domingo, 15 de setembro de 2019

Lava-Jato e os sentidos da aniquilação

Por Gustavo Conde, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:

“Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa” - Guimarães Rosa

Um dos efeitos colaterais mais extraordinários que a língua humana provoca é o apagamento de sua origem. O sentido das palavras nos é dado como que por mágica e o tomamos como pré-existente a tudo.

Esse fenômeno foi nomeado como “esquecimento n.1” pelo filósofo e linguista francês Michel Pêcheux. A ideologia nos afeta e nos faz acreditar – em grande medida – que somos fundadores do próprio sentido que se recicla em nosso discurso.

Tal processo ainda subsiste na contraface do inconsciente, que nos atravessa a economia do desejo e transforma nossas narrativas pessoais em sintoma, fazendo do próprio debate público, muitas vezes, um jogo libidinal.

O termo ideologia, por sua vez, semanticamente tão surrado, não é uma estrutura malévola que nos projeta em alienação permanente. É apenas – e no conceito – um conjunto de valores e de discursos que nos atravessa e que nos permite enunciar e jogar o jogo da linguagem, mediada por pressões institucionais de toda sorte.

A ideologia é o tabuleiro dos sentidos.

A enunciação

A cena da enunciação que movimenta a engrenagem dos sujeitos e da linguagem – e consequentemente da política – é, portanto, complexa, e não se submete às análises simplórias de “apagamento” propostas pelos veículos de comunicação corporativos que por sua vez se consideram proprietários da interpretação de mundo, como ilusão desdobrada da subjetividade possível.

Em outras palavras, a interpretação dos enunciados na cena pública não pode se dar apenas na dimensão gramatical sujeito-verbo-objeto (que apaga a origem dos sentidos da língua), mas deve e pode ser restaurada na dimensão social sujeito-história, que restitui parte do rastro semântico que fundamenta nossa atividade enunciativa e nossa própria existência simbólica.

A codificação

Se essas regras de interpretação valem para todo e qualquer enunciado, no contexto de vazamento de informações publicadas na imprensa há sutilezas. Três dimensões devem ser restauradas neste caso: a cena pragmática dos diálogos, os papéis públicos dos enunciadores e a gravidade implicada nas possíveis violações ali expostas.

O embate de interpretação se dá exatamente na articulação dessas três dimensões. No entanto, elas se desdobram e promovem uma proliferação de possibilidades semânticas, tornando rarefeito o valor de “verdade” e deslocando as atenções para o “embate de leituras”.

O ex-juiz Sergio Moro e o procurador Deltan Dallagnol, protagonistas da obscenidade institucional que caracterizou os bastidores da operação Lava Jato, foram prodigiosos em desovar contra-enunciados de “fragmentação”, que, por sua vez, promoveram um estilhaçamento dos sentidos e das leituras possíveis – sob conivência e amparo do jornalismo de guerra ora vigente no Brasil.
Relembremos: em um primeiro momento, Moro não negou a autoria das mensagens divulgadas pelo site The Intercept Brasil, tampouco confirmou. Criou-se de antemão uma zona obscura. Na sequência, no entanto, ele admitiu que poderia ser o autor das mensagens, mas que “não se lembrava” delas.

A pressuposição

Na mesma sequência, nem assim tão lógica, Moro defendeu que as mensagens não continham qualquer tipo de gravidade, admitindo, no regime dos pressupostos, tê-las enunciado.
Esse é um movimento defensivo de “controle”. Quase como uma confissão de culpa, Moro quis controlar o contexto de emergência das mensagens que admite – ainda que implicitamente – ter produzido.

A benevolência com que a imprensa brasileira costuma tratar os enunciados de representantes de seu espaço ideológico – a direita não democrática –, por sua vez, ainda favoreceu o ex-juiz, legitimando um amplo controle no próprio regime de interpretação de seu delito.

A onipresença

Pode-se notar, portanto, que a função sujeito/instituição (Sergio Moro/ministro da Justiça) se alastrou nos campos da interpretação pública e da própria investigação: quem investiga o escândalo de promiscuidade institucional e uso de cargo público para favorecimento pessoal e político é a própria Polícia Federal submetida ao investigado/suspeito, então ministro da justiça.

Trata-se de uma onipresença, sustentada por dispositivos de poder corporativos e historicamente autoritários, além de uma surpreendente truculência cruzada bastante conhecida da cena pública brasileira: mentiras oficiais de governos impopulares associadas a confirmações bem-comportadas da imprensa.

Fecha-se, assim, um trabalho hercúleo de controle de sentidos, tão surpreendente quanto um juiz de primeira instância impondo sua compreensão do direito à Suprema Corte – quando deveria ser o contrário.

O mérito desse poder, no entanto, não é intelectual: é conjuntural. O ex-juiz havia ocupado anteriormente o papel de porta-voz oficial na esteira do simulacro de indignação inoculado na opinião pública brasileira, representado em grande medida pela dicção oficiosa dos veículos de comunicação.

O simulacro

A esta personagem insignificante, vetor e depositário do ódio residual de uma elite perdedora não democrática, foi dada uma importância muito além de suas possibilidades. Sergio Moro não tem carisma, ethos, personalidade e quaisquer atributos associados a proficiência retórica.

Sua arguição é tecnicamente precária, sua iconografia é obscurantista, sua escrita carece da coesão textual elementar adquirida no ensino básico e sua presença cênica lembra uma figuração de segunda classe ou a própria agonia existencial postulada pelo Barão de Munchausen: um sujeito que busca salvar a si mesmo, puxando-se do pântano pelos cabelos.

Foi o amargo preço de uma onipresença forçada.

Em outras palavras, aquele que jamais foi protagonista se viu, com os vazamentos do The Intercept Brasil, diante do espelho impiedoso da história: um simulacro fracassado.

O estilhaçamento

A linguagem humana passa por transformações consideráveis depois da massificação do sentido nas plataformas digitais. A hiper estrutura quase autônoma que encadeia significantes e significados (a língua, para Ferdinand de Saussure) passou a realizar protocolos de codificação e injunção mais complexos que a mera interação social sujeito-instituição-sujeito.

A interação digital impõe uma escuta coletiva permanente que modifica a restauração do sentido dos enunciados. O “dizer” individual e privado saltou para um púlpito tecnológico que lhe consagra ao escrutínio perpétuo. É uma agonia que nos aprisiona a uma nova lógica social.

É também um processo traumático e assustador, mas ao mesmo tempo, libertador: para se restituir o gozo à intimidade do discurso é preciso ressignificá-la. Ou: quando os sentidos consagrados se estilhaçam, abre-se uma janela para um novo mundo – o que exige ação concreta dos sujeitos.

As mensagens privadas – que não são privadas –, publicadas pelo site The Intercept Brasil e que revelam o conluio entre juízo e Ministério Público na condenação do ex-presidente Lula entram nesse novo mundo do estilhaçamento dos gêneros e dos sentidos.

A grade possível para sua interpretação não remonta mais ao regime de pressupostos bem-comportados chancelado e institucionalizado pela leitura postulada pelos veículos de comunicação.

A judicialização

Quando o ex-juiz Sergio Moro desaconselha a investigação sobre o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, por entendê-lo como um aliado, ele escancara a conivência partidarizada instalada no judiciário.

Essa conivência alimenta a intolerância política, mas, ao mesmo tempo, fundamenta o clima de terror político instalado desde o golpe de 2016 no Brasil: para adeptos do ódio, há um prazer adicional em saber que a condenação do maior líder popular do país se deu sob ação política.

O enunciado privado que revela prevaricação ganha o significado de “autenticação política”, não de prova incriminatória, pois a escuta estilhaçada que domina a cena pública digital produziu mais um efeito perturbador – agora sob a regência da própria operação Lava Jato e seu discurso maníaco de “combate a corrupção”: a judicialização da linguagem.

O Castigo

Os becos sem saída se multiplicam, mas os efeitos colaterais são para todos os lados. A blindagem de um ex-juiz que violou praticamente todos os protocolos do direito público e foi agraciado com um ministério justamente por isso, ricocheteia na constatação de que a pior das maldições é o próprio substrato químico desta blindagem.

O ex-juiz Sergio Moro já está condenado pelos crimes que cometeu. Se houver um futuro, nele dir-se-á: ele “foi” ministro de Jair Bolsonaro.

Não há castigo pior do que ser obrigado a ostentar esse item na própria biografia. Pertencer ao primeiro escalão de um governo chefiado por um pária internacional com extensa ficha de abominações verbais e suspeições venais é, por si, a maior das humilhações.

A dispersão

O direito, a teoria da linguagem e as redes sociais convergem para uma nova ordem na dispersão da subjetividade e nos processos de interpretação. A tese do apagamento da origem semântica subscrita nas línguas humanas como condição sine qua non para a existência do enunciado também pode ser projetada em um novo lote de simulacros à disposição no mercado dos sentidos.

Lacan dizia que “o sujeito não sabe o que fala porque ele não sabe o que é”. Neste sentido, desconhecer a origem de si é também desconhecer a origem do que se diz.

A hipótese da análise do discurso francesa, de que o apagamento da origem do sentido é estrutural para que haja uma língua e um discurso, pode ser fatorada em níveis mais superficiais como o do discurso político.

Sergio Moro e congêneres – e o próprio direito submetido a pressões de turno – podem mesmo acreditar que praticam alguma espécie de combate à corrupção, por mais inusitado que isso possa parecer à observação empírica.

Chega a surpreender bastante, mas uma operação policial cuja estrutura mais profunda é a própria corrupção em sua acepção clássica, legitimou-se no horizonte da cena pública brasileira – igualmente corrompida pela imprensa – dizendo “combater” a corrupção. Um potencial relato de caso para os anais da contradição.

A farra das mensagens que revelou um procurador buscando desesperadamente o enriquecimento ilícito e um juiz assumindo o papel de coordenador de força-tarefa, dentre tantas outras obscenidades e a despeito da gravidade moral e judicial ali embutida, estabeleceu, entre outras coisas, um novo capítulo de negação da realidade, desencadeando uma profusão de memes de internet e entrando para o folclore das bestialidades grotescas do submundo político-judicial brasileiro.

Negar a realidade, afinal, é também negar processos de significação.

A coação

Diante da perplexidade do jornalista americano Glenn Greenwald em testemunhar a inércia inicial do nosso sistema institucional em reagir ao escândalo da Vaza Jato, resta uma cifra de compreensão.

O vencedor do prêmio Pulitzer e editor-chefe do site The Intercept Brasil desafiou não apenas o mais célebre sistema de lawfare já constatado no campo do direito: ele identificou uma rede complexa de conspirações que transcendem a mera expectativa de punição pontual.

A interpretação, sabemos, sempre foi controlada, mas no caso da repercussão da reportagem Vaza Jato, ela foi também coagida.

A diversidade de interpretações – cara ao segmento democrático – que respeita as possibilidades múltiplas de se produzir sentido e valor de verdade através do árduo trabalho cognitivo que é articular enunciados, mapear intertextos e correlacionar argumentos, deu lugar à judicialização da linguagem, que destilou sua sanha punitivista ao segregar e culpabilizar aqueles que não se submetem ao discurso único do aniquilamento (de sentido, de um país).

O jogo de interpretações, no entanto, não tem fim. E o sistema espontâneo da língua sempre encontra uma “vacina” para as tentativas reincidentes de domesticação feitas pela estrutura de poder.

A história

As mensagens trocadas por Deltan Dallagnol e Sergio Moro configuram um dos registros jornalísticos mais eloquentes de nosso tempo – e ao mesmo tempo, mais degradantes.

Ao testemunhar esse conjunto de gestos e ações mergulhados no ambiente putrefato do oportunismo político e do auto favorecimento rudimentar, o trabalho de Glenn Greenwald se impõe como um divisor de águas na imprensa internacional.

Denuncia-se ali uma pletora de monstruosidades: um governo de pendores fascistas, uma cultura de vingança, um sistema conspiratório, uma imprensa instrumentalizada e o conjunto ilustrativo dos delitos mais elementares e abomináveis.

A história – é crucial que se diga – não quer saber de vencedores, muito menos dos maus vencedores. Esta tese envelheceu (teses envelhecem).

A história quer saber de interpretações.

O embate entre o aniquilamento dos sentidos e a construção dos sentidos pode até demorar para que se chegue a um termo – até porque desfechos não são bem-vindos no emaranhado narrativo que subjaz às dicções do tempo.

A luta entre o bem e o mal, por sua vez, é outro simulacro.

A resposta para este momento tão peculiar da história brasileira será conquistada através da formulação incessante que caracteriza a busca civilizatória – por mais agônica que seja – instada na confecção de artigos, reflexões, ensaios, resenhas, gestos, discursos, teses e propostas soberanas de restauração social.

Os sentidos da aniquilação que deflagram o espírito vingativo de um tempo insano são apenas o substrato que prepara a linguagem para uma nova safra.

A democracia é um elemento estruturante da língua humana. Enquanto houver essa língua, seu retorno é uma questão de tempo.

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