Por Miguel do Rosário, no blog O Cafezinho:
Faltando pouco mais de uma semana para encerrar o ano, tenho impressão que 2014 não vai embora tão cedo.
Os grandes acontecimentos de 2014 se estenderão pelos próximos meses, quiçá anos.
As eleições, por exemplo.
O novo governo ainda não tomou posse, em nenhum sentido.
É como se não tivesse havido eleição.
As pessoas votaram, mas não houve, de fato, uma eleição.
Quer dizer, houve uma eleição, mas é como se ela tivesse acontecido numa galáxia distante, e sua notícia, e seus efeitos, ainda não houvessem chegado aqui.
Ou como se o resultado da eleição, e a eleição em si, permanecessem em segredo.
A mídia não contou a nosso povo que houve uma eleição, nem revelou o seu resultado.
Ela apenas informou quem foi o vencedor, mas o fez como quem revela, maldosamente, a quem lê um romance de mistério, o nome do assassino.
A melhor parte, a história da luta popular contra a mídia, foi soterrada em meio a acusações vulgares contra a campanha da candidata vencedora.
O povo não teve o direito de ouvir os ecos de sua voz.
Os intérpretes contratados pela mídia, entre eles o ex-presidente FHC, menosprezaram o voto de milhões de brasileiros, dizendo que pertenciam a regiões menos “dinâmicas”, e que eram votos de pessoas “desinformadas”.
O preconceito de FHC, a sua tara antidemocrática, o seu cacoete ancien regime, cegou-lhe a tal ponto as faculdades mentais que ele viu trevas onde havia luz.
A principal beleza do sufrágio universal, a sua mais nobre virtude, não seria justamente esse milagre?
O milagre de ouvir o povo em sua plenitude, desde o mais simples morador de uma vila rural, até o mais cosmopolita de uma grande cidade?
Desde o cidadão da região mais rica e “dinâmica” ao brasileiro do rincão mais “desinformado”.
Quem poderá julgar qual é o melhor?
Quem poderá julgar quem é mais sensato, mais inteligente, mais ético, mais comprometido com o futuro do país?
Nenhuma pesquisa de intenção de voto jamais superará a qualidade do sufrágio universal, a única instância capaz de ouvir, individualmente, mais de cem milhões de eleitores!
O sufrágio universal é o único momento, numa nação democrática, em que a voz do povo é ouvida.
Essa é razão pela qual as asserções de FHC, diminuindo o valor do voto de setores sociais inteiros, de imensas regiões geográficas, constitui uma infâmia.
Essa é razão pela qual as marchas pró-impeachment, realizadas semanas após as eleições, representam uma violência política.
Essa é a razão pela qual a tentativa, insana, de Aécio Neves de violar o desejo do povo, o desejo de reconduzir Dilma a um novo mandato, corresponde a uma traição à democracia.
Um dos meus livros de cabeceira, que leio e releio infinitamente, a História da Revolução Francesa, de Jules Michelet, descreve, no primeiro capítulo, o primeiro grande passo das democracias modernas.
Ao final do século XVIII, os EUA ainda eram um país com pouco mais de cem mil habitantes.
A França tinha quase 30 milhões.
Qual foi este primeiro grande passo?
As eleições dos Estados Gerais, em 1789.
Para surpresa da corte, da igreja, do rei, e da própria alta burguesia, esta última no papel de vanguarda política, o povo atendeu em massa ao chamado pelo sufrágio.
Cinco milhões de pessoas acorreram aos locais de votação, para escolher os eleitores, que por sua vez elegeriam os representantes do Terceiro Estado na Assembleia Nacional.
A maneira magistral como Michelet descreve a cena fez de seu livro também um clássico de literatura.
“Grande cena, estranha, impressionante! de ver todo um povo que de uma só vez passava do nada ao ser, de um povo que, até ali silencioso, adquiria, de um só golpe, uma voz!”
No Brasil, os programas de TV nos fazem pensar, por vezes, que ouvimos cotidianamente a voz do povo.
No entanto, não ouvimos!
O único momento em que o povo efetivamente se faz ouvir é quando o Tribunal Superior Eleitoral divulga o resultado do sufrágio.
As eleições de outubro de 2014 foram as maiores que já experimentamos em nossa história.
112 milhões de eleitores!
E isso num processo eleitoral considerado por todas as instituições internacionais como um dos mais limpos, seguros e modernos do mundo!
Há poucos anos, quem falava em sufrágio universal era considerado subversivo, radical, e agora aqui estamos.
Vejam como são as coisas.
O primeiro grande acontecimento da democracia moderna, tão festejado pelo gênio de Michelet, foi o fato de 4 a 5 milhões de franceses acorrerem às urnas, no início de 1789.
Era a alvorada de um novo tempo.
O início do fim de séculos e séculos de trevas, opressão, ignorância e truculência política.
Séculos não! Milênios! As democracias da antiguidade não duraram muito e se restringiam a um número reduzido de eleitores.
O que veríamos, a partir dali, seria verdadeiramente algo novo.
Alguns séculos depois, no Brasil de 2014, o candidato derrotado menospreza a vantagem de quase 4 milhões de votos, obtida pela presidenta Dilma.
Para ser exato, uma vantagem de 3,5 milhões de votos.
3,5 milhões de votos!
3,5 milhões de votos corresponde a 1,7% da população oficial do Brasil, estimada em 203 milhões pelo IBGE.
Em 2012, as últimas eleições presidenciais americanas, um país com uma população estimada oficialmente em 320 milhões, terminaram com uma diferença, para o vencedor (Obama), de 5 milhões de votos, ou 1,5% da população.
Em 2000, George Bush obteve 50,4 milhões de votos, contra 50,9 milhões de Al Gore. Ganhou por causa dos votos dos colégios eleitorais.
Para se ter uma ideia, a primeira eleição “moderna” realizada nos EUA, em 1824, quando se permitiu que o voto popular direto também decidisse a eleição presidencial, e não apenas os votos indiretos dos colégios eleitorais, o vencedor Andrew Jackson venceu seu adversário, John Quincy Adams, por pouco mais de 40 mil votos. E foi considerada uma grande vitória!
Dois séculos depois, Aécio Neves, derrotado nas eleições de 2014, diz que a vitória de Dilma, com vantagem de 3,5 milhões de votos, foi pífia!
Em 1994, quando o PSDB registrou a sua mais espetacular vitória numa eleição presidencial, FHC obteve 34,3 milhões de votos, o que correspondia a 23% da população brasileira, então estimada em 147 milhões de pessoas.
Vinte anos depois, em 2014, Dilma obteria 54,5 milhões de votos, representando 27% da população, estimada hoje em 203 milhões de brasileiros.
Os 65 milhões de votos em Obama de 2012 corresponderam a 20,4% da população dos EUA.
A vitória de Dilma, portanto, é democraticamente mais representativa do que a de FHC em 1994 e a de Obama em 2012.
Diante desses números, que espécie de imbecil chamaria a sua vitória de “pífia”?
Enquanto a vitória de Dilma não se consolidar profundamente na consciência de uma população de 203 milhões, o ano de 2014 não terá terminado.
A mesma coisa vale para o triste aniversário de 50 anos do golpe de 1964.
A data não foi, nem de longe, devidamente lembrada este ano.
Se tivesse sido, não o terminaríamos com marchas, atreladas ao candidato derrotado Aécio Neves, pedindo uma nova intervenção militar no país.
A nossa mídia, cúmplice do golpe, fez um teatrinho jornalístico durante a semana de aniversário da queda do regime democrático, mas não teve a competência de produzir uma visão de conjuntura sobre o que aconteceu.
Não teve a competência e não teve vontade para descrever o golpe como uma trágica agressão ao povo brasileiro.
Muita ênfase foi dada a algumas centenas de torturados e assassinatos políticos.
Quase nada foi dito sobre os milhões de brasileiros que sofreram com um regime no qual os salários eram arrochados sem que o trabalhador tivesse direito de protestar.
Quem poderá calcular, objetivamente, quantos milhões de brasileiros morreram em função dos arbítrios políticos e econômicos da ditadura?
Muitos enchem a boca para falar dos milhões de mortos pelos regimes comunistas, sobretudo o chinês e o russo, países com população enorme. Não lhes tiro totalmente a razão. O comunismo cometeu erros trágicos, e pagará por eles durante muito tempo. Mas por que se isenta a ditadura do mesmo tipo de responsabilidade? Por que não é também culpada pela morte de milhões de brasileiros, por fome e doenças, ao longo de 21 anos, e que talvez não tivessem morrido se algumas reformas básicas houvessem sido implementadas no país?
A ausência deste debate, no aniversário de 50 anos de golpe, significa que o ano de 2014 só vai terminar quando ele for realizado em sua plenitude, diante das massas.
E ele jamais será realizado enquanto a nossa mídia for controlada pelas mesmas empresas que se beneficiaram da ditadura.
O terceiro e último evento do ano, que fará 2014 se estender ao longo dos próximos meses, quiçá anos, é a Operação Lava Jato.
O que ela significa, realmente?
Quais serão suas consequências?
Estamos diante, novamente, de dois fatores de igual importância.
Em primeiro lugar, um escândalo real de corrupção, de grandes proporções.
Esse é o lado positivo, porque a corrupção só pode ser combatida quando é descoberta. E a corrupção, sobretudo quando envolve medalhões da política, só é descoberta quando há uma atmosfera de liberdade democrática e quando o governo confere autonomia aos órgãos que investigam.
Essa liberdade democrática, num país politicamente ainda atrasado, só existe quando há uma delicada conjuntura, a qual poderia ser quebrada se tivéssemos, por exemplo, uma mídia ocupando o Executivo, como seria, caso o PSDB tivesse vencido das eleições.
Por outro lado, temos mais um exemplo nefasto de manipulação da mídia, cujos tentáculos se estendem em todas as direções. Esse é o lado fortemente negativo, porque a mídia pega um escândalo real, que está sendo investigado, e o transforma numa arma política.
A politização da mídia, contudo, e o uso político de escândalos de corrupção, acontecem em toda democracia.
É algo trivial, talvez necessário.
O problema da mídia brasileira não é ser de oposição. Isso é até saudável.
O problema, no Brasil, é a concentração da mídia, que sufoca o debate plural sobre os significados e consequências desses escândalos políticos, e agride a democracia.
Ainda assim, eu me agarro a uma visão hegeliana e procuro ver, no aspecto negativo da Lava Jato, nesta descarada e golpista manipulação midiática, um efeito dialético positivo.
É uma forma de pensar algo desesperada, sem deixar de ser lúcida e objetiva.
A consciência do papel da comunicação na luta política atingiu um estágio tão agudo, que todo o golpismo da mídia apenas serve para ampliar ainda mais essa consciência.
E quanto mais nervosa, autoritária e desesperada se torna a mídia, mais urgente, democrática e saudavelmente desesperada se torna a nossa consciência sobre o problema da comunicação política.
Ou seja, quanto mais a mídia bate no joão bobo, mais o joão bobo fica esperto.
É um processo irreversível.
Enquanto os zumbis da mídia mergulham numa espécie de loucura pró-golpista, fazendo marchas pró-intervenção militar e aderindo a um comportamento positivamente idiota e binário em relação à corrupção, os setores progressistas se tornam mais angustiadamente conscientes de que a corrupção só poderá ser combatida através de um processo de radicalização democrática.
Então, mesmo que a Lava Jato seja instrumentalizada para se tornar não uma operação que visa, honestamente, combater a corrupção na Petrobrás, mas sim um cavalo de tróia para reposicionar setores políticos derrotados nas urnas, mesmo que isso aconteça, também servirá para expandir a nossa consciência.
Este é o nosso grande trunfo: a nossa consciência.
Isso é que assusta os reacionários de todos os tempos, desde os esnobes aristocratas do ancien regime até os melancólicos pós-golpistas da atual mídia brasileira.
A gente sabe que há corrupção no governo, no congresso, nas estatais, que o PT é um partido cheio de problemas, que a Dilma tem inúmeros defeitos.
A gente sabe de tudo isso.
Mesmo assim, não votaremos jamais em quem não identificamos um compromisso profundo com a democracia e com o bem estar da maioria da população.
Eles não conseguem mais nos enganar.
A luta contra a corrupção é uma luta popular, não da mídia, porque a mídia sempre se beneficiou da corrupção.
A mídia brasileira foi construída com dinheiro público desviado, sonegação e ditadura.
Queremos combater a corrupção nos marcos do respeito à democracia, e sob a égide de um governo sensível às necessidades do povo, porque entendemos que somente um governo assim pode, efetivamente, fundar uma nova moral pública, baseada na honestidade.
Não adianta, senhores barões da mídia.
O ano de 2014 vai terminar um dia, e a derrota da mídia, a meu ver, é inevitável.
Perderá no voto, perderá na interpretação de seu papel em 64, e perderá, de uma forma ou de outra, a batalha pela narrativa da corrupção.
Como dizia Zé Keti, numa canção que acabou por se tornar uma belíssima metáfora da luta democrática contra a ditadura, e que agora novamente se torna uma triste ironia contra a truculência da mídia e da oposição conservadora:
“Podem me prender, podem me bater, que eu não mudo de opinião.”
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Os grandes acontecimentos de 2014 se estenderão pelos próximos meses, quiçá anos.
As eleições, por exemplo.
O novo governo ainda não tomou posse, em nenhum sentido.
É como se não tivesse havido eleição.
As pessoas votaram, mas não houve, de fato, uma eleição.
Quer dizer, houve uma eleição, mas é como se ela tivesse acontecido numa galáxia distante, e sua notícia, e seus efeitos, ainda não houvessem chegado aqui.
Ou como se o resultado da eleição, e a eleição em si, permanecessem em segredo.
A mídia não contou a nosso povo que houve uma eleição, nem revelou o seu resultado.
Ela apenas informou quem foi o vencedor, mas o fez como quem revela, maldosamente, a quem lê um romance de mistério, o nome do assassino.
A melhor parte, a história da luta popular contra a mídia, foi soterrada em meio a acusações vulgares contra a campanha da candidata vencedora.
O povo não teve o direito de ouvir os ecos de sua voz.
Os intérpretes contratados pela mídia, entre eles o ex-presidente FHC, menosprezaram o voto de milhões de brasileiros, dizendo que pertenciam a regiões menos “dinâmicas”, e que eram votos de pessoas “desinformadas”.
O preconceito de FHC, a sua tara antidemocrática, o seu cacoete ancien regime, cegou-lhe a tal ponto as faculdades mentais que ele viu trevas onde havia luz.
A principal beleza do sufrágio universal, a sua mais nobre virtude, não seria justamente esse milagre?
O milagre de ouvir o povo em sua plenitude, desde o mais simples morador de uma vila rural, até o mais cosmopolita de uma grande cidade?
Desde o cidadão da região mais rica e “dinâmica” ao brasileiro do rincão mais “desinformado”.
Quem poderá julgar qual é o melhor?
Quem poderá julgar quem é mais sensato, mais inteligente, mais ético, mais comprometido com o futuro do país?
Nenhuma pesquisa de intenção de voto jamais superará a qualidade do sufrágio universal, a única instância capaz de ouvir, individualmente, mais de cem milhões de eleitores!
O sufrágio universal é o único momento, numa nação democrática, em que a voz do povo é ouvida.
Essa é razão pela qual as asserções de FHC, diminuindo o valor do voto de setores sociais inteiros, de imensas regiões geográficas, constitui uma infâmia.
Essa é razão pela qual as marchas pró-impeachment, realizadas semanas após as eleições, representam uma violência política.
Essa é a razão pela qual a tentativa, insana, de Aécio Neves de violar o desejo do povo, o desejo de reconduzir Dilma a um novo mandato, corresponde a uma traição à democracia.
Um dos meus livros de cabeceira, que leio e releio infinitamente, a História da Revolução Francesa, de Jules Michelet, descreve, no primeiro capítulo, o primeiro grande passo das democracias modernas.
Ao final do século XVIII, os EUA ainda eram um país com pouco mais de cem mil habitantes.
A França tinha quase 30 milhões.
Qual foi este primeiro grande passo?
As eleições dos Estados Gerais, em 1789.
Para surpresa da corte, da igreja, do rei, e da própria alta burguesia, esta última no papel de vanguarda política, o povo atendeu em massa ao chamado pelo sufrágio.
Cinco milhões de pessoas acorreram aos locais de votação, para escolher os eleitores, que por sua vez elegeriam os representantes do Terceiro Estado na Assembleia Nacional.
A maneira magistral como Michelet descreve a cena fez de seu livro também um clássico de literatura.
“Grande cena, estranha, impressionante! de ver todo um povo que de uma só vez passava do nada ao ser, de um povo que, até ali silencioso, adquiria, de um só golpe, uma voz!”
No Brasil, os programas de TV nos fazem pensar, por vezes, que ouvimos cotidianamente a voz do povo.
No entanto, não ouvimos!
O único momento em que o povo efetivamente se faz ouvir é quando o Tribunal Superior Eleitoral divulga o resultado do sufrágio.
As eleições de outubro de 2014 foram as maiores que já experimentamos em nossa história.
112 milhões de eleitores!
E isso num processo eleitoral considerado por todas as instituições internacionais como um dos mais limpos, seguros e modernos do mundo!
Há poucos anos, quem falava em sufrágio universal era considerado subversivo, radical, e agora aqui estamos.
Vejam como são as coisas.
O primeiro grande acontecimento da democracia moderna, tão festejado pelo gênio de Michelet, foi o fato de 4 a 5 milhões de franceses acorrerem às urnas, no início de 1789.
Era a alvorada de um novo tempo.
O início do fim de séculos e séculos de trevas, opressão, ignorância e truculência política.
Séculos não! Milênios! As democracias da antiguidade não duraram muito e se restringiam a um número reduzido de eleitores.
O que veríamos, a partir dali, seria verdadeiramente algo novo.
Alguns séculos depois, no Brasil de 2014, o candidato derrotado menospreza a vantagem de quase 4 milhões de votos, obtida pela presidenta Dilma.
Para ser exato, uma vantagem de 3,5 milhões de votos.
3,5 milhões de votos!
3,5 milhões de votos corresponde a 1,7% da população oficial do Brasil, estimada em 203 milhões pelo IBGE.
Em 2012, as últimas eleições presidenciais americanas, um país com uma população estimada oficialmente em 320 milhões, terminaram com uma diferença, para o vencedor (Obama), de 5 milhões de votos, ou 1,5% da população.
Em 2000, George Bush obteve 50,4 milhões de votos, contra 50,9 milhões de Al Gore. Ganhou por causa dos votos dos colégios eleitorais.
Para se ter uma ideia, a primeira eleição “moderna” realizada nos EUA, em 1824, quando se permitiu que o voto popular direto também decidisse a eleição presidencial, e não apenas os votos indiretos dos colégios eleitorais, o vencedor Andrew Jackson venceu seu adversário, John Quincy Adams, por pouco mais de 40 mil votos. E foi considerada uma grande vitória!
Dois séculos depois, Aécio Neves, derrotado nas eleições de 2014, diz que a vitória de Dilma, com vantagem de 3,5 milhões de votos, foi pífia!
Em 1994, quando o PSDB registrou a sua mais espetacular vitória numa eleição presidencial, FHC obteve 34,3 milhões de votos, o que correspondia a 23% da população brasileira, então estimada em 147 milhões de pessoas.
Vinte anos depois, em 2014, Dilma obteria 54,5 milhões de votos, representando 27% da população, estimada hoje em 203 milhões de brasileiros.
Os 65 milhões de votos em Obama de 2012 corresponderam a 20,4% da população dos EUA.
A vitória de Dilma, portanto, é democraticamente mais representativa do que a de FHC em 1994 e a de Obama em 2012.
Diante desses números, que espécie de imbecil chamaria a sua vitória de “pífia”?
Enquanto a vitória de Dilma não se consolidar profundamente na consciência de uma população de 203 milhões, o ano de 2014 não terá terminado.
A mesma coisa vale para o triste aniversário de 50 anos do golpe de 1964.
A data não foi, nem de longe, devidamente lembrada este ano.
Se tivesse sido, não o terminaríamos com marchas, atreladas ao candidato derrotado Aécio Neves, pedindo uma nova intervenção militar no país.
A nossa mídia, cúmplice do golpe, fez um teatrinho jornalístico durante a semana de aniversário da queda do regime democrático, mas não teve a competência de produzir uma visão de conjuntura sobre o que aconteceu.
Não teve a competência e não teve vontade para descrever o golpe como uma trágica agressão ao povo brasileiro.
Muita ênfase foi dada a algumas centenas de torturados e assassinatos políticos.
Quase nada foi dito sobre os milhões de brasileiros que sofreram com um regime no qual os salários eram arrochados sem que o trabalhador tivesse direito de protestar.
Quem poderá calcular, objetivamente, quantos milhões de brasileiros morreram em função dos arbítrios políticos e econômicos da ditadura?
Muitos enchem a boca para falar dos milhões de mortos pelos regimes comunistas, sobretudo o chinês e o russo, países com população enorme. Não lhes tiro totalmente a razão. O comunismo cometeu erros trágicos, e pagará por eles durante muito tempo. Mas por que se isenta a ditadura do mesmo tipo de responsabilidade? Por que não é também culpada pela morte de milhões de brasileiros, por fome e doenças, ao longo de 21 anos, e que talvez não tivessem morrido se algumas reformas básicas houvessem sido implementadas no país?
A ausência deste debate, no aniversário de 50 anos de golpe, significa que o ano de 2014 só vai terminar quando ele for realizado em sua plenitude, diante das massas.
E ele jamais será realizado enquanto a nossa mídia for controlada pelas mesmas empresas que se beneficiaram da ditadura.
O terceiro e último evento do ano, que fará 2014 se estender ao longo dos próximos meses, quiçá anos, é a Operação Lava Jato.
O que ela significa, realmente?
Quais serão suas consequências?
Estamos diante, novamente, de dois fatores de igual importância.
Em primeiro lugar, um escândalo real de corrupção, de grandes proporções.
Esse é o lado positivo, porque a corrupção só pode ser combatida quando é descoberta. E a corrupção, sobretudo quando envolve medalhões da política, só é descoberta quando há uma atmosfera de liberdade democrática e quando o governo confere autonomia aos órgãos que investigam.
Essa liberdade democrática, num país politicamente ainda atrasado, só existe quando há uma delicada conjuntura, a qual poderia ser quebrada se tivéssemos, por exemplo, uma mídia ocupando o Executivo, como seria, caso o PSDB tivesse vencido das eleições.
Por outro lado, temos mais um exemplo nefasto de manipulação da mídia, cujos tentáculos se estendem em todas as direções. Esse é o lado fortemente negativo, porque a mídia pega um escândalo real, que está sendo investigado, e o transforma numa arma política.
A politização da mídia, contudo, e o uso político de escândalos de corrupção, acontecem em toda democracia.
É algo trivial, talvez necessário.
O problema da mídia brasileira não é ser de oposição. Isso é até saudável.
O problema, no Brasil, é a concentração da mídia, que sufoca o debate plural sobre os significados e consequências desses escândalos políticos, e agride a democracia.
Ainda assim, eu me agarro a uma visão hegeliana e procuro ver, no aspecto negativo da Lava Jato, nesta descarada e golpista manipulação midiática, um efeito dialético positivo.
É uma forma de pensar algo desesperada, sem deixar de ser lúcida e objetiva.
A consciência do papel da comunicação na luta política atingiu um estágio tão agudo, que todo o golpismo da mídia apenas serve para ampliar ainda mais essa consciência.
E quanto mais nervosa, autoritária e desesperada se torna a mídia, mais urgente, democrática e saudavelmente desesperada se torna a nossa consciência sobre o problema da comunicação política.
Ou seja, quanto mais a mídia bate no joão bobo, mais o joão bobo fica esperto.
É um processo irreversível.
Enquanto os zumbis da mídia mergulham numa espécie de loucura pró-golpista, fazendo marchas pró-intervenção militar e aderindo a um comportamento positivamente idiota e binário em relação à corrupção, os setores progressistas se tornam mais angustiadamente conscientes de que a corrupção só poderá ser combatida através de um processo de radicalização democrática.
Então, mesmo que a Lava Jato seja instrumentalizada para se tornar não uma operação que visa, honestamente, combater a corrupção na Petrobrás, mas sim um cavalo de tróia para reposicionar setores políticos derrotados nas urnas, mesmo que isso aconteça, também servirá para expandir a nossa consciência.
Este é o nosso grande trunfo: a nossa consciência.
Isso é que assusta os reacionários de todos os tempos, desde os esnobes aristocratas do ancien regime até os melancólicos pós-golpistas da atual mídia brasileira.
A gente sabe que há corrupção no governo, no congresso, nas estatais, que o PT é um partido cheio de problemas, que a Dilma tem inúmeros defeitos.
A gente sabe de tudo isso.
Mesmo assim, não votaremos jamais em quem não identificamos um compromisso profundo com a democracia e com o bem estar da maioria da população.
Eles não conseguem mais nos enganar.
A luta contra a corrupção é uma luta popular, não da mídia, porque a mídia sempre se beneficiou da corrupção.
A mídia brasileira foi construída com dinheiro público desviado, sonegação e ditadura.
Queremos combater a corrupção nos marcos do respeito à democracia, e sob a égide de um governo sensível às necessidades do povo, porque entendemos que somente um governo assim pode, efetivamente, fundar uma nova moral pública, baseada na honestidade.
Não adianta, senhores barões da mídia.
O ano de 2014 vai terminar um dia, e a derrota da mídia, a meu ver, é inevitável.
Perderá no voto, perderá na interpretação de seu papel em 64, e perderá, de uma forma ou de outra, a batalha pela narrativa da corrupção.
Como dizia Zé Keti, numa canção que acabou por se tornar uma belíssima metáfora da luta democrática contra a ditadura, e que agora novamente se torna uma triste ironia contra a truculência da mídia e da oposição conservadora:
“Podem me prender, podem me bater, que eu não mudo de opinião.”
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