Por Aldo Fornazieri, no Jornal GGN:
Se a queda moral dos bolsonaristas ainda não representa uma reversão das posições ofensiva/defensiva na relação com o PT e o campo progressista, ao menos, no momento, equilibra um pouco mais o jogo nas escaramuças e do fogo cruzado da política entre governistas e oposicionistas. O desfecho da luta pela ocupação da posição ofensiva vai depender do desdobramento da crise, das ações do governo, das ações da oposição e da virtude e capacidade dos líderes em conduzir as batalhas.
É importante observar que nenhuma força que detém o poder conseguirá mantê-lo se estiver numa longa defensiva moral. Da mesma forma, nenhuma força de fora do poder conseguirá vitórias significativas se estiver na defensiva moral. Na política brasileira recente sobram exemplos para ilustrar essas situações. Mesmo no campo militar, a defensiva moral é coveira de forças poderosas. Basta lembrar o exemplo dos Estados Unidos no Vietnã: lutavam uma guerra injusta que os colocou na defensiva moral junto à opinião pública interna e internacional, fator decisivo na sua derrota e retirada dos americanos. Ocorre que a defensiva moral erode a autoridade, a legitimidade, a confiança e o ânimo de quem a carrega, por mais meios de poder que detenha.
A moralidade, assim como a perversidade e o egoísmo, é uma potência inerente à natureza humana. Sua aspiração torna-se mais forte à medida em que as sociedades se humanizam e se civilizam, afirmam direitos, justiça, igualdade e liberdade. A exigência de conduta moral tornou-se um paradigma do republicanismo clássico por entender que o Estado deve ser res publica. E daí vem o forte repúdio às práticas de corrupção.
A exigência de moralidade na vida pública, no entanto, não está isenta de problemas. Ocorre que o discurso moral pode ser manipulado e tornar-se moralismo. O moralismo pode ser entendido como aquela atitude que se empenha em moralizar todas as coisas e situações sem expressar uma compreensão sobre as quais o moralismo se manifesta. Assim, o moralismo se esvazia de conteúdo e se torna uma mera retórica incitadora de valores igualmente vazios. Veja-se, como ilustração, a fórmula “O Brasil acima de todos e Deus acima de tudo”. O que significa isto? Nada! Trata-se de um mero formalismo, carente de qualquer conteúdo, de qualquer significado real.
Ocorre que o moralismo vem imbricado com uma aspiração justa: o combate à corrupção, embora o moralismo seja incapaz de combate-la, pois esta requer leis pertinentes de punibilidade, a certeza de sua aplicabilidade e mecanismos de controles públicos e sociais do poder. Ademais, o moralismo vem carregado com as ideias de purificação, de pureza e de limpeza, mesmo que esta seja feita pelos instrumentos demoníacos da violência. O moralismo político, por ser um ardil na busca do poder ou de sua manutenção, sugere a violação da Constituição e das leis em nome da pureza. Ele contamina a decisão judicial, pois os juízes emitem sentenças, não a partir da Constituição, das leis e da técnica jurídica, mas a partir de sua vontade moral. Contamina as políticas públicas, pois estas também são moldadas a partir dos valores morais dos agentes públicos e políticos e não a partir das necessidades e dos direitos sociais dos cidadãos. Contamina também a elaboração legislativa, pois a carga moral conservadora privilegia grupos específicos e bloqueia direitos civis e políticas sociais necessárias.
O moralismo, em nome de valores genéricos e vazios, escamoteia os que são os verdadeiros injustos e os injustiçados e disfarça a injustiça real assentada na desigualdade, pois a sua clivagem é entre os puros e os impuros. O moralismo é uma forma de autoritarismo e pode generalizá-la, pois, em nome dos valores morais, a alteridade é negada e pretende-se construir a nação como um lugar exclusivo para os iguais iniciados na comunidade dos puros. Em regra, os moralistas são hipócritas já que não praticam o pregam e usam o próprio moralismo não para uma melhora moral da sociedade, mas para conquistar e manter o poder. Não há um conteúdo moral no moralismo, mas mero uso instrumental.
Note-se que quase todos os políticos que foram às ruas exigir moralidade pública e o impeachment de Dilma se revelaram como moralistas sem moral, pois eram corruptos juramentados. O sistema, corrupto que era de fato, entrou em colapso, mas não foi superado. Valendo-se dessa situação, Bolsonaro apresentou-se como o último baluarte da moral e como o candidato antissistema. Sem que se completassem ainda 30 dias de governo, esse baluarte ruiu e mergulhou nas profundezas apodrecidas do sistema. A família Bolsonaro emergiu desse lodo como uma família de moralistas sem moral. Com isso, Bolsonaro perdeu a pureza e a condição de ser o eleito de Deus, por revelar-se um pecador.
Há que se notar que o discurso moralista tem uma grande capacidade persuasiva e de convencimento nos momentos das disputas, pois ele se isenta de fornecer explicações racionais. Este poder persuasivo aumenta se a sociedade está desesperançada, mergulhada na crise e nas vicissitudes do desemprego e da pobreza. Todo o mal é atribuído à corrupção que, de fato, é um mal, mas não o único e talvez nem o mais importante. Já o moralismo instalado no poder é um instrumento frágil de sua manutenção, pois o elemento mais valioso da manutenção do poder são os resultados proporcionados pelo governante em benefício dos governados. Quando os governados se sentem enganados, a sua cobrança por resultados será mais incisiva e o repúdio ao governo fracassado será ainda mais contundente. Este agora é o grande risco de Bolsonaro que poderá ver sua lua de mel com os eleitores drasticamente reduzida.
O equacionamento da crise Queiroz-Bolsonaro não é fácil. A solução mais radical seria a renúncia de Flávio ao mandato de senador. O presidente Jair Bolsonaro, claro, não pode ser imputado pelos elementos do escândalo, mas pode ser investigado, o que o enfraquecerá politicamente. Se a crise se agravar, poderá ocorrer um aumento da tutela dos militares sobre o presidente. Se se tornar incontrolável, no limite, poderá ser pressionado a renunciar. Mas a hipótese mais provável é que ele permaneça na presidência sob forte tutela dos generais de seu governo.
Bolsonaro, seus filhos e os bolsonaristas não poderão mais atacar Lula, a esquerda, o PT, o Psol e os movimentos sociais com a mesma desenvoltura que vinham atacando. As oposições agora também estão municiadas para o fogo cruzado. O Ministério Público, o Judiciário e Sérgio Moro foram postos contra a parede pela crise. Ou darão respostas claras e convincentes à sociedade ou a máscara enganosa de sua imparcialidade será rasgada para revelar rostos acabrunhados ou desavergonhados da cumplicidade com a corrupção e com o crime.
A crise Queiroz-Bolsonaro é a continuidade da crise anterior, é a crise de um sistema falido que não quer morrer. É a crise da incapacidade das forças políticas em reformar o sistema. É a crise da falta de lideranças virtuosas e corajosas. O que se tem são políticos acostumados à política miúda, aos conchavos, à manutenção de uma ordem institucional ineficiente que esmaga os direitos dos cidadãos. É a crise da manutenção dos privilégios inescrupulosos e criminosos que condenam o futuro da juventude e do país.
O escândalo Queiroz-Bolsonaro desfez o mito do justiceiro da pureza e fechou o caminho aos bolsonaristas em sua caminhada rumo à comunidade dos bem-aventurados. Agora eles precisam caminhar na estrada dos malditos junto com gente pecadora do PT, do PSol, do MDB, do PSDB etc. É neste jogo brutal dos interesses e das necessidades que os bolsonaristas terão que se ater. Sem o manto da pureza, terão que se revelar quem realmente são. E se o governo não for capaz de dar respostas às dramáticas necessidades sociais, a onda bolsonarista poderá se espatifar nas mãos de um povo irado, pois o povo não perdoa moralistas sem moral.
O escândalo que envolve Flávio Bolsonaro e a própria família do presidente da República vem se revelando bem mais grave do que parecia no início: suspeita de lavagem de dinheiro, de corrupção e até de envolvimento com as milícias. Este escândalo tem um grande alcance na disputa política em geral e na disputa pelo poder. Ele representa a queda moral dos bolsonaristas, pois eles eram os detentores quase exclusivos do discurso moral, condição que lhes dava grande vantagem estratégica já que os mantinha na ofensiva retórica e embretava seus adversários, principalmente o PT, numa já prolongada defensiva.
Se a queda moral dos bolsonaristas ainda não representa uma reversão das posições ofensiva/defensiva na relação com o PT e o campo progressista, ao menos, no momento, equilibra um pouco mais o jogo nas escaramuças e do fogo cruzado da política entre governistas e oposicionistas. O desfecho da luta pela ocupação da posição ofensiva vai depender do desdobramento da crise, das ações do governo, das ações da oposição e da virtude e capacidade dos líderes em conduzir as batalhas.
É importante observar que nenhuma força que detém o poder conseguirá mantê-lo se estiver numa longa defensiva moral. Da mesma forma, nenhuma força de fora do poder conseguirá vitórias significativas se estiver na defensiva moral. Na política brasileira recente sobram exemplos para ilustrar essas situações. Mesmo no campo militar, a defensiva moral é coveira de forças poderosas. Basta lembrar o exemplo dos Estados Unidos no Vietnã: lutavam uma guerra injusta que os colocou na defensiva moral junto à opinião pública interna e internacional, fator decisivo na sua derrota e retirada dos americanos. Ocorre que a defensiva moral erode a autoridade, a legitimidade, a confiança e o ânimo de quem a carrega, por mais meios de poder que detenha.
A moralidade, assim como a perversidade e o egoísmo, é uma potência inerente à natureza humana. Sua aspiração torna-se mais forte à medida em que as sociedades se humanizam e se civilizam, afirmam direitos, justiça, igualdade e liberdade. A exigência de conduta moral tornou-se um paradigma do republicanismo clássico por entender que o Estado deve ser res publica. E daí vem o forte repúdio às práticas de corrupção.
A exigência de moralidade na vida pública, no entanto, não está isenta de problemas. Ocorre que o discurso moral pode ser manipulado e tornar-se moralismo. O moralismo pode ser entendido como aquela atitude que se empenha em moralizar todas as coisas e situações sem expressar uma compreensão sobre as quais o moralismo se manifesta. Assim, o moralismo se esvazia de conteúdo e se torna uma mera retórica incitadora de valores igualmente vazios. Veja-se, como ilustração, a fórmula “O Brasil acima de todos e Deus acima de tudo”. O que significa isto? Nada! Trata-se de um mero formalismo, carente de qualquer conteúdo, de qualquer significado real.
Ocorre que o moralismo vem imbricado com uma aspiração justa: o combate à corrupção, embora o moralismo seja incapaz de combate-la, pois esta requer leis pertinentes de punibilidade, a certeza de sua aplicabilidade e mecanismos de controles públicos e sociais do poder. Ademais, o moralismo vem carregado com as ideias de purificação, de pureza e de limpeza, mesmo que esta seja feita pelos instrumentos demoníacos da violência. O moralismo político, por ser um ardil na busca do poder ou de sua manutenção, sugere a violação da Constituição e das leis em nome da pureza. Ele contamina a decisão judicial, pois os juízes emitem sentenças, não a partir da Constituição, das leis e da técnica jurídica, mas a partir de sua vontade moral. Contamina as políticas públicas, pois estas também são moldadas a partir dos valores morais dos agentes públicos e políticos e não a partir das necessidades e dos direitos sociais dos cidadãos. Contamina também a elaboração legislativa, pois a carga moral conservadora privilegia grupos específicos e bloqueia direitos civis e políticas sociais necessárias.
O moralismo, em nome de valores genéricos e vazios, escamoteia os que são os verdadeiros injustos e os injustiçados e disfarça a injustiça real assentada na desigualdade, pois a sua clivagem é entre os puros e os impuros. O moralismo é uma forma de autoritarismo e pode generalizá-la, pois, em nome dos valores morais, a alteridade é negada e pretende-se construir a nação como um lugar exclusivo para os iguais iniciados na comunidade dos puros. Em regra, os moralistas são hipócritas já que não praticam o pregam e usam o próprio moralismo não para uma melhora moral da sociedade, mas para conquistar e manter o poder. Não há um conteúdo moral no moralismo, mas mero uso instrumental.
Note-se que quase todos os políticos que foram às ruas exigir moralidade pública e o impeachment de Dilma se revelaram como moralistas sem moral, pois eram corruptos juramentados. O sistema, corrupto que era de fato, entrou em colapso, mas não foi superado. Valendo-se dessa situação, Bolsonaro apresentou-se como o último baluarte da moral e como o candidato antissistema. Sem que se completassem ainda 30 dias de governo, esse baluarte ruiu e mergulhou nas profundezas apodrecidas do sistema. A família Bolsonaro emergiu desse lodo como uma família de moralistas sem moral. Com isso, Bolsonaro perdeu a pureza e a condição de ser o eleito de Deus, por revelar-se um pecador.
Há que se notar que o discurso moralista tem uma grande capacidade persuasiva e de convencimento nos momentos das disputas, pois ele se isenta de fornecer explicações racionais. Este poder persuasivo aumenta se a sociedade está desesperançada, mergulhada na crise e nas vicissitudes do desemprego e da pobreza. Todo o mal é atribuído à corrupção que, de fato, é um mal, mas não o único e talvez nem o mais importante. Já o moralismo instalado no poder é um instrumento frágil de sua manutenção, pois o elemento mais valioso da manutenção do poder são os resultados proporcionados pelo governante em benefício dos governados. Quando os governados se sentem enganados, a sua cobrança por resultados será mais incisiva e o repúdio ao governo fracassado será ainda mais contundente. Este agora é o grande risco de Bolsonaro que poderá ver sua lua de mel com os eleitores drasticamente reduzida.
O equacionamento da crise Queiroz-Bolsonaro não é fácil. A solução mais radical seria a renúncia de Flávio ao mandato de senador. O presidente Jair Bolsonaro, claro, não pode ser imputado pelos elementos do escândalo, mas pode ser investigado, o que o enfraquecerá politicamente. Se a crise se agravar, poderá ocorrer um aumento da tutela dos militares sobre o presidente. Se se tornar incontrolável, no limite, poderá ser pressionado a renunciar. Mas a hipótese mais provável é que ele permaneça na presidência sob forte tutela dos generais de seu governo.
Bolsonaro, seus filhos e os bolsonaristas não poderão mais atacar Lula, a esquerda, o PT, o Psol e os movimentos sociais com a mesma desenvoltura que vinham atacando. As oposições agora também estão municiadas para o fogo cruzado. O Ministério Público, o Judiciário e Sérgio Moro foram postos contra a parede pela crise. Ou darão respostas claras e convincentes à sociedade ou a máscara enganosa de sua imparcialidade será rasgada para revelar rostos acabrunhados ou desavergonhados da cumplicidade com a corrupção e com o crime.
A crise Queiroz-Bolsonaro é a continuidade da crise anterior, é a crise de um sistema falido que não quer morrer. É a crise da incapacidade das forças políticas em reformar o sistema. É a crise da falta de lideranças virtuosas e corajosas. O que se tem são políticos acostumados à política miúda, aos conchavos, à manutenção de uma ordem institucional ineficiente que esmaga os direitos dos cidadãos. É a crise da manutenção dos privilégios inescrupulosos e criminosos que condenam o futuro da juventude e do país.
O escândalo Queiroz-Bolsonaro desfez o mito do justiceiro da pureza e fechou o caminho aos bolsonaristas em sua caminhada rumo à comunidade dos bem-aventurados. Agora eles precisam caminhar na estrada dos malditos junto com gente pecadora do PT, do PSol, do MDB, do PSDB etc. É neste jogo brutal dos interesses e das necessidades que os bolsonaristas terão que se ater. Sem o manto da pureza, terão que se revelar quem realmente são. E se o governo não for capaz de dar respostas às dramáticas necessidades sociais, a onda bolsonarista poderá se espatifar nas mãos de um povo irado, pois o povo não perdoa moralistas sem moral.
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