Foto: Jornalistas Livres |
A estreia da Frente Brasil Popular nas ruas do país neste sábado - com maior intensidade em São Paulo, onde oito mil pessoas atenderam ao chamado do novo comitê unificado do campo progressista brasileiro - merece atenção.
O que engatinha, ainda em fraldas, não é apenas a construção de um novo aparato mobilizador, mas sobretudo, a convergência de agendas que vão definir o programa único de lutas e reivindicações populares.
O desafio não é retórico.
Trata-se de sinalizar um futuro alternativo, e crível, ao assalto em curso da restauração neoliberal no país.
Fazê-lo a partir de lutas e intervenções firmes e consequentes, a ponto de conquistar a adesão e o consentimento da maioria da população é a linha de passagem capaz de levar o país até 2018, sem o golpe.
E de vencer os golpistas consagradoramente então.
Essa é a essência do jogo que começou a ser jogado.
A Frente Brasil Popular içou velas no turbulento oceano político que nos separa daquele momento, disposta a ser o casco e o leme da candidatura que enfrentará a direita unificada no escrutínio histórico que ocorrerá então.
Todo o esforço do conservadorismo hoje consiste em fraturar e obstruir essa travessia.
Inviabilizar o governo Dilma, engessando-o em um pântano de sabotagem econômica e constrangimento institucional é a tática da hora.
Outra, consiste em excluir o nome do ex-presidente, Luís Inácio Lula da Silva, da cédula eleitoral de 2018, como possível candidato da frente que ora se forma.
É compreensível o temor que o confronto inspira nas elites e na borra reacionária que as sustenta.
Sem financiamento empresarial de campanha, com interesses e antagonismos explicitados pela transição de ciclo de desenvolvimento, e uma ênfase em ideias, não em publicidade, o embate sucessório de 2018 caminha para ser o palco pedagógico das contradições que ora travam o passo seguinte do desenvolvimento brasileiro.
Mais ou menos o oposto do que se vê nesse momento.
O assalto em curso da restauração neoliberal avança com relativa facilidade graças ao vácuo de uma dissipação organizativa e ideológica sedimentada nos últimos doze anos.
A reforma ministerial promovida na última semana, correta nas circunstâncias, na medida em que cindiu o golpismo cooptando um pedaço dele, evidencia ao mesmo tempo o grau de fragilidade em que se encontra o campo progressista, paradoxalmente depois do seu mais longo e frutífero ciclo de governos no país.
A despolitização da agenda do desenvolvimento explica uma boa parte desse paradoxo.
Uma mistura equivocada de economicismo e busca de indulgência junto aos detentores da riqueza cimentou um pragmatismo cego que creditou às gôndolas dos supermercados a tarefa de promover a conscientização popular na defesa das conquistas - inegáveis, diga-se, registradas desde 2003.
O PT e uma parte de seus dirigentes – mas também círculos de seu entorno intelectual - deixaram-se hipnotizar de algum modo pela miragem do boom de commodities, como se capitalismo fosse o consenso e não a tensão na história.
Durante um período longo demais, muitos dentro do governo e do PT acharam que essa era uma ‘não-questão’.
Que tudo se resolveria com avanços incrementais no consumo, que se propagariam das geladeiras abastecidas para a correlação de forças da sociedade, em uma espiral ascendente e virtuosa.
O absenteísmo em relação às bases, às ruas e à luta ideológica; a inexistência de canais de comunicação próprios com a sociedade, tudo parecia tangencial diante do persuasivo poder do tíquete médio de um crescimento contínuo em que, como se disse durante anos, todos ganhariam.
De fato, ganharam.
A eclosão da desordem neoliberal em 2008, porém, sacudiu esse interregno de conforto expondo com virulência o reduzido grau de tolerância conservadora à construção de uma verdadeira democracia social no Brasil, quando isso implica dividir a riqueza existente, não apenas o fluxo, mas o estoque também.
Fez mais que isso.
Escancarou a frágil organização progressista em um cenário em que o crescimento do excedente já não acomodaria mais os compromissos e os conflitos da sociedade.
O deslocamento do jogo em que todos ganham, para o enfrentamento bruto entre arrocho ou tributação da riqueza financeira, passaria então a dar as cartas na mesa.
Que esse novo tempo tenha liberado o ódio latente ao PT e aos segmentos populares, é compreensível.
Que tenha empalmado inclusive setores incorporados ao mercado de massa nos últimos doze anos, escancara os limites do economicismo que orientou a construção da governabilidade progressista desde 2003.
A contradição atingiu dimensões suficientes para encorajar a direita e seu dispositivo midiático a empreender um mutirão determinado não apenas a derrotar o PT nas urnas, mas a destruí-lo e a seus dirigentes, banindo-os da vida política brasileira.
Não há certeza de que não serão bem sucedidos.
A beira do precipício histórico resgata uma discussão inscrita no DNA da esquerda em nosso tempo, mas abandonada no Brasil à medida em que a governabilidade parlamentar monopolizou as energias e desafios do exercício no poder.
Como ir além dos limites intrínsecos à construção da justiça social numa época cuja singularidade decorre de o Estado não deter mais o poder de comandar o mercado; e a democracia promete mais do que a livre mobilidade dos capitais está disposta a conceder?
Uma primeira pista é que não se pode atribuir à economia aquilo que compete à correlação de forças decidir. Por exemplo, decidir dar funcionalidade ao controle de capitais, subtraindo aos mercados a prerrogativa de desossar as urnas, chantagear partidos, acuar governantes e indiferenciar programas.
A repactuação de um novo ciclo de investimento com distribuição da riqueza é indissociável do avanço da democracia participativa. Inclua-se aí a democratização do sistema emissor de ideias, hoje detido pelo oligopólio das comunicações no país.
O resto é arrocho.
Entre os requisitos para que não o seja inclui-se refazer o caminho de volta às ruas.
Não em eventos esporádicos de uma estrutura esclerosada que desaprendeu a andar no asfalto e na lama das periferias.
Mas através de um novo protagonista coletivo.
Que impulsione as partes do todo de fora para dentro; que tenha estatura, capilaridade e força superior a todas elas, sendo capaz, assim, de fazer o que nenhum de seus componentes unilateralmente conseguiria: alterar a correlação de forças, superando na prática a ilusão de que é possível radicalizar direitos sociais negados pelos mercados, sem radicalizar a democracia.
Não será viável avançar nesse percurso à margem da organização e do discernimento crítico de seus principais interessados.
A nova classe trabalhadora surgida na última década, sugestivamente dissimulada em um eufemismo da sua verdadeira natureza histórica -- ‘nova classe média’—terá que assumir o protagonismo verdadeiro para não sucumbir à uma regressão devastadora.
O sujeito do processo não pode permanecer alheio às raízes do conflito que decidirá o seu destino, sob pena de condenar a sociedade a uma espiral descendente de incerteza e impasse insustentáveis.
Devolver-lhe a identidade política implica dotá-lo de organização e discernimento correspondente ao peso ordenador que passou a ter na economia e na correlação de forças de um período.
A despolitização do projeto de desenvolvimento nos últimos anos levou esse contingente a enxergar sua inserção no mundo como uma relação pessoal com a gôndola e com o limite do cartão de crédito.
Pesquisas nas mãos do PT mostram a desilusão brutal deflagrada pela crise nessa base terceirizada aos supermercados.
Decorre daí uma ruptura que não se sabe se ainda reversível.
A aderência anterior entre o que se convencionou chamar de lulismo e suas referências políticas, esfumou-se.
Esse, na verdade, é o ‘grande ajuste’ que desafia o Brasil progressista na caminhada rumo a 2018.
Trata-se de entender e superar uma clivagem entre o país que ascendeu ao consumo de massa, mas que não se tornou protagonista histórico do próprio destino.
E de fazê-lo em um momento em que as gôndolas já não entregam mais o que prometeram.
Não será fácil.
Mas tampouco a cooptação desse universo será um passeio para o conservadorismo.
Por razões objetivas, mesmo o lulismo desiludido continua a orbitar na lógica oposta a das elites.
Ao trazer 60 milhões de brasileiros ao mercado e à cidadania, o ciclo petista esburacou de maneira formidável a estrada na qual o conservadorismo costumava engatar a ré e acelerar o retrocesso político e econômico, sem nem consultar o espelho retrovisor.
Não é mais possível faze-lo assim.
Daí a hesitação do golpismo diante do pênalti imposto ao campo progressista, mas que agora quer bater com a adicional garantia de que não haverá guarda-metas no gol.
Quando um melífluo FHC exige que Dilma faça o trabalho sujo do arrocho e depois renuncie -- ‘no prazo de um ano’, é porque desconfia que só um termidor repressivo devastador, de consequências imprevisíveis, permitiria reverter o potencial econômico e político acumulado desde 2003.
Moro é isso: o golpe por etapas, assim graduado pela hesitação golpista.
A boa notícia na praça é que o campo progressista resolveu se unir para barrar esse risco nas ruas e se credenciar como sujeito dessa que avulta como uma das mais virulentas transições de ciclo de desenvolvimento já enfrentadas pelo país.
Basta lembrar de 32; 54; 64; 1985 e 2002 para se ter a dimensão da explosividade em curso.
A encruzilhada brasileira decorre em boa parte desse descompasso entre requisitos econômicos e regulatórios impostos pela transição de ciclo mundial e local, e a ausência de sua contrapartida no escopo da correlação de forças existente no país nesse momento.
Calafetar a greta histórica é o grande salto ao qual se propõe a Frente Brasil Popular.
Oxalá seja entendida assim pelo conjunto dos partidos, lideranças, movimentos sociais, centrais de trabalhadores e trincheiras intelectuais, como é o caso do Fórum 21.
Esse é o requisito para adquirir a força e o consentimento necessários ao seu teste final: as urnas de 2018.
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