses, indígenas cujos carrascos nunca foram punidos no Pará, teríamos o maior post de todos os tempos. Por exemplo, na década de 80 e 90, os fazendeiros resolveram acabar com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria, no Sul do Pará, e assassinaram uma série de lideranças. Foram a julgamentos, houve condenações, fuga de pistoleiros, mandantes que viveram em paz até a sua morte natural. A certeza da impunidade pavimenta a tortura e a violência contra trabalhadores e populações tradicionais no Pará.
Um massacre solucionado gera filhos?
A Justiça, quando se refere ao Pará, tem servido para proteger o direito de alguns mais ricos em detrimento dos que nada têm. Mudanças positivas têm acontecido, graças à sociedade civil, à imprensa e a promotores, procuradores e juízes que têm a coragem de fazer o seu trabalho, mesmo com o risco de uma bala atravessar o seu caminho. Mas tudo isso é muito pouco diante do notório fracasso em garantir a dignidade daqueles que lutam com melhores condições de vida até o presente momento.
Praticamente toda a semana, uma liderança social é morta na Amazônia. Algumas são mais conhecidas e ganham mídia nacional e internacional, mas a esmagadora maioria passa como anônimos e são velados apenas por seus companheiros. Além da importância do trabalho de Maria e Zé Cláudio, lideranças extrativistas de Nova Ipixuna assassinadas no ano passado, a morte deles ocorreu no dia de votação do novo Código Florestal na Câmara dos Deputados, o que contribuiu em dar visibilidade ao crime. E aqueles que morrem em dias de jogos da Copa do Mundo em que não há ninguém prestando atenção?
Um massacre ocorre aleatoriamente?
As mortes no campo são resultado de um modelo de desenvolvimento concentrador, excludente, que privilegia o grande produtor e a monocultura, em decorrência ao pequeno e o médio. Que explora mão-de-obra de uma forma não-contratual, chegando ao limite da escravidão contemporânea, a fim de facilitar a concorrência em cadeias produtivas cada vez mais globalizadas. Que fomenta a grilagem de terras e a especulação fundiária, até porque tem muita gente graúda e de sangue azul que se beneficia com as terras esquentadas e prontas para o uso. Que muito antes da época dos verde-oliva já considerava a região como um “imenso deserto verde” a ser conquistado – como se o pessoal que lá morasse e de lá dependesse fossem meros fantasmas. Que está pouco se importando com o respeito às leis ambientais, porque o país tem que crescer rápido, passando por cima do que for. Tudo com a nossa anuência, uma vez que consumimos os produtos de lá alegres e felizes com nossa ignorância, elogiando algumas marcas e empresas que – ao contrário de nós – não estão imersas em ignorância.
Um massacre é um fato isolado?
De acordo com a Comissão Pastoral da Terra, apenas nas regiões Sul e Sudeste do Pará, há cerca de 50 pessoas marcadas para morrer devido a conflitos rurais. Aliás, se tivesse sido aprovado no plebiscito, o Estado de Carajás – onde fica Eldorado – nasceria como o mais violento da nação – um título edificante. Entre 1971 e 2007, foram 819 pessoas mortas em função de disputas por terra no Estado. Conta-se nos dedos de uma mão os punidos após condenação.
Um massacre, como um raio, não cai duas vezes no mesmo lugar?
Em novembro de 2009, quase ocorreu uma tragédia na “Curva do S”, local onde 19 trabalhadores rurais sem-terra foram assassinados. Policiais ameaçaram ir para cima de mais de mil trabalhadores ligados ao MST durante uma manifestação pacífica. Faltou pouco, muito pouco. À frente, o delegado Raimundo Benassuly, que ficou conhecido nacionalmente por tentar justificar que uma adolescente de 15 anos colocada em uma cela cheia de presos no Pará era a culpada pelo episódio. Relembrando: segundo ele, a menina “certamente tem alguma debilidade mental porque em nenhum momento informou ser menor de idade”. Foi afastado, mas depois voltou ao cargo. Como disse o ultrapassado Marx, “a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”.
Um massacre por policiais é responsabilidade do poder público?
A pergunta é: quem comanda o quê? Há uma relação carnal que se estabelece entre o público e o privado na região amazônica. O detentor da terra exerce o poder político, através de influência econômica e da coerção física. É freqüente, por exemplo, encontrar policiais que fazem bicos como jagunços de fazendas. Em outros casos, as tropas públicas estiveram diretamente a serviço de particulares. Sabe qual a chance de trabalhadores rurais que solicitam a destinação de terras griladas para a reforma agrária ou de comunidades tradicionais que exijam a devolução de terras roubadas terem o mesmo sucesso que grandes proprietários que pedirem a desocupação de terras? Anos atrás, grandes proprietários rurais e suas entidade patronais chegaram a demandar intervenção federal no Pará uma vez que o poder público local não estava sendo célere – em sua opinião, claro – para garantir reintegrações de posse de terras (muitas das quais, com sérios indícios de grilagem). Se fossem trabalhadores pedindo isso, o ato seria encarado como um levante comunista.
Pegue matérias sobre assassinatos no campo no Pará e no Brasil. Verá que é só trocar o nome dos mortos, do município (às vezes, nem isso) e onde foi a emboscada para serem a mesma matéria de antes. As mesmas desculpas do governo, os mesmos planos de ação parecidos, as mesmas reclamações da Comissão Pastoral da Terra, os mesmos grupos sendo criados para debater e encontrar soluções.
Pode-se prender um ou dois. Mas as condições que fizeram Eldorado dos Carajás estão aí produzindo vítimas. De novo. E de novo. E de novo…
Quando alguém conseguir dar uma resposta decente a essas indagações, considerarei que o massacre não acabou impune. Até lá, vou vendo a história feito carrossel, conduzida pelo giro dos tambores de revólveres, acompanhada pelo barulho seco de corpos caindo na terra batida ou no asfalto.
O Massacre de Eldorado dos Carajás, que matou 19 sem-terra e deixou mais de 60 feridos após uma ação violenta da Polícia Militar para desbloquear a rodovia PA-150, no Sudeste do Pará, completa 16 anos nesta terça. Duas pessoas foram condenadas por reprimir com morte a manifestação: o coronel Mario Colares Pantoja (a 228 anos) e o major José Maria Pereira Oliveira (a 154 anos), que estavam à frente dos policiais. Eles recorreram em liberdade. No final do mês passado, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, negou o direito de continuarem nessa condição. Agora, não há impedimento para que sejam presos.
Alguns vêm na prisão de ambos o fim da impunidade do caso – o que, para dizer o mínimo, é uma visão muito limitada da realidade. Pois, pergunto a vocês:
Um massacre se faz com duas pessoas?
Os responsáveis políticos na época, o então governador Almir Gabriel (que ordenou a desobstrução da rodovia) e o secretário de Segurança Pública, Paulo Câmara (que autorizou o uso da força policial), nunca foram processados. Outros 142 policiais militares que participaram da matança foram absolvidos. Isso sem contar que as denúncias de fazendeiros locais que teriam dado apoio para a ação policial ficaram por isso mesmo.
Um massacre se faz da noite para o dia?
Se fossemos contar todos os casos anteriores de sindicalistas, trabalhadores rurais, camponeses, indígenas cujos carrascos nunca foram punidos no Pará, teríamos o maior post de todos os tempos. Por exemplo, na década de 80 e 90, os fazendeiros resolveram acabar com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria, no Sul do Pará, e assassinaram uma série de lideranças. Foram a julgamentos, houve condenações, fuga de pistoleiros, mandantes que viveram em paz até a sua morte natural. A certeza da impunidade pavimenta a tortura e a violência contra trabalhadores e populações tradicionais no Pará.
Um massacre solucionado gera filhos?
A Justiça, quando se refere ao Pará, tem servido para proteger o direito de alguns mais ricos em detrimento dos que nada têm. Mudanças positivas têm acontecido, graças à sociedade civil, à imprensa e a promotores, procuradores e juízes que têm a coragem de fazer o seu trabalho, mesmo com o risco de uma bala atravessar o seu caminho. Mas tudo isso é muito pouco diante do notório fracasso em garantir a dignidade daqueles que lutam com melhores condições de vida até o presente momento.
Praticamente toda a semana, uma liderança social é morta na Amazônia. Algumas são mais conhecidas e ganham mídia nacional e internacional, mas a esmagadora maioria passa como anônimos e são velados apenas por seus companheiros. Além da importância do trabalho de Maria e Zé Cláudio, lideranças extrativistas de Nova Ipixuna assassinadas no ano passado, a morte deles ocorreu no dia de votação do novo Código Florestal na Câmara dos Deputados, o que contribuiu em dar visibilidade ao crime. E aqueles que morrem em dias de jogos da Copa do Mundo em que não há ninguém prestando atenção?
Um massacre ocorre aleatoriamente?
As mortes no campo são resultado de um modelo de desenvolvimento concentrador, excludente, que privilegia o grande produtor e a monocultura, em decorrência ao pequeno e o médio. Que explora mão-de-obra de uma forma não-contratual, chegando ao limite da escravidão contemporânea, a fim de facilitar a concorrência em cadeias produtivas cada vez mais globalizadas. Que fomenta a grilagem de terras e a especulação fundiária, até porque tem muita gente graúda e de sangue azul que se beneficia com as terras esquentadas e prontas para o uso. Que muito antes da época dos verde-oliva já considerava a região como um “imenso deserto verde” a ser conquistado – como se o pessoal que lá morasse e de lá dependesse fossem meros fantasmas. Que está pouco se importando com o respeito às leis ambientais, porque o país tem que crescer rápido, passando por cima do que for. Tudo com a nossa anuência, uma vez que consumimos os produtos de lá alegres e felizes com nossa ignorância, elogiando algumas marcas e empresas que – ao contrário de nós – não estão imersas em ignorância.
Um massacre é um fato isolado?
De acordo com a Comissão Pastoral da Terra, apenas nas regiões Sul e Sudeste do Pará, há cerca de 50 pessoas marcadas para morrer devido a conflitos rurais. Aliás, se tivesse sido aprovado no plebiscito, o Estado de Carajás – onde fica Eldorado – nasceria como o mais violento da nação – um título edificante. Entre 1971 e 2007, foram 819 pessoas mortas em função de disputas por terra no Estado. Conta-se nos dedos de uma mão os punidos após condenação.
Um massacre, como um raio, não cai duas vezes no mesmo lugar?
Em novembro de 2009, quase ocorreu uma tragédia na “Curva do S”, local onde 19 trabalhadores rurais sem-terra foram assassinados. Policiais ameaçaram ir para cima de mais de mil trabalhadores ligados ao MST durante uma manifestação pacífica. Faltou pouco, muito pouco. À frente, o delegado Raimundo Benassuly, que ficou conhecido nacionalmente por tentar justificar que uma adolescente de 15 anos colocada em uma cela cheia de presos no Pará era a culpada pelo episódio. Relembrando: segundo ele, a menina “certamente tem alguma debilidade mental porque em nenhum momento informou ser menor de idade”. Foi afastado, mas depois voltou ao cargo. Como disse o ultrapassado Marx, “a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”.
Um massacre por policiais é responsabilidade do poder público?
A pergunta é: quem comanda o quê? Há uma relação carnal que se estabelece entre o público e o privado na região amazônica. O detentor da terra exerce o poder político, através de influência econômica e da coerção física. É freqüente, por exemplo, encontrar policiais que fazem bicos como jagunços de fazendas. Em outros casos, as tropas públicas estiveram diretamente a serviço de particulares. Sabe qual a chance de trabalhadores rurais que solicitam a destinação de terras griladas para a reforma agrária ou de comunidades tradicionais que exijam a devolução de terras roubadas terem o mesmo sucesso que grandes proprietários que pedirem a desocupação de terras? Anos atrás, grandes proprietários rurais e suas entidade patronais chegaram a demandar intervenção federal no Pará uma vez que o poder público local não estava sendo célere – em sua opinião, claro – para garantir reintegrações de posse de terras (muitas das quais, com sérios indícios de grilagem). Se fossem trabalhadores pedindo isso, o ato seria encarado como um levante comunista.
Pegue matérias sobre assassinatos no campo no Pará e no Brasil. Verá que é só trocar o nome dos mortos, do município (às vezes, nem isso) e onde foi a emboscada para serem a mesma matéria de antes. As mesmas desculpas do governo, os mesmos planos de ação parecidos, as mesmas reclamações da Comissão Pastoral da Terra, os mesmos grupos sendo criados para debater e encontrar soluções.
Pode-se prender um ou dois. Mas as condições que fizeram Eldorado dos Carajás estão aí produzindo vítimas. De novo. E de novo. E de novo…
Quando alguém conseguir dar uma resposta decente a essas indagações, considerarei que o massacre não acabou impune. Até lá, vou vendo a história feito carrossel, conduzida pelo giro dos tambores de revólveres, acompanhada pelo barulho seco de corpos caindo na terra batida ou no asfalto.
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